O antropólogo Fábio Mallart passou mais de cinco anos estudando o cotidiano da Fundação Casa, das relações internas de poder à administração dessas unidades. Com base nisso, afirma em seu livro Cadeias Dominadas (que será lançado, nesta terça (27), em São Paulo – veja no final deste post) que o sistema socioeducativo de internação, progressivamente, está se alinhando à dinâmica de funcionamento dos presídios paulistas. “Não é exagero afirmar que a redução da maioridade penal, de certa forma, já há algum tempo foi colocada em prática pelo Estado de São Paulo”, explica Fábio em artigo escrito para este blog. Vale a leitura:
Muralhas com arame farpado, portões de aço, grades por todos os lados, menções ao Primeiro Comando da Capital (PCC) cravadas pelas paredes, postos de vigilância, negociações envolvendo internos e diretores, torturas, rebeliões, drogas e celulares.
O cenário descrito poderia ser de qualquer cadeia do sistema prisional adulto, mas se refere à dinâmica cotidiana de unidades de internação da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa), antiga Febem, de São Paulo.
Entre setembro de 2004 e novembro de 2009, passei boa parte de meus dias circulando por distintas unidades de internação de tal instituição. Durante esse período, ministrei atividades fotográficas aos adolescentes que, por terem cometido atos infracionais, cumpriam medida socioeducativa de internação nos complexos do Brás, Franco da Rocha, Vila Maria, Raposo Tavares e Tatuapé – este último desativado em 2007.
Durante as atividades ministradas, deparei-me com determinadas unidades de internação conhecidas entre adolescentes e funcionários como “cadeias dominadas”. Em tais espaços institucionais, pude etnografar um conjunto de normas de conduta que orienta a experiência cotidiana dos adolescentes. Regras que estipulam desde as vestimentas adequadas para um dia de visita, ou impedimentos relativos ao contato entre os adolescentes e os funcionários, até diferenciações entre os próprios jovens. Vale salientar que tais prescrições são semelhantes às que operam em instituições prisionais orientadas pelas políticas do Primeiro Comando da Capital, coletivo de criminosos que atua dentro e fora do sistema penitenciário paulista.
De fato, no cotidiano das “cadeias dominadas”, os adolescentes orientam as suas ações de acordo com as diretrizes do PCC. Em tais unidades há uma série de posições nas quais as lideranças dos adolescentes se distribuem: faxinas, pilotos, setores e torres. Termos que – vale notar – também operam no sistema prisional adulto e que designam as funções e as responsabilidades, mas também os procedimentos de conduta. Trata-se de espaços institucionais que se configuram como verdadeiros campos de batalha, nos quais se processam conflitos silenciosos, disputas violentas e tensões. Locais em que os ideais de “Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade” que, segundo os jovens, constituem o lema do Primeiro Comando da Capital, fazem parte do léxico mobilizado pelos internos.
Tais reflexões, cravadas em algumas páginas de meu livro que será lançado no dia 27 de maio – fruto de pesquisa de mestrado pelo Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo – evidenciam a simetria existente entre tais unidades de internação da Fundação Casa e o sistema carcerário paulista.
A nomeação de Berenice Gianella como presidente da instituição, em junho de 2005, após ocupar os cargos de corregedora-geral do sistema penitenciário do Estado de São Paulo e secretária adjunta da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), bem como o fato de que, no mesmo período, funcionários do sistema carcerário assumem a direção de algumas unidades de internação, simbolizam o deslocamento da Fundação Casa em direção à dinâmica de funcionamento do sistema penitenciário.
É importante salientar que, em março de 2005, Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, anuncia a transferência de mais de 700 adolescentes de diversas unidades de internação para uma penitenciária localizada no interior do estado. No mesmo mês, 240 internos do complexo de Franco da Rocha são transferidos para um presídio de segurança máxima em Taubaté. Diante de tais medidas – e de muitas outras adotadas ao longo dos últimos anos, todas elas marcadas por uma lógica punitiva-carcerária – não é exagero afirmar que a redução da maioridade penal, de certa forma, já há algum tempo foi colocada em prática pelo Estado de São Paulo.
De fato, nota-se que o sistema socioeducativo de internação, progressivamente, alinha-se à dinâmica de funcionamento dos presídios paulistas. Contudo, tal processo de simetrização não deve ser compreendido tendo-se em vista apenas as ações estatais. Se por um lado a dinâmica das “cadeias dominadas” reflete o crescimento de políticas governamentais eminentemente punitivas, por outro, aquilo que acontece dentro das muralhas institucionais está em sintonia com o que ocorre nos presídios e nas periferias urbanas, territórios nos quais também se constatam práticas e políticas do PCC. Nesse cenário, vê-se que as fronteiras entre o dentro e o fora estão cada vez mais borradas.
Debate e Lançamento do livro Cadeias Dominadas, de Fábio Mallart
Terça (27), às 19h, na Ação Educativa: Rua General Jardim, 660, Vila Buarque, São Paulo (SP). Debate com a mediação de Bruno Paes Manso jornalista e pós-doutorando do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Flávio Américo Frasseto, defensor público da Infância e Adolescência, e Vera da Silva Telles, professora do Departamento de Sociologia da USP.