Diariamente, Celina Maria de Souza acorda antes do sol nascer e, após deixar quatro de seus filhos na escola próxima, desce os 180 degraus que separam sua empinada moradia da parte plana do Rio de Janeiro, para ir trabalhar como doméstica e voltar a subi-los horas depois. Celina, de 44 anos, vive há 25 no alto da favela do Morro do Vidigal, encravado em uma das zonas residenciais mais rica do Rio de Janeiro. Nesta favela de aproximadamente dez mil habitantes as casas, muitas construídas pelos próprios moradores, se comprimem entre o mar e a vizinha montanha
Fabíola Ortiz – Envolverde/IPS
Originária de Ubaitaba, na Bahia, Estado do Nordeste brasileiro, mil quilômetros ao norte do Rio de Janeiro, com apenas 17 anos Celina deixou sua família para perseguir o sonho de uma vida melhor em uma grande cidade. Foi parte do contingente de migrantes que por décadas fugiram da seca do Nordeste em direção ao sul industrial. “Estou cansada de viver na favela. Sonho em ter um dia uma casa com um quarto para cada filho. Digo a eles para serem responsáveis e estudarem para que não sofram mais tarde. Gostaria de voltar a estudar, mas é difícil encontrar tempo”, contou à IPS.
Mãe de seis filhos com idades entre 12 e 23 anos, os dois mais velhos já emancipados, Celina tem renda mensal de aproximadamente US$ 450. Quase metade provém do Bolsa Família, o programa de transferência da renda criado por Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) quando chegou à Presidência e que é mantido por sua sucessora, Dilma Rousseff.
Em 2013 o programa completou dez anos como a principal política social deste país de 200 milhões de habitantes. Beneficia 13,8 milhões de famílias, que equivale a 50 milhões de pessoas, justamente a quantidade que se estima ter tirado da pobreza extrema. Entretanto, 21,1 milhões de brasileiros ainda vivem na miséria, de acordo com os últimos dados oficiais, referentes a 2012.
A Associação Internacional de Seguridade Social (Issa), com sede na Suíça, premiou em outubro o Bolsa Família por seu combate à pobreza e apoio aos direitos dos mais vulneráveis. Segundo a Issa, constitui a maior transferência de renda do mundo, com custo de apenas 0,5% do produto interno bruto. O orçamento do programa em 2013 foi de US$ 10,7 bilhões e atualmente integra o Plano Brasil Sem Miséria.
“Tinha ouvido falar dele e me diziam que era um subsídio que o governo dava para as crianças matriculadas nas escolas e vacinadas. Vivíamos muito mal, não tínhamos o que comer”, disse Celina. Há uma década seus filhos se beneficiam do Bolsa Família. Inicialmente recebiam cerca de US$ 40 no total. Celina se casou duas vezes, mas cria sozinha seus filhos após se separar do último marido. “Este dinheiro me ajuda muito. Criticam dizendo que é uma esmola, mas não vejo assim. Também é preciso trabalhar. Com a Bolsa Família compro material escolar, comida, roupa e sapatos para meus filhos. Não dá para todos, mas ajuda muito”, afirmou.
Ela não esquece os dias que passou com fome e até algumas noites sem teto, junto com os dois filhos mais velhos, quando se separou pela primeira vez. “Eu dizia a eles: comam porque só de ver vocês, já me alimento”, recordou. Agora, vivem cinco em uma casa de apenas dois cômodos. Quase sem estudos, Celina luta contra a pobreza e busca que seus filhos tenham melhores oportunidades mediante trabalhos quase sempre informais, embora quando chegou ao Rio tenha trabalhado um tempo em uma fábrica de acessórios femininos.
Celina é um dos incontáveis exemplos de brasileiras e brasileiros que tentam garantir para sua família uma melhor qualidade de vida, enquanto o país tenta mitigar os passivos históricos de muitos anos de atraso em seu desenvolvimento humano. Esse esforço lhe permitiu melhorar sua posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), divulgado este mês pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), onde o Brasil está em 79º lugar entre 167 países estudados. Na América Latina, o Brasil é superado por Chile (41), Cuba (44), Argentina (49), Uruguai (50), Panamá (65), Venezuela (67), Costa Rica (68) e México (71).
Andréa Bolzon, coordenadora do Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, disse à IPS que o país avançou notavelmente nos últimos 20 anos. O Atlas realiza a contribuição nacional ao Informe sobre Desenvolvimento Humano, que inclui o IDH. O tema de 2014 é “Sustentar o progresso humano: reduzir vulnerabilidades e construir resiliência”. Segundo Bolzon, por trás da melhora, “há políticas que foram implantadas, como o aumento do salário mínimo, as medidas afirmativas para a redução das desigualdades raciais, a promoção do emprego e o próprio Bolsa Família”.
O IDH, criado em 1980, mede a expectativa de vida e de saúde, os níveis de educação e renda. Em 2013, o Brasil registrou 73,9 anos de expectativa de vida, média de 7,2 anos de escolaridade e renda bruta por pessoa de US$ 14.275. No ano passado, o IDH do Brasil cresceu 36,4% em relação a 1980, quando a expectativa de vida era de 62,7 anos, a média de estudo de 2,6 anos e a renda por pessoa de US$ 9.154.
“O Brasil é um dos países que mais evoluíram no desenvolvimento humano nos últimos 30 anos”, disse o representante residente do Pnud no Brasil, Jorge Chediek, durante a apresentação dos dados em Brasília. Porém, continua sendo muito desigual, destacou Bolzon. “É preciso investir nos sistemas públicos universais de qualidade, especialmente em saúde e educação, pois têm efeitos em todos os demais indicadores”, destacou.
Justamente, o aumento dos anos de estudos entre as famílias é uma mudança visível, afirmou Bolzon. “O vemos entre as gerações de uma mesma família. As pessoas que estudaram pouco têm filhos que estudam mais anos, há uma grande diferença em termos de escolaridade”, acrescentou.
Este é o caso de Celina e sua família. Ela estudou até a quinta série do primário e hoje sua filha mais nova, de 12 anos, já está no sexto ano. “Quase não estudei. Tive que parar aos 12 anos para trabalhar para ajudar meus pais a levar comida para casa. Quero que meus filhos tenham muito mais do que eu tive, que tenham boa educação e um bom emprego”, afirmou.
Isis, sua filha, sabe das penúrias de sua mãe e dos seus esforços para melhorar suas vidas. “Gosto do colégio e de estudar matemáticas. Quando volto, ajudo minha mãe e arrumo a casa. Ela diz para estudarmos muito para termos um futuro melhor. Conheço sua história e faço isso”, contou à IPS, com um sorriso.