Tupinambá do sul da Bahia diz que terceira detenção, às vésperas de viagem-denúncia ao Vaticano, teve ameaças claras de morte. Indígenas relatam violações em território ocupado por militares
Por Daniela Fernandes Alarcon, especial para a RBA
Ilhéus – “Eu sou ameaçado de morte, não só pelos fazendeiros, mas pela própria força policial do governo.” Rosivaldo Ferreira da Silva, o cacique Babau – uma das lideranças do povo Tupinambá, que habita o sul da Bahia – vive hoje em um território militarizado e enfrenta mais um lance de um processo de criminalização que teve início assim que os indígenas começaram a recuperar seu território. No último dia 24 de abril, Babau foi preso, após se apresentar à Polícia Federal (PF) em Brasília. Cinco dias depois, uma decisão liminar do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou sua libertação, por estarem ausentes os requisitos legais exigidos para a aplicação de prisão temporária.
O cacique é acusado de envolvimento no assassinato de um pequeno agricultor, Juracy José dos Santos Santana, ocorrido em 10 de fevereiro, na zona rural do distrito de Vila Brasil, município de Una, e teve sua prisão temporária decretada pelo juiz Maurício Alvares Barra, da Vara Criminal da Comarca de Una, dez dias após o caso. A existência do mandado de prisão, contudo, só veio à tona em 17 de abril – menos de 24 horas depois de o cacique receber o passaporte para viajar ao Vaticano, para efetuar denúncias ao papa.
“Nessa última prisão, era para me matarem”, conta Babau, em entrevista à RBA. “Era para eu ser transferido aqui para Ilhéus e já estava tudo certo para a minha execução. Inclusive, quando eu estava preso em Brasília, na cidade de Buerarema fizeram festa. Festejaram e contaram aos quatro ventos: ‘agora nós eliminamos’. Era para ser apenas uma ‘morte de presídio’, como em outros cantos, em que eliminam as pessoas dizendo que é guerra interna dentro do presídio.” Desde 2010 Babau é assistido pelo Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos em razão de numerosas ameaças de morte.
Estado: omissão e repressão
Na condução do processo de demarcação da Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, onde vivem cerca de cinco mil índios, o Estado violou, em todas as etapas, os prazos legalmente estabelecidos. O procedimento de identificação e delimitação da TI foi iniciado em 2004; cinco anos depois, a Fundação Nacional do Índio (Funai) aprovou o relatório circunstanciado elaborado pelo grupo de trabalho a cargo dos estudos técnicos, delimitando a TI em uma área de 47.376 ha, que abrange porções dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una. Em abril de 2012, a consultoria jurídica do Ministério da Justiça manifestou-se pela aprovação dos estudos elaborados pelo órgão indigenista – que comprovam, de forma conclusiva, a tradicionalidade da ocupação do território. Contudo, até agora, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, não assinou a portaria declaratória da TI.
Em lugar de encaminhar o processo para as etapas finais – incluindo o pagamento das indenizações devidas aos ocupantes não indígenas e o reassentamento daqueles que têm perfil de cliente da reforma agrária –, Cardozo instalou uma “mesa de diálogo”, mecanismo que o governo federal tem adotado em regiões onde há forte presença do agronegócio. Em face da demora, o Ministério Público Federal (MPF) propôs ações civis públicas responsabilizando o Estado por não cumprir sua atribuição legal de proteger os direitos territoriais indígenas, conforme determinam a Constituição Federal de 1988 e tratados internacionais de que Brasil é signatário, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Por determinação de Cardozo, desde agosto de 2013 a TI encontra-se militarmente ocupada. Em 28 de janeiro último, agentes da Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) e da PF instalaram uma base na aldeia Serra do Padeiro, onde vive o cacique Babau. Em fevereiro, cerca de 500 soldados do Exército deslocaram-se à região, por ordem da presidenta Dilma Rousseff, para “garantir a lei e a ordem”, “pacificando” a área.
No marco da presença militar, os indígenas passaram a ser vigiados ostensivamente, sendo alvo também de ações de reintegrações de posse violentas. Em fevereiro, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a liminar que determinava o cumprimento de uma série de reintegrações de posse, mas a ocupação militar persiste. “A ditadura só mudou de face”, diz Babau. “Ela continua implantada no país. Nós não temos democracia. A democracia é só para quem tem dinheiro.”
Em carta de 24 de março, os Tupinambá informaram estar sofrendo constantes ameaças por parte das forças de segurança: “Eles estão sempre forjando situações para nos incriminar, dando tiros de armas pesadas todas as noites.” Após um ataque policial, os indígenas recolheram mais de vinte cápsulas disparadas de munição letal para fuzil.
Ainda conforme o documento, em 23 de março um indígena foi espancado por policiais. Na véspera, denunciam, os agentes revistaram uma menina indígena de 14 anos que voltava da casa de farinha para sua morada, desacompanhada, e ordenaram que ela erguesse a blusa, tocando em diferentes partes de seu corpo. “Eles disseram que vinham botar essa base para nos proteger, e ela veio para nos matar. Se nós tivéssemos dado a testa, tinham nos matado”, diz uma indígena que vive em uma área retomada, cenário de recentes ações policiais truculentas.
Sequestro
A presença das forças policiais não tem coibido a violência contra os indígenas. Entre outros incidentes, em 14 de agosto de 2013 um caminhão que transportava estudantes da Escola Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro (EEITSP) foi alvejado na estrada. Ninguém foi baleado, mas estilhaços do para-brisas, que se quebrou, feriram dois estudantes não indígenas. Dez dias depois, indígenas que vivem na zona urbana de Buerarema tiveram suas casas e bens pessoais incendiados por indivíduos contrários à demarcação. Em 8 de novembro, três indígenas foram assassinados em uma emboscada, a tiros e golpes de facão.
Já em 2 de fevereiro, a PF e a Força Nacional realizaram uma ação de reintegração de posse em uma área retomada pelos Tupinambá, o conjunto São José, utilizando bombas de gás lacrimogêneo para dispersar indígenas que ali se encontravam. No tumulto provocado pelo ataque policial, M.S.M., um indígena de dois anos de idade, desgarrou-se da mãe, Rosilene Bispo dos Santos, e foi levado pelos policiais.
“A criança ficou no meio da fumaça da bomba que a polícia atirou, enquanto a mãe ficava desesperada e correndo sem saber o que estava acontecendo”, relataram os Tupinambá em carta aberta divulgada no dia seguinte ao ataque.
“De repente, a polícia levou o menino”, conta a avó da criança. “Eu me desesperei – não nego para ninguém. Eles sequestraram a criança. Porque ela estava com o pai e a mãe. Jamais deveriam ter feito isso com uma criança: tirar do braço de seu pai, de sua mãe e jogar lá para os estranhos, como quem foi achado na rua.” O menino foi retirado da área indígena e encaminhado pelo delegado Severino Moreira da Silva ao Conselho Tutelar de Ilhéus. Apenas cinco dias depois a família pôde levar a criança de volta para casa.
Nesse sentido, dizem os Tupinambá, a atuação policial não está voltada à garantia da ordem pública e ao cumprimento da lei, mas tem por objetivo assegurar interesses privados de grupos e indivíduos contrários à demarcação, inclusive por meio da vigilância de pretensas propriedades particulares, em evidente desvio de atribuição.
Ao relatar o caso, em fevereiro, o governo federal contou ter proporcionado o reencontro da criança com seus pais. Nota da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República diz que a mãe assinou um termo de devolução em Ilhéus. “O menino tupinambá havia se perdido da mãe no último domingo, durante uma operação para reintegração de posse de uma fazenda em Buerarema, a 50 quilômetros de Ilhéus. Ele estava com a mãe na mata, quando se assustou com a movimentação e se desprendeu. Ele foi acolhido por agentes da Polícia Federal (PF), que o encaminharam ao Conselho Tutelar de Ilhéus, sendo posteriormente conduzido a um abrigo.”
Conforme noticiado pela mídia tradicional, no início do ano, o comandante da Força Nacional na área foi afastado do cargo para investigação, após denúncias de que agentes da corporação atuaram na segurança de uma partida de futebol organizada pela prefeitura de Buerarema, em 5 de janeiro.
Após a instalação da base, a imprensa local noticiou que a Associação de Pequenos Agricultores de Ilhéus, Una e Buerarema (Aspaiub), entidade mobilizada contra a demarcação, enviou comitiva a Brasília, reunindo-se com representantes do STF, Presidência da República, MPF e Ministério da Defesa para obstruir a demarcação, agradecer pela presença das forças policiais no território e exigir novas reintegrações. Nessas gestões, a Aspaiub vem sendo auxiliada pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) – ponta de lança dos interesses ruralistas no país, presidida pela senadora Kátia Abreu (PSD-TO). “Quem está mandando na polícia agora são os fazendeiros”, sintetiza um indígena.
“Um só milímetro”
Os recentes ataques contra os Tupinambá inscrevem-se em uma longa história de violência expropriatória, pontilhada por aldeias extintas em massacres, devastadoras enfermidades contagiosas, estupros, tomas de terras, ações policiais truculentas e prisões ilegais de lideranças. Em junho de 2009, agentes da PF torturaram cinco indígenas com choques elétricos, o que foi confirmado por laudo do Instituto Médico Legal (IML); em 2011, um indígena teve a perna direita amputada após ser alvejado por agente da PF à paisana. Só Babau foi encarcerado três vezes – em 2010, permaneceu cinco meses preso, parte dos quais em um presídio de segurança máxima em Mossoró, Rio Grande do Norte.
“Já descobriram uma coisa: bote na imprensa, convença o povo, deixe estar que no Judiciário vai ser condenado. ‘Pode ser inocente, mas nós condenamos, porque a imprensa é que define.’ Isso é muito grave”, diz o cacique. Nos dias 25 e 26 de fevereiro, o Jornal da Band veiculou, em rede nacional, reportagens denunciando a “fraude que criou uma tribo de falsos índios”, apresentando numerosos dados equivocados e conteúdo discriminatório. Por essa razão, os Tupinambá estão processando o Grupo Bandeirantes de Comunicação. “Essa imprensa”, enfatiza Babau, “está servindo à concentração de terra no país, à corrupção e à criminalização dos pobres e dos movimentos sociais”.
Nesse quadro, diversas entidades – como a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB), o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CNDPH) e a Associação de Juízes para Democracia (AJD) – têm se manifestado demandando a conclusão do processo demarcatório. Esta última posicionou-se em ofício remetido ao ministro da Justiça, afirmando que “o único caminho para cessar a violência e garantir justiça para todos os envolvidos é a demarcação das terras”.
“Colocaram a polícia para amedrontar o povo Tupinambá, para ver se o povo recuava, não mantinha a reivindicação da terra e aceitava a negociação que o governo federal quisesse”, analisa Babau. “Foi para isso: para chantagear, violar todos os direitos. Nós, aqui na Serra, falamos assim: ‘Pode mandar toda a polícia que quiser. Nós não vamos recuar um só milímetro’. E não recuamos.”