Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental
A vitória aconteceu há três dias, na noite de 28 de maio, e o atraso foi todo meu, envolvida com viagens. Mas, ainda que mais tempo tivesse passado, o registro tem que ser feito por motivos que vão além da merecida comemoração em si. Primeiro porque é importante reconhecer, no nosso caótico e frequentemente lamentável universo jurídico, aqueles que honram a Justiça pelo simples fato de praticá-la. É o caso do juiz Raphael Ernane Neves, do Tribunal de Justiça da Comarca de Eldorado Paulista, e do Defensor Público Andrew Toshio Hayama, sediado em Registro, São Paulo.
No caso de Andrew Toshio, de quem já noticiamos diversas vitórias em defesas das comunidades do Vale do Ribeira, principalmente quilombolas, é impossível não acrescentar, ainda, o caráter ímpar de suas petições e ações, que na maioria das vezes beiram a (boa) literatura, e não apenas jurídica. Mais que isso, são peças que buscamos reproduzir na íntegra, como faremos agora, pois envolvem estudos, pesquisas e argumentos que podem sempre ser usados em situações assemelhadas, por defensores, procuradores e advogados comprometidos com povos e comunidades, Brasil afora.
A história em pauta é breve: numa atitude um tanto estranha de se entender (e isso quem diz sou eu), o estado de São Paulo publica, no dia 13 maio passado, uma Resolução (SMA nº43), criando o Parque Estadual “Taquari” e marcando audiência pública para ‘legitimá-lo’ 15 dias mais tarde, em 28 de maio. Tudo errado, claro, na medida em que, ao contrário do que vem sendo a prática neste País, audiências públicas devem ser feitas exatamente para ouvir o público envolvido na questão em pauta. Para isso, a lei estabelece que elas devem ser amplamente divulgadas; que as comunidades devem ser informadas, quando não têm acesso fácil aos meios de comunicação usuais (de que adiantam cartazes na cidade, se a comunidade vive a léguas de distância, por exemplo?); que todos devem ter tempo suficiente para se informar e firmar uma opinião a respeito do que será discutido; que as audiências devem ser realizadas em locais de fácil acesso ou na própria área onde moram as pessoas que serão afetadas… E outras tantas questões, que lamentavelmente são tão levadas a sério quanto o artigo 231, “Dos Indígenas”, da Constituição Federal.
No caso da tal audiência dos 15 dias, apenas uma das partes envolvidas teria condições de estar presente obedecendo a esses critérios: a empresa proprietária da Fazenda Colônia Nova Trieste, “inteiramente ocupada por um remanescente florestal da Mata Atlântica, que vem sendo integralmente preservado às suas próprias expensas”, como escreveu o advogado que a representa. E mais: “cumpre informar que foram intensificadas as diligências e estudos, com vistas à criação de Reserva Particular de Patrimônio Natural – RPPN em parte da área”. Ou seja: o governador de São Paulo quer gastar dinheiro público para preservar (se duvidar, de forma precária) algo que, em atitude infelizmente incomum, já está sendo cuidado pela iniciativa privada.
Mas há também os que não têm as mesmas possibilidades em termos de acesso à informação e assessoria jurídica particular, embora, de outras formas, venham cuidando não sei há quantas décadas e com total zelo de área que é seu território tradicional e que seria atingida também pelo Parque. Embora a área a ser desapropriada envolva diretamente a Fazenda que quer virar RPPN, a chamada “área de arrefecimento” prevista para a unidade de conservação (UC) atingiria também territórios quilombola, indígena, extrativistas e ainda assentados do bairro Guapiruvu. E tudo isso sem que o direito à consulta livre, prévia e informada, previsto pela Convenção 169 da OIT (que está apenas baixo da Constituição de 1988 em termos legais, conforme reconhecido pelo STF) para os povos e comunidades tradicionais, seja sequer recordado…
No caso da Comunidade Quilombola de Pedro Cubas, reconhecida desde 1998 pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), parece que os governos paulistas têm algum ‘cuidado’ especial em relação a ela. Como escreve o Defensor no corpo da Ação Civil Pública (ACP),
“Pedro Cubas, aliás, já foi vítima da sanha do Estado de São Paulo, que, no ano de 1995, sobrepôs o Parque Estadual Intervales sobre o seu território, engendrando inúmeros conflitos e limitações ao modo de vida tradicional, corrigidos pela Lei Estadual n° 10.850/2001, a qual providenciou a desafetação de unidades de conservação incompatíveis com a presença humana que invadiram áreas tradicionais, abrindo caminho para a titulação dos territórios ancestrais”.
Ou seja: escaparam de um lado para serem atingidos de outro!
Felizmente, todos eles tinham, em Registro e respondendo pelo Vale do Ribeira, um Defensor Público que, uma vez procurado, de imediato entrou com uma ACP pedindo a suspensão do “Processo Administrativo de criação do Parque Estadual “Taquari” (…) e obrigando o Estado de São Paulo a se abster de realizar a audiência pública marcada para o dia 28 de maio de 2014, na cidade de Eldorado, tudo sob pena de incidência de multa de R$ 100.000,00”.
A liminar foi deferida no momento exato em que a audiência pública fajuta estava para ser realizada. Numa situação talvez histórica, a falácia foi cancelada com leitura pública pela Oficiala de Justiça, em alto e bom som, da decisão judicial, no cumprimento de uma determinação mais que justa.
Nossos parabéns, pois, ao Defensor Público Andrew Toshio Ayama, ao juiz Raphael Ernane Neves (cuja decisão compartilhamos abaixo), às comunidades diretamente envolvidas na questão e a seus parceiros (ISA, EAACONE, FUNAI, Comunidade Quilombola de Pedro Cubas, assentados e extrativistas de Guapiruvu).
Sabemos que a guerra não acabou, mas vencemos esta batalha. E, nestes tempos de tanta luta e sofrimento, é fundamental comemorar cada vitória!
Encerramos com uma citação que Andrew Toshio faz na ACP sobre esses parques nacionais, baseando-se nas “lúcidas considerações e as contundentes críticas de Antonio Carlos Diegues, autoridade no assunto”:
A criação de parques nacionais, com o conseqüente afastamento forçado das populações tradicionais, em benefício de uma conservação ambiental que beneficia os “visitantes urbanos”, é eticamente questionável. Na maioria das vezes, é usurpação de espaços coletivos, habitados por populações com grande tradição de saber e fazeres patrimoniais, em benefício de um neomito que favorece as populações urbanas que usam o parque para passear, se divertir. A situação está se tornando mais grave ainda quando, sob pretexto de um turismo chamado “ecológico”, as áreas que seriam “protegidas” e “intocadas” passam a ser local de um turismo de “aventura”. É tanto mais inaceitável quando se trata de populações em sua grande maioria iletradas, geograficamente isoladas, sem poder político, mas que por séculos, por seu modo de vida, são responsáveis pela conservação do chamado “mundo natural”. Isso é mais grave quando se sabe que a permanência dessa população tradicional em seus hábitats pode levar, de forma mais adequada, à conservação da biodiversidade. Trata-se, no final, de uma questão ética, de direitos humanos e da construção de uma democracia real no Brasil. (DIEGUES, Antonio Carlos Santana. O mito moderno da natureza intocada. 3º ed. São Paulo: Hucitec, 2001, p. 41).
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Para ler ou baixar a Ação Civil Pública, clique AQUI.
chega de UCs de proteção integral no Vale do Ribeira.