Por Gabriel Brito e Paulo Silva Junior*, em Correio da Cidadania
Tanto governos como movimentos sociais ainda fazem seu balanço da Copa do Mundo e, cada um a seu modo, começam a traçar estratégias para os próximos tempos. Enquanto para alguns a eleição representa tudo no horizonte político, para outros a luta apenas continua, sem que saibamos ainda qual o devido legado deixado pelo megaevento para a nossa democracia.
“Ainda estamos fazendo a avaliação de todo o processo. Mas sabemos que a luta nem começou no período da Copa e nem termina com o fim da Copa. O que podemos dizer é que o legado da Copa de 2014, principalmente para as comunidades mais pobres, foi muito complicado”, disse Benedito Barbosa, advogado do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, em entrevista ao Correio da Cidadania.
Dito, como é conhecido, participou do Comitê Popular da Copa em São Paulo, além de ter um histórico de ligação com movimentos de moradia, atuais pontas de lança da luta de classes na maior metrópole do país. Atento ao processo de remoções e despejos, chegou a ser preso em reintegração de posse no mês de junho, em uma das várias ocupações do centro de São Paulo. Em sua opinião, “não há uma política de habitação para atender de forma massiva a população de baixa renda”.
Sobre a truculência estatal vista em atos recentes, tanto de protesto contra a Copa como em outros casos, crê que devemos ficar atentos. “As próprias ações e a violência da PM e a prisão sem provas dos ativistas representam uma excessiva militarização da polícia e a criminalização dos movimentos sociais. É inaceitável, mas ainda os entendo como fatos isolados, que não se trata de uma contaminação do conjunto das instituições brasileiras”, afirmou.
A entrevista completa, realizada em conjunto com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Qual a avaliação que você faz dos protestos ocorridos durante a Copa e também do processo de luta de alguns movimentos em relação ao megaevento?
Benedito Barbosa: Nós que trabalhamos com os direitos humanos, a exemplo do Centro Gaspar Garcia, participamos do Comitê Popular da Copa, organização que reuniu coletivos políticos, culturais, de luta pela moradia, entre outros, para militar em favor do direito à cidade.
Passamos os últimos três anos acompanhando os impactos da Copa do Mundo de 2014, especialmente em relação às comunidades que sofriam ações de despejo e reintegração de posse. Tal processo foi monitorado e durante o período foi realizada uma série de mobilizações de denúncia contra as violações de direitos, especialmente por conta das obras de infraestrutura, que atingem as comunidades mais vulneráveis. Também estivemos ao lado dos trabalhadores informais, da população em situação de rua, enfim, de todos os grupos que estavam vulneráveis aos impactos da Copa.
Correio da Cidadania: Já que você puxou a discussão para o lado dos impactos, que balanço você faz sobre esse ponto, agora que o assunto Copa esfriou?
Benedito Barbosa: Ainda estamos fazendo a avaliação de todo o processo de organização e luta desses três anos. Mas sabemos que a luta nem começou no período da Copa e nem termina com o fim da Copa. O que podemos dizer é que o legado da Copa de 2014, principalmente para as comunidades mais pobres, foi muito complicado.
Para dar um exemplo concreto: duas comunidades da região do Buraco Quente, próxima do aeroporto de Congonhas, foram removidas por causa da obra do monotrilho, da linha 17 – ouro do metrô. Obra constante da Matriz de Responsabilidades da Copa. As duas comunidades foram removidas para Vargem Grande. A CDHU e o governo do estado se comprometeram a construir um conjunto habitacional para as famílias que estão sob o bolsa-aluguel do estado, mas até agora elas não têm a menor perspectiva de que o conjunto seja construído.
Continuaremos acompanhando toda a situação e também organizando as comunidades, a fim de vermos o poder público – federal, estadual e municipal – encaminhar as promessas de atendimento a tais comunidades.
Correio da Cidadania: O que você pode contar sobre o dia em que foi preso, ao acompanhar uma reintegração de posse na rua Aurora, centro de São Paulo?
Benedito Barbosa: No dia 25 de junho, estava acompanhando, como advogado, a reintegração de posse no prédio ocupado. Quando cheguei lá, por volta de 7 da manhã, fui informado pela conselheira tutelar de que as famílias de dentro da ocupação estavam sofrendo intimidação da PM, muitas crianças choravam etc. As pessoas foram ameaçadas até com armas dentro da ocupação, conforme denunciaram alguns jovens.
Tentamos entrar na ocupação, conversamos com o policial que guardava a porta, identifiquei-me como advogado, sabendo em que pé estava a situação. Negaram minha entrada, insisti e, quando me virei para entrar, me agarraram pelo pescoço e me deram uma gravata, quase fiquei desacordado. Foi uma agressão muito grande, até porque tenho problema de saúde e praticamente fui sufocado, quase me mataram na porta da ocupação. O caso está sendo apurado pela OAB, que pediu apuração à corregedoria da polícia, e também pelo MP, entre outros órgãos. Também tem um inquérito policial, no qual me defendo da acusação de resistência e desacato. Há advogados acompanhando o caso, um grupo pela OAB e outro grupo na defesa penal.
Além da violência física, foi muito humilhante e constrangedor. Mas houve uma reação grande da sociedade civil e de algumas organizações, afinal, não aconteceu só comigo. Tem sido muito corriqueiro a PM agir com violência contra pessoas e comunidades, além dos relatos de violência contra a juventude da periferia. Sempre foi assim, mas a atitude da PM vem recrudescendo em termos de violência nos últimos tempos.
Correio da Cidadania: A luta por moradia tem sido das mais marcantes no cenário político atual. Como está esse processo em São Paulo e como você avalia a atuação da prefeitura, que prometeu 55 mil moradias populares no mandato de Haddad?
Benedito Barbosa: Com relação à prefeitura, vemos com muita preocupação a questão do cumprimento das metas. Segundo informação deles, já há mais de 50 mil unidades contratadas. Mas a gente não vê nada disso pela cidade. E estamos sempre andando por aí. Vamos continuar acompanhando, denunciando, mas o fato concreto é que muitas comunidades, tanto no centro como na periferia, estão sendo despejadas e não há uma política de habitação para atender de forma massiva a população de baixa renda, a fim também de solucionar o déficit habitacional da cidade, que está muito grave.
Correio da Cidadania: Nesse sentido, o que pensa do Plano Diretor e sua recente aprovação na Câmara dos Vereadores, que os movimentos acompanharam muito de perto?
Benedito Barbosa: Vimos uma participação dos movimentos e dos indivíduos da cidade que foi muito positiva, monitorando e acompanhando todo o processo de discussão, enquanto o Plano Diretor passava pelo executivo e legislativo. Os movimentos de moradia atuaram de forma intensa pela aprovação do Plano porque entendemos que a proposta da prefeitura, do ponto de vista conceitual, de aproximar a moradia do trabalho e também ampliar as áreas de interesse social, além de vincular recursos para a habitação, é muito positiva. Acho que o trabalho do legislativo aprimorou o Plano Diretor desse ponto de vista, e a pressão social também foi muito importante pra aprová-lo.
No entanto, é sempre importante dizer que aprovar um projeto de lei, em tese positivo, por avançar em definir zonas de interesse social e vincular recursos, não nos faz esquecer de que queremos ver resultados na prática. Precisa tirar a lei do papel. No Brasil tem muito disso. Aprovam-se boas leis, mas na prática elas não saem do papel e não funcionam.
Correio da Cidadania: Recentemente, vimos notícias que dão conta de um número considerável de reintegrações a serem feitas nos próximos dias, tanto em relação a ocupações de moradia como também culturais, além da atitude da polícia que você mencionou e das prisões de ativistas em atos recentes. Olhando adiante, você acredita numa escalada repressiva das instituições brasileiras, como já criticam alguns setores?
Benedito Barbosa: O Brasil passou por uma ditadura muito recente. Eu não tenho uma avaliação de que estamos num processo de retrocesso de tamanha natureza. Mas podemos dizer que sentimos pontos de direitização e fascismo na nossa sociedade. Isso se reflete nas instituições e é perigoso para a democracia. Assim, temos de nos manter vigilantes. As próprias ações e a violência da PM, a prisão sem provas dos ativistas, como o caso do Hideki (funcionário da USP), por se manifestarem durante a Copa, representam uma excessiva militarização da polícia e a criminalização dos movimentos sociais. Temos percebido que esse quadro se intensificou.
Se tal processo continuar do jeito que vai, e se ampliar, pode, sim, criar um risco para a democracia. E não podemos imaginar as instituições em pleno funcionamento ameaçadas, assim como o direito à livre manifestação e reunião – como no caso daquele dia na praça Roosevelt, em ato que discutia exatamente a repressão e criminalização dos movimentos, duramente reprimido pela polícia.
É inaceitável, mas ainda entendo os fatos atuais como isolados, que não se trata de uma contaminação do conjunto das instituições brasileiras. Porém, se continuar assim, será preciso a sociedade se mobilizar mais e resistir à direitização e fascistização das instituições. Não podemos aceitar um retrocesso de forma alguma.
*Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.