Pós-junho e pós-Copa. O desafio de, sem deixar-se capturar, impactar a política institucional. Entrevista especial com Pablo Ortellado

Foto: assets.vice.com
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“O que aconteceu em junho de 2013, embora não me pareça tão inexplicável, adquiriu uma dimensão seguramente excepcional. Estamos falando de 5% da população saindo às ruas para protestar”, comenta o pesquisador

IHU On-Line – “O grande legado positivo das manifestações de junho é o fortalecimento de formas de organização social que são desvinculadas das instituições e que valorizam o processo de democracia interna. No entanto, esse tipo de movimento tem muita dificuldade de converter essa pulsante democracia comunitária em mudança política concreta e duradoura. Acho que o grande desafio dos próximos anos consistirá nesses movimentos adquirirem a capacidade de impactar concretamente a política institucional sem se deixarem capturar por ela.”

A reflexão é do professor da Universidade de São Paulo, Pablo Ortellado, que tem acompanhado as manifestações de rua, inclusive antes de os protestos ganharem a dimensão de junho de 2013.

Em entrevista por e-mail à IHU On-Line, Ortellado diz ser “uma voz um tanto solitária no debate acadêmico ao defender que o que aconteceu em junho de 2013 não foi uma surpresa total”.

Segundo ele, “quem acompanhou a movimentação das ruas nos últimos anos deve ter notado que há pelo menos dez anos acontecem massivas revoltas de transporte no país, sempre com as mesmas características: jovens urbanos organizando-se de maneira horizontal para bloquear ruas para protestar contra aumentos nas tarifas de transporte coletivo. Acontece assim desde a Revolta do Buzu em Salvador em 2003. Muitas dessas manifestações adquiriram dimensões sociais muito significativas, como as que ocorreram em Florianópolis em 2004 e 2005. Para se ter uma ideia, a Revolta da Catraca em Florianópolis em 2004 foi maior que os protestos de junho nas maiores cidades brasileiras. Só que essas revoltas, embora tenham acontecido em grandes cidades (Salvador, Florianópolis,Belém, Vitória), não chegaram a acontecer no centro de poder do país, que é o eixo Rio-São Paulo”. Considerando esse processo de manifestações sucessivas, Ortellado avalia junho de 2013 como “uma explosão e nacionalização decorrente do longo processo de maturação das revoltas de transporte”.

Passado um ano das manifestações de junho de 2013 e de protestos localizados durante a Copa do Mundo, “o que se pode comparar é o padrão de mobilização pré-junho de 2013 e aquele pós-junho”, diz o pesquisador. “E nesse sentido”, pontua, “há uma mudança notável. A sociedade está mais mobilizada e mais desconfiante das formas de organização por meio dos partidos políticos e outras instituições como ONGs e sindicatos”.

Ortellado também comenta o fenômeno da violência nas manifestações e avalia que ela deve ser considerada sob duas perspectivas diferentes: a do ponto de vista dos manifestantes e a dos policiais. “O fenômeno da violência nos protestos (isto é, da violência que parte dos manifestantes) é algo absolutamente marginal e sem importância. Embora ela exista, não é socialmente relevante. (…) Como ela é orientada a objetos (vidraças de bancos ou concessionárias de veículos), e não a pessoas, não deve, creio eu, ser considerada violenta”. Em contrapartida, pontua, “o que não é marginal, mas, pelo contrário, é estrutural e sistemático, é a violência da polícia. Do ponto de vista social, o verdadeiro problema relativo à violência nas manifestações é a violência policial. No entanto, do ponto de vista político, o que aparece é o fenômeno menor e mais restrito da violência dos manifestantes. Acho que colocar as coisas nas proporções que elas efetivamente têm é uma tarefa urgente”.

Pablo Ortellado é graduado e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP. É professor do curso de Gestão de Políticas Públicas e orientador no Programa de Pós-graduação em Estudos Culturais da USP e coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à Informação – Gpopai. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor interpreta o mal-estar que emerge das manifestações desde junho de 2013, considerando os avanços apontados por alguns especialistas em relação à distribuição de renda, aumento do salário mínimo e maior acesso à universidade nos 12 anos de gestão petista? Quais são as causas dessas manifestações?

Pablo Ortellado – Eu sou uma voz um tanto solitária no debate acadêmico ao defender que o que aconteceu em junho de 2013 não foi uma surpresa total. Quem acompanhou a movimentação das ruas nos últimos anos deve ter notado que há pelo menos dez anos acontecem massivas revoltas de transporte no país, sempre com as mesmas características: jovens urbanos organizando-se de maneira horizontal para bloquear ruas para protestar contra aumentos nas tarifas de transporte coletivo. Acontece assim desde a Revolta do Buzu em Salvador em 2003. Muitas dessas manifestações adquiriram dimensões sociais muito significativas, como as que ocorreram em Florianópolis em 2004 e 2005. Para se ter uma ideia, a Revolta da Catraca de Florianópolis em 2004 foi maior que os protestos de junho nas maiores cidades brasileiras. Só que essas revoltas, embora tenham acontecido em grandes cidades (Salvador, Florianópolis, Belém, Vitória), não chegaram a acontecer no centro de poder do país, que é o eixo Rio-São Paulo. No meu entendimento, junho de 2013 é uma explosão e nacionalização decorrente do longo processo de maturação das revoltas de transporte. Como a maior parte dos analistas não tinha notado esse fenômeno das revoltas, achou que o que aconteceu no Rio e em São Paulo veio do nada, que foi raio em céu azul.

Mas a culpa não é só dos analistas: a academia não estudou esse fenômeno, a imprensa dita nacional não noticiou e os partidos políticos não incorporaram as demandas dos jovens nos seus programas.

IHU On-Line – É possível fazer um diagnóstico acerca de quem são os manifestantes presentes nos protestos?

Pablo Ortellado – Acho que uma das características mais marcantes das manifestações de junho é a diversidade. Há muitas análises, por exemplo, sobre a forte presença da classe média nos protestos, mas elas não levam em conta as enormes diferenças que separam os protestos de São Paulo e Rio de Janeiro dos ocorridos em Belém ou São Luiz, ou daqueles que tomaram as pequenas cidades do interior do país. Eu não arriscaria qualquer caracterização que não fosse restrita a uma determinada cidade.

IHU On-Line – Quais são as consequências das manifestações de junho de 2013, considerando o pós-copa e o esvaziamento dos protestos durante o mundial?

Pablo Ortellado – O que aconteceu em junho de 2013, embora não me pareça tão inexplicável, adquiriu uma dimensão seguramente excepcional. Estamos falando de 5% da população saindo às ruas para protestar. É, guardada todas as diferenças, o nosso maio de 1968. Não é razoável julgar nada do que aconteceu depois ou antes à luz desse parâmetro de mobilização. O que se pode comparar é o padrão de mobilização pré-junho de 2013 e aquele pós-junho — e nesse sentido há uma mudança notável. A sociedade está mais mobilizada e mais desconfiante das formas de organização por meio dos partidos políticos e outras instituições como ONGs e sindicatos.

IHU On-Line – Considerando que o senhor tem acompanhado algumas manifestações, que avaliação faz dos confrontos entre a polícia e os manifestantes? Em que momento e por quais razões cada grupo parte para o ataque? Quais os erros de ambos os lados? Ainda nesse sentido, é possível realizar manifestações sem que elas gerem e impliquem violência?

Pablo Ortellado – Sou da opinião que o fenômeno da violência nos protestos (isto é, da violência que parte dos manifestantes) é algo absolutamente marginal e sem importância. Embora ela exista, não é socialmente relevante. A suposta violência das manifestações estaria concentrada na ação dos Black Blocs. Como já escrevi em outros lugares, a parte mais visível da tática Black Bloc nasce nos Estados Unidos de uma tradição estritamente não violenta e tem por objetivo resgatar a atenção dos meios de comunicação de massa por meio de uma desobediência civil meio performática, meio autoexpressiva, que é a destruição seletiva de propriedade privada. Como ela é orientada a objetos (vidraças de bancos ou concessionárias de veículos), e não a pessoas, não deve, creio eu, ser considerada violenta.

Há uma segunda característica da tática Black Bloc, que é a autodefesa dos ataques da polícia, e aí sim vemos elementos de violência ou de contraviolência. Mas mesmo se considerarmos esses dois elementos — destruição de vidraças e resistência e contra-ataque à polícia —, estamos falando de um fenômeno relativamente marginal nas manifestações, mas que é muito sobrevalorizado pelos meios de comunicação. O que não é marginal, mas, pelo contrário, é estrutural e sistemático, é a violência da polícia. Do ponto de vista social, o verdadeiro problema relativo à violência nas manifestações é a violência policial. No entanto, do ponto de vista político, o que aparece é o fenômeno menor e mais restrito da violência dos manifestantes. Acho que colocar as coisas nas proporções que elas efetivamente têm é uma tarefa urgente.

IHU On-Line – Concorda com a teoria de que no Brasil é possível verificar momentos de estado de exceção? Quais são os indícios?

Pablo Ortellado – Não acho que vivemos num estado de exceção. O que nós temos, desde o fim do regime militar, é um estado de direito restrito a uma parcela pequena da população.

O que nós temos é uma cidadania restrita. O direito civil é uma espécie de direito negativo, uma barreira contra os abusos do poder do Estado. Temos, assim, a liberdade de expressão, que é o direito de o estado não me censurar; a liberdade de reunião, que é a impossibilidade de o Estado dissolver uma reunião pacífica; a inviolabilidade do lar, que é a incapacidade de o Estado entrar na minha residência sem um mandado judicial, etc. Todos esses direitos têm sido mais ou menos respeitados desde o fim do regime militar para uma parcela da população — digamos para 15% ou 20% das pessoas. Para os demais, essas proteções do direito são muito débeis. Metade da nossa população carcerária, por exemplo, está presa sem ter tido julgamento — isso é uma flagrante e sistemática violação da presunção de inocência e do direito ao devido processo legal. E essa população é composta quase exclusivamente de negros e pobres que não dispõem dos meios econômicos para exercer uma cidadania plena.

Por esse motivo, de maneira explícita ou implícita, a tarefa dos movimentos sociais tem sido, pelo menos no curto prazo, universalizar esses direitos de cidadania. O que vimos recentemente, com prisões abusivas de manifestantes, é uma fissura nesses direitos civis da cidadania restrita. O que vimos foram pessoas de classe média terem esses direitos violados da maneira arbitrária com a qual os mais pobres estão acostumados. Há alguma novidade nisso? A novidade é que a proteção do direito que se lutava para que fosse ampliada foi ainda mais restringida, deixando de valer, por motivos políticos, para pessoas que estavam acostumadas a ela. É nisso que consiste o perigo das prisões arbitrárias e da perseguição política aos ativistas: elas revertem os esforços de ampliação da cidadania que eram um ponto de apoio para demandas por mudanças sociais mais profundas.

IHU On-Line – Pós-manifestações de junho de 2013 até hoje, já é possível vislumbrar qual será o futuro dos movimentos sociais? Os movimentos tradicionais ainda têm algum campo de atuação? Em que consistem os novos coletivos que surgem nas manifestações? Em que medida eles se aproximam e se distanciam dos movimentos antigos?

Pablo Ortellado – As duas características mais notáveis dos chamados “novos” movimentos sociais são a horizontalidade como forma de organização e a desconfiança das formas de organização por meio de instituições, sejam elas partidos políticos, ONGs ou sindicatos. A constituição de movimentos com essas características começa no final dos anos 1970, mas é interrompida com a opção de muitos movimentos sociais pela via institucional com a fundação do PT. Depois, vemos uma nova geração de ativistas e movimentos nos anos 1990 e 2000 se constituírem com esses traços ainda mais marcados. Creio que esses movimentos ganharam grande força depois de junho, embora movimentos “tradicionais”, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto – MTST, também tenham se fortalecido. Acho que veremos uma coexistência ainda por muito tempo entre movimentos “tradicionais” e “novos” — com o predomínio das formas tradicionais no movimento camponês e sem-teto e o predomínio das novas formas nos setores mais escolarizados e urbanos.

IHU On-Line – É possível que ocorra um esvaziamento e até extinção de movimentos que atuaram, por exemplo, durante a Copa do Mundo, com o fim do mundial? Nesse sentido, os coletivos de hoje são mais efêmeros e imediatistas do que os movimentos do passado? O que eles conseguem e conquistam com suas atuações?

Pablo Ortellado – Muitos desses novos movimentos são compostos de ativistas que vão se engajando numa ou noutra causa à medida da necessidade. Assim, não se trata de organizações estanques, mas de mobilizações ad hoc que surgem e ganham força de acordo com o momento e a oportunidade política. Por isso, acho que os movimentos contra a copa vão se reconfigurar.

IHU On-Line – É possível vislumbrar qual será o impacto das manifestações do ano passado até hoje e da Copa nas eleições presidenciais deste ano? Essas manifestações agregam consciência e participação política da população? Em termos de mudança no espectro político, que mudanças vislumbra?

Pablo Ortellado – O grande legado positivo das manifestações de junho é o fortalecimento de formas de organização social que são desvinculadas das instituições e que valorizam o processo de democracia interna. No entanto, esse tipo de movimento tem muita dificuldade de converter essa pulsante democracia comunitária em mudança política concreta e duradoura. Acho que o grande desafio dos próximos anos consistirá nesses movimentos adquirirem a capacidade de impactar concretamente a política institucional sem se deixarem capturar por ela.

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