Após remoção, 27,7 mil famílias paulistanas que recebem subsídio da prefeitura para o aluguel acumulam atrasos no pagamento, dívidas e esperanças perdidas
por Giulia Afiune, A Pública
Com medo de ser despejada mais uma vez, Vanessa Aparecida dos Santos mandou três de seus quatro filhos para casas de parentes. “Tirei meus filhos daqui porque eu não sei o que pode acontecer. E se chegam aqui na porta e dizem ‘Ó, precisa desocupar a casa em 24 horas’?”
Desde janeiro deste ano, o proprietário do lugar onde mora não recebe os R$ 300 que a prefeitura de São Paulo depositava na conta dele todo mês. Por isso está ameaçada de perder o pouco que conquistou – dois cômodos e um banheiro alugados, todos com paredes mofadas, em um cortiço em Diadema – depois de ter sido removida com os filhos de seu barraco na zona Sul de São Paulo. Só no município vizinho conseguiu um locador que acreditasse no compromisso da prefeitura de pagar parte do aluguel, por valor que ela pudesse cobrir – 380 reais, depois aumentados para 420 reais.
O subsídio de R$ 300 pago pela prefeitura – previsto no programa Parceria Social – era direito de Vanessa até ela obter sua moradia definitiva. Em 2011, ela, os filhos e mais 37 famílias foram retirados de uma área de risco na Vila Cristina. Ela começou a receber o auxílio em junho, quatro meses depois do despejo. Em dezembro de 2013, o prazo do programa acabou e ela parou de receber o subsídio no mês seguinte. Os cinco meses em que a prefeitura não pagou sua parte do aluguel significaram R$ 2076,29 em dívidas para Vanessa, valor que inclui outros encargos e consta na ordem de despejo da moradora. Insegurança e humilhação agora fazem parte de seu cotidiano: “Quando eu estava pagando era tratada de uma forma, agora é de outra. Tenho medo de fazerem alguma coisa com meus filhos”, desabafa.
Vanessa conta que não recebeu nenhum comunicado oficial de interrupção do pagamento pela prefeitura. Quando reclamou ouviu o que considera uma série de desculpas. “Cada dia era uma história: mudança de gestão, o cofre não pode ser aberto, a verba não pode ser liberada”, diz. Só em maio deste ano ela foi transferida do programa Parceria Social para o Auxílio Aluguel e recebeu uma ligação da Secretaria da Habitação (Sehab) para que fosse até lá receber o novo benefício – mas não ouviu nenhuma explicação referente à mudança de programas nem uma compensação pelos meses que ficou sem receber.
Em nota, a Sehab não reconheceu a interrupção do pagamento e disse: “todas as famílias [removidas da Vila Cristina] estão cadastradas e recebem auxílio aluguel até serem contempladas por uma unidade habitacional definitiva.” Agora, Vanessa pretende processar a prefeitura, pedindo uma indenização pelos alugueis atrasados. “Eu não quero nada além do meu dinheiro que é o meu direito porque eu tenho um termo de compromisso”, justifica, referindo-se ao “compromisso de atendimento habitacional”, documento em que a prefeitura garante prestar auxílio até que a família consiga uma unidade habitacional.
Mas ela continua insegura quanto à sua situação. “Eu não assinei contrato, não assinei nada. Não me deram nenhuma garantia de que eu ia continuar no programa. Só me deram a data para eu receber o dinheiro”, diz a moradora, exibindo a tira de papel retratada abaixo, o único comprovante que a prefeitura entrega para os moradores que recebem o auxílio aluguel.
A insegurança gerada pela falta de documentos oficiais é apenas um dos problemas dos programas da prefeitura para os removidos de áreas de risco, de terrenos de obras públicas ou por determinação judicial – 27,7 mil famílias, segundo dados do Habisp, portal oficial da Secretaria Municipal de Habitação. “Eles dizem ‘Confiem na minha palavra’ e pronto, ele fica numa condição de não-cidadão porque ele não tem nada, tem uma promessa vazia”, diz Júlia Moretti, advogada do Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns da PUC-SP.
“O morador podia estar vivendo uma situação precária, de insegurança na posse, mas ele tinha uma coisa que era dele, que construiu com o esforço próprio. Tudo que ele tinha, que bem ou mal ele tinha conquistado, ele perde”, enfatiza a advogada. O que explica porque tantas vezes ele prefere permanecer na área de risco do que perder a casa, como diz Vanessa: “Lá não tinha dívida para pagar, não tinha ninguém na minha porta me cobrando. Pra mim não tinha risco, eu tinha mais paz do que eu tenho aqui.”
A arquiteta Rossella Rossetto, funcionária concursada que há mais de vinte anos atua entre a Sehab e a Câmara Municipal, atualmente como assessora do vereador Nabil Bonduki (PT), também destaca a falta de perspectiva de política pública do programa: “Quando você dá o dinheiro na mão da pessoa diz ‘se vira’, sei lá onde ela tá, se tá morando, se tá legal ou não. [O poder público] lavou as mãos: tá aqui seus 300 reais e você tá sendo beneficiado. Eu estou te dando o dinheiro, o problema é seu de onde você vai parar”, explica.
Enquanto recebem o “benefício” os problemas começam pelas muitas denominações do programa, conhecido genericamente por “auxílio-moradia”, que se sucedem de forma caótica provocando interrupções e irregularidades no pagamento, como relataram diversos entrevistados ouvidos pelo nosso reportagem. Vanessa, por exemplo, conta que enquanto recebia pelo Parceria Social, cada mês a prefeitura depositava em um dia e agora que passou para o auxílio aluguel, funcionários da Sehab precisam ligar para o morador ir até lá, receber uma ordem de pagamento e sacar a verba no banco. Sem falar nos cinco meses que ficou sem nenhum auxílio.
Desde a gestão da prefeita Marta Suplicy (PT) foram criadas três políticas diferentes com o objetivo de atender famílias removidas: Bolsa Aluguel (2004), Parceria Social (2007) e Auxílio Aluguel (2010). Segundo os dados mais recentes, 22.394 famílias recebiam o Auxílio Aluguel e 5.394, o Parceria Social.
Favela do Boqueirão: de um risco para outro
Restam apenas paredes de azulejos com os nomes dos ex-moradores estampados entre montanhas de lixo na beira do córrego contaminado com esgoto, na Favela do Boqueirão, região do Ipiranga, zona sudeste da cidade. Até hoje o local não foi limpo e o córrego não foi canalizado, como havia sido prometido, apesar do despejo de 198 famílias que viviam na área de risco, na favela do Boqueirão, zona sul da cidade. Muitas foram obrigadas a se instalar em municípios vizinhos a São Paulo, como Diadema, Itaquaquecetuba, Itapevi e Mogi das Cruzes. “Eles tiveram que procurar mais afastado, porque como a demanda foi grande [depois das remoções] aumentou o preço do aluguel no bairro”, comenta Sandra Maria Silva Costa, 50 anos, presidente da associação de moradores do Boqueirão.
A família de Lucineide Miranda, 37 anos, foi uma das inscritas no programa Parceria Social depois da remoção, que ocorreu entre 2011 e 2012. Em 2003, ela havia pago R$ 3 mil pelo terreno aterrado em cima do córrego, justamente porque estava com dificuldades para pagar aluguel. “Eu não invadi, eu comprei”, esclarece, referindo-se ao barraco demolido depois de decretada a área de risco pela prefeitura.
Para piorar, quando o contrato do parceria social venceu – o contrato é de 30 meses sem prorrogação – o benefício de Lucineide foi cortado sem aviso, assim como aconteceu com Vanessa. Durante cerca de seis meses ela continuou pagando os R$ 300 para completar o aluguel de R$ 600 por uma casinha também em Diadema, sem saber que a prefeitura não tinha feito sua parte; só tomou conhecimento da inadimplência quando decidiu se mudar e a proprietária cobrou as parcelas atrasadas. Agora ela deve R$ 1800 à ex-senhoria.
Acompanhamos a moradora enquanto, nitidamente nervosa, ela foi negociar os alugueis atrasados com a filha da antiga proprietária, na garagem do prédio onde morava. A filha disse que a dona do imóvel quer processar Lucineide, mas que ela prefere um acordo. Para quitar a dívida, a faxineira ofereceu R$ 150 por mês durante um ano, mas a dona permaneceu irredutível: quer tudo sanado em três parcelas de R$ 600. Mais uma vez, a negociação acabou sem acordo.
Lucineide fica preocupada quando faz o cálculo na ponta do lápis. Sem emprego fixo e fazendo bicos como faxineira, na melhor das hipóteses ela consegue ganhar R$ 600 por mês, mais a pensão de R$ 150 que recebe do ex-marido. O novo aluguel custa R$ 700, mais R$ 100 da água e da luz. E ela ainda precisa pagar a dívida.
Em julho, Lucineide passou receber o auxílio aluguel – a prefeitura paga, de uma vez, R$ 900, referentes a três meses de subsídio. Provavelmente ela vai usar este valor para pagar as contas de julho. Mas a dificuldade financeira continua: ela não sabe se vai receber o auxílio aluguel de novo em outubro. “O papel fala que é para ligar para saber quando vão pagar o outro. Você sabe como como eles são, tem que esperar pra ver”, reflete.
A situação de Lucineide preocupa outros moradores que ainda recebem o Parceria Social, por terem sido despejados depois. “É pouco, mas me quebrou um galho e sou feliz com isso. Se eu não receber mais nada vai complicar muito”, afirma João Pedro de Lima, que também morava na área de risco e foi removido em janeiro de 2012.
“O meu está vencendo agora em agosto. Não sei o que vai acontecer, fica todo mundo falando que eles vão tirar…e que eles não vão dar moradia, né?”, diz Valdeni Cardoso, 43 anos. “Só que a gente tem o termo de compromisso com a prefeitura que eles são obrigados a dar moradia. Na Habi [Superintendência de Habitação Popular, setor da Sehab responsável pelo auxílio] falaram que não vão dar, que eles não têm compromisso nenhum com a gente”, conta.
Em busca de uma solução definitiva, as famílias do Boqueirão lutam para que a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) construa conjuntos habitacionais em um dos quatro terrenos públicos que o estado possui na região. Um deles virou um lixão repleto de carros abandonados depois que outras famílias foram removidas e a terra ficou vazia.
Em nota, a CDHU disse que as áreas pertencem ao Instituto de Pagamentos Especiais de São Paulo (Ipesp). “São quatro glebas que ainda necessitam de regularização, sendo que duas delas encontram-se ocupadas por aproximadamente 1.700 famílias.” E acrescenta que “encontra-se em estudo um projeto para atender essas famílias. Pela complexidade, ele deverá envolver os governos federal, estadual e municipal. Este projeto prevê edificação verticalizada de uso misto, composta de moradias e área comercial na parte térrea, visando captar recursos para a receita condominial.” Os moradores também trabalham em um projeto de conjunto habitacional para apresentar à CDHU.
A Secretaria da Habitação de São Paulo também respondeu à Pública por nota: “A comunidade está no Perímetro de Ação Integrada Moinho Velho 1 com planejamento de obras de urbanização e infraestrutura.” A Sehab informou que já apresentou o Projeto Social às famílias dessa comunidade, mas a presidente da associação de moradores nega. A Secretaria disse ainda que “todas as famílias estão cadastradas e recebem auxilio aluguel até serem contempladas por uma unidade habitacional definitiva”, embora a reportagem tenha encontrado diversos casos em que isso não acontece.
Casas trocadas por uma entrada para carros
Ironicamente, as obras de um novo conjunto habitacional foram motivo para remover 240 famílias do núcleo Diogo Pires da Favela do Jaguaré, zona oeste de São Paulo. As casas de tijolo aparente da favela, rodeados pelo entulho das casas demolidas contrastam com os prédios simétricos de fachada branca com detalhes coloridos, construídos pela prefeitura atrás da comunidade. O novo edifício fará parte deste complexo de conjuntos habitacionais que já estão habitados.
Segundo os moradores, as casas da favela foram derrubadas para abrir uma entrada para automóveis que não estava no projeto original dos prédios. Já a Sehab diz apenas que “a área será destinada a construção do Conjunto Habitacional Diogo Pires, que terá 240 unidades habitacionais”, sem esclarecer se ali será erguido um novo prédio ou se as pessoas removidas serão realocadas no edifício que já está sendo construído, previsto para ser finalizado em 2015.
Ali a reportagem encontrou 14 famílias sem receber nenhum tipo de auxílio desde o ano passado, quando o contrato do Parceria Social acabou e a prefeitura não migrou os cadastros para o auxílio aluguel. Para pedir orientações, os moradores se reuniram no dia 12 de julho com os representantes do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, a assistente social Cristiane, a líder comunitária Dona Olga e o advogado Benedito Barbosa, o Dito, que também milita em movimentos de moradia. Na reunião – acompanhada pela reportagem da Pública –, as queixas eram recorrentes. A prefeitura não explica, por exemplo, por que algumas famílias recebem R$ 300 e outras R$ 500, ou por que os moradores pararam de receber o Parceria Social quando procurada por eles. Djalma Jesus de Mattos conta que já ligou na Sehab inúmeras vezes. “Vão empurrando, falando que [os moradores vão receber] amanhã, que semana que vem, que depois do dia 15. Chegou no mês 5, ‘Ah, no mês 5 sai.’ Estamos julho já, e nada”, diz.
Na segunda-feira, 14 de julho, uma assistente social da prefeitura foi à comunidade falar com os moradores, segundo eles para regularizar a situação. “Falaram que a gente recebia com certeza, que daquela semana para a seguinte iam chamar a gente lá para receber”, contou Francisco Jonas Dantas de Lima, 31 anos. No dia 1o de agosto, porém, 18 dias depois da reunião, ao ligar para Francisco para saber se ele havia recebido o dinheiro ou alguma ligação da prefeitura ouviu do morador, irritado: “Recebeu nada.”
Francisco diz que já perdeu a paciência com a Secretaria da Habitação. “Quando eu ligo até discuto com a moça: isso aqui que vocês inventaram para nós, essa parceria é a maior furada. Se eu soubesse disso daí, não tinha saído da minha casa nem amarrado. Porque vocês falaram uma coisa e agora é outra”, conta. Ele se refere à promessa feita, ainda em 2011, de que em dois anos e meio eles receberiam uma unidade habitacional caso entregassem suas casas. “Eu disse que só saía com uma garantia. Eles me deram esse papel [compromisso de atendimento habitacional] e eu entreguei a chave, tirei as coisas de dentro.”
Segundo o morador, “eles derrubaram só a laje e deixaram a casa inteira” e agora o local já foi invadido por outras pessoas. “Para você ver como a prefeitura trabalha errado. Porque se não estão me indenizando, ou me deixava lá até sair a moradia, ou derrubava tudo. Não, deixou lá a casa inteira”, lamenta. “Vou ser sincero com você, se o cara não tivesse invadido, era eu que estava lá de volta. Porque eu não tenho da onde pagar esses 600 reais todo mês”, diz ele, que parou de receber o benefício em dezembro de 2013.
Renatielle Érica dos Santos, de 26 anos, teve sorte ainda pior. Embora ela vivesse na favela desde 2010, não conseguiu fazer seu cadastro junto com outras famílias. “Na época que eles passaram cadastrando, eu estava trabalhando, aí deixaram o papel embaixo da minha porta. Depois fui atrás e eles falaram que iam passar na minha casa de novo. Aí foi indo, foi indo, ninguém foi”, conta. Em dezembro de 2011, sua casa pegou fogo em um incêndio na favela. “Perdi os 5 mil reais que eu tinha pago no barraco, perdi minhas coisas, perdi tudo”, diz.
Ela conta ter procurado novamente a prefeitura depois do incêndio, que afirmava já haver um cadastro em seu endereço com outro nome. “Eu cansei de ir na prefeitura e nada. Então tá bom, se vocês não vão fazer nada eu vou ter que invadir de novo porque não tenho pra onde ir. Não me deram solução”, justifica a moradora, que em dois dias construiu um novo barraco de madeira com a ajuda do primo e do irmão, em cima da laje de uma amiga, na mesma favela.
No dia 21 de julho, ao chegar em casa, Renatielle foi surpreendida pela demolição de alguns barracos na entrada da comunidade. Preocupada, tratou de ligar para o advogado Dito, do Centro Gaspar Garcia. “Fiquei com medo. Para esses que eles derrubaram ontem eles não deram nada.” A Sehab disse que, em 2013, as áreas de onde as famílias haviam sido removidas foram reocupadas por aproximadamente 100 famílias.Negociando, os moradores conseguiram que a demolição dos novos barracos fosse suspensa, mas por 20 dias.
Muitos gastos, poucos resultados
Segundo a Secretaria da Habitação, entre 2010 a 2013, a prefeitura “gastou em média 70 milhões por ano com o pagamento de auxílios, o que possibilitaria a construção de cerca de mil unidades habitacionais”. Ou seja, há algo realmente errado com os programas de auxílio-aluguel, como apontam os especialistas. “Esta modalidade de aluguel é uma situação temporária, precária para resolver um problema emergencial, mas esta ação foi se avolumando, avolumando, e hoje o município paga para muita gente. É um volume grande de recursos”, analisa a arquiteta urbanista Rossella Rossetto.
“Não é que o programa em si é ruim, em alguns casos ele é necessário. Mas não pode ser a política pública de habitação e acabou virando. A pessoa vai remover e diz ‘Ah, dá atendimento provisório, dá parceria’ Mas e aí? Depois que acabar o que você vai fazer com essa família? Ela vai ficar para sempre no atendimento provisório?”, questiona a defensora pública Anaí Arantes Rodrigues, que recentemente terminou seu mandato como coordenadora do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. “Esses instrumentos acabam sendo muito mais para dar suporte a uma agenda de remoção de famílias pobres e ainda enganá-las – porque depois acabavam perdendo – do que uma solução habitacional”, critica o advogado Dito.
“Teoricamente durante esse tempo [em que ela recebe o auxílio] ela teria que se estruturar para encontrar uma solução habitacional. Mas a gente sabe que não é a realidade. Até porque 300 reais por mês não dá nenhuma sobra no orçamento de ninguém para que ela possa ir atrás de nada”, acrescenta Júlia Moretti, do Escritório Modelo da PUC-SP.