Publicado em Vice, em 4 de julho de 2011
Fotos de Felipe Milanez & Marcelo Lacerda
“Verás que um filho teu não foge à luta!” O grito emocionado e estridente da senhora que empunhava o microfone, ao fim do hino nacional cantado no enterro, repetido diversas vezes, ainda ecoa na minha cabeça. Queria a paz da floresta, aquele silêncio marcado por leves ruídos de insetos e do vento balançando a folhagem. Queria limpar a tristeza de um dia marcado por emoções, lamentos e revoltas, e encostar novamente na Majestade. Quem sabe, conseguir falar com ela, como fazia José Cláudio Ribeiro, assassinado por pistoleiros dois dias antes junto de sua esposa, Maria do Espírito Santo, aqui dentro do assentamento onde estou, o Praia Alta Piranheira, em Nova Ipixuna, no sul do Pará, onde também está a Majestade, a maior castanheira do lote do casal. “A maior castanheira que eu já vi na vida, maior castanheira que ele, também, diz já ter visto”, escrevi para a VICE em outubro do ano passado, quando estive aqui, nesse mesmo lugar, na companhia de José e Maria.
Os pistoleiros cortaram friamente a orelha de José para provar o crime e receber o pagamento. Isso porque ele não queria vender a Majestade para virar uma tábua. Nem queria que a terra onde ela estava virasse pasto para boi. Floresta era para continuar sendo a mata. Queria a Majestade viva. Junto dele.
José Cláudio Ribeiro foi assassinado no dia 24 de maio, sete meses depois da matéria publicada. No dia de sua morte, um trecho do texto foi lido no Plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília, pelo deputado federal Sarney Filho, do PV. Nessa mesma terça-feira, os deputados aprovaram o Código Florestal, uma lei que coloca em risco as florestas e legaliza desmates. Os ruralistas que estavam na Câmara e ouviram Sarney Filho declarar o assassinato do casal vaiaram a fala do deputado. Vaiaram o cruel vaticínio de uma morte bárbara de duas pessoas inocentes que lutavam para que a terra onde viviam continuasse a ser sua, e a ser uma floresta.
No dia seguinte, o enterro do casal foi realizado com uma multidão emocionada e faixas de protesto pedindo por justiça. Nessa mesma tarde, os familiares das vítimas foram até o local onde Maria do Espírito Santo lecionava para crianças dentro do assentamento. Também foram autoridades, deputados, policiais civis, militares e federais. Nos céus, um helicóptero do Ibama compunha o cenário. Por volta das três da tarde, sem chegar a interromper os discursos, sem que nenhum dos presentes se desse conta, Erivelton Pereira da Silva, um jovem colono de 25 anos, era assassinado. Ele poderia ser uma testemunha da morte de José e Maria. Seu corpo em decomposição foi encontrado dentro do assentamento por familiares preocupados com seu desaparecimento apenas no sábado de manhã. A Polícia Civil, informada por eles, pelo Ibama e Polícia Rodoviária Federal, que faziam uma operação contra crimes ambientais na área, chegou apenas à noite, numa busca que mais lembrava um filme de terror.
“É tráfico”, me disse o delegado José Humberto de Melo Jr., que chefia a área de investigações de conflitos agrários, depois de vermos o corpo. José Batista Afonso, advogado da Comissão Pastoral da Terra, atuante defensor dos direitos humanos e quem me apresentou José Cláudio, mostrou-se indignado com o que ele considera imprudência: “É irresponsabilidade descartar a ligação entre os crimes”.
“Tráfico” é uma chancela próxima a um crime sem suspeitas e que dificilmente vai ser desvendado. O inquérito ficou sob a responsabilidade da Polícia Civil de Nova Ipixuna. Erivelton não conseguiu, em vida, produzir um discurso que provocasse uma simpatia nacional ou revolta pelo seu assassinato. Seus familiares ali presentes estavam desolados, desesperados. Sabiam que o caso poderia ficar por isso mesmo. “Isso não pode ficar impune”, me disse, ainda na mata e ao lado do corpo, seu tio João de Sousa Pereira. “Isso vai sair na TV? Vocês vão mostrar na TV?”, me perguntou. Ele sabe que uma pressão externa sobre a polícia local é o meio mais eficaz de fazer com que a investigação avance.
O percurso de dez quilômetros, da casa do irmão de José Cláudio até o Cemitério da Saudade, em Marabá, foi desgastante. Ponte sobre o rio Tocantins. No meio, a Estrada de Ferro Carajás, da Vale, parada, onde queimam pneus que produzem uma fumaça escura, espessa, fúnebre. Charles Trocate, líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, ameaçado de morte por fazendeiros da região de Parauapebas, pegou o microfone que leva até as caixas de som instaladas no capô de um Fiat Uno e disse: “Esse gesto de marchar com eles é o melhor que podemos fazer. Exigindo justiça”. Um grande viva. “Caiu Maria. Caiu José. Mas na mesma hora levantaram 100 Marias e 100 Josés”, dizia uma mulher ao microfone durante o cortejo fúnebre. “Não vamos esquecer.”
No cemitério, outro carro de som organiza a entrada dos caixões. Falas. Microfones. Sindicalistas locais. Representantes. Movimentos sociais. O hino. “Verás que um filho teu não foge à luta.” Emoção. Os coveiros impacientes, apressados. Familiares querendo estender cada minuto. Pedem para abrir o caixão. Último toque. Última imagem.
Laísa Santos Sampaio, irmã de Maria, chora muito. Era amiga, confidente, admiradora da força da irmã. Como ela, era professora da escola. “O nosso cotidiano eram ameaças”, ela me diz. “A gente acordava com os cachorros assustados.” Caminhonete, moto, barulho noturno. Terror. A morte trouxe pânico. “A maioria do assentamento tornou-se inimigo, e torciam para isso acontecer.” Ela quer explicar como o projeto era viável. Como concordava com José e Maria de que valia mais a pena coletar castanha e produzir com as sementes do que vender a tora da árvore. Que não faz sentido transformar a floresta em carvão. Mas está abalada. Maria esteve com ela na manhã de sua morte. Laisa estava na escola quando recebeu a notícia de um “acidente”. Estranhou, sabia que José conduzia bem a moto. “Ele ainda estava vivo quando cortaram a orelha. E não viu ela morrer. Ela estava mais distante”, especula. “Eles se amavam.” Alguns familiares estão em Marabá—ficaram com medo de vir, mesmo com as autoridades.
Falas. Políticos. Todos querem o microfone. Querem audiência. Poucos assentados estão por ali. Menos ainda prestam atenção. Olhares preocupados. Tensão. Medo. O pistoleiro pode ser um deles. Deputado no microfone. Um senhor de idade, desembargador e ouvidor agrário. O gerente do Ibama. Secretário do Ministério do Meio Ambiente. A caixa de som amplifica o que dizem para um público disperso, crianças girando, adultos sentados na grama exaustos, olhares perdidos.
Um sujeito de camisa vermelha chega em uma caminhonete. Uma irmã de José observa estarrecida. Fica nervosa. Desmaia. Gilzão, como ele é conhecido, é próximo do fazendeiro José Rodrigues, um dos suspeitos de encomendar a morte. “Atrevimento”, diz uma irmã. “Cara-de-pau”, a sobrinha. “Não respeitam nem o luto”, comenta outro funcionário público. Comentários sussurrados.
Dois jovens encorpados, vestindo calças pretas e camisetas polos, aproximam-se de Gilzão. São policiais federais. Batem um papo. Cinegrafistas e fotógrafos filmam fingindo não filmar. “Um dos suspeitos está aqui”, diz um funcionário de Brasília. Procuro algum lugar onde possa me abaixar no caso de um tiroteio. Não, não vai ser o caso. A violência, nessa parte da Amazônia, segue a estratégia do terrorismo. Não confronta diretamente. Age de forma sorrateira e cruel, para intimidar no imaginário. Pela expressão de pânico entre os assentados, a estratégia parece ser eficiente. Gilzão é liberado da abordagem e mistura-se aos assentados. Segue junto do grupo que vai até a casa de Maria e José.
Familiares, todos assustados, temiam que o local fosse vandalizado, incendiado, por conter possíveis provas. Retiraram os pertences. Houve mais comoção. Um ambiente muito diferente de quando eu havia estado ali pela primeira vez. Na ocasião, Maria havia preparado uma galinha para o almoço. Um suco de cupuaçu: “O melhor suco de cupuaçu do mundo”, eu tinha dito, não só para agradar a senhora, mas realmente acreditando nisso. “O Zé Cláudio colheu o cupuaçu na floresta”, ela explica.
Em dezembro, pelo telefone, José Cláudio havia me dito, animado, que as castanhas estavam começando a cair. A floresta daria início à produção característica do período de chuvas, entre dezembro e abril. Nos fundos da casa, onde o casal estendia as castanhas para secar ao sol, a mesa de castanhas estava quase vazia. A engenhoca para descascar as castanhas estava lá—ele colocava a noz na posição vertical e era certeiro com esse abridor, de pressão, de metal. A semente saía limpa, sem resíduos de casca. As castanhas que ele colheu deveriam já ter sido processadas, virado farinha ou óleo.
Na porta de entrada da casa um cartaz desgastado estampa uma foto de Lula. Na parede do quarto de José está estendida uma bandeira do Flamengo. Sobre uma mesa, amontoada de papéis, a fita de pescoço do seu crachá de “palestrante” do TEDxAmazônia, que ocorreu em Manaus, em novembro do ano passado. Claudelice Silva dos Santos, sua irmã mais nova, recolheu a fita e olhou para mim. “Foi você quem convidou ele para ir lá.” Achei que se muita gente soubesse que ele estava marcado para morrer, e outros jornalistas denunciassem o drama dele e de Maria, a pistolagem local poderia se intimidar. A palestra fica disponível na Internet. Mas a conexão na região é lenta. O acesso é complicado. Sequer houve rumores da súbita fama de José Cláudio por ali. Na sua fala, um trecho tem sido repetido após ele ter predestinado sua morte: “Vivo da floresta, protejo ela de todo jeito. Por isso eu vivo com uma bala na cabeça a qualquer hora”.
As autoridades começam a chegar na casa. O senhor ouvidor agrário promete que vai deixar algum funcionário público tomando conta da residência para que não seja destruída. Os do Incra esquivam-se, dizem que não é sua função. A Polícia Federal faz o mesmo. O senhor mostra pulso. A promessa é feita para Claudelice, diante das câmeras—câmera de uma ONG, dos assentados e do cinegrafista que me acompanha, Marcelo Lacerda. A família segue buscando tudo o que pode e enfiando no carro. Gilzão também estava por ali. Algum suspeito poderia estar junto. Algum traidor. “Algum judas”, disse uma irmã de Maria. Alguém que teria informado os mandantes, que teriam informado os pistoleiros para irem “fazer o serviço”.
Eu queria voltar para a Majestade. Rever a linda árvore que Zé Cláudio me mostrou alguns meses antes, cheio de orgulho. As autoridades estavam preocupadas em conhecer o local e dar declarações para a mísera imprensa, que, por sua vez, estava preocupada em fazer seu trabalho. Eu sabia que Zé Cláudio poderia estar por lá, de alguma forma. E decidi correr na direção que havia seguido com ele. Desci a ladeira até o igarapé, passei pelo pé de jambo, cheguei até o açaizal. Sentia que estava sendo guiado. Vieram junto dois ou três amigos dele que achavam conhecer o caminho.
Depois do igarapé, a mata ficou mais fechada. A luz que rebatia na folhagem ganhou um ar esverdeado. Diversas crianças se juntaram na busca pela Majestade, elas gostavam de ir lá brincar. Mas o caminho enganava. Muitas castanheiras, todas com troncos longilíneos, elegantes. Eufórico, eu seguia por cada trilha que surgia e imaginava ser a única. Engano. Alguns gritavam que era mais por cima, outra trilha. Até que parte do grupo a encontrou. “Achei, é aqui”, ouvi uma voz doce e juvenil.
A Majestade foi mostrando sua imponência. À medida que me aproximei dela, as crianças espontaneamente seguraram as mãos umas das outras e rodearam o caule de 11 metros de diâmetro. Sete meses depois eu estava novamente diante desta imponente árvore amazônica. José Cláudio tinha sido enterrado esta manhã. E eu não sabia o que dizer à Majestade. “Esse é o orgulho da nossa floresta. Aqui é a minha propriedade, reserva Izabel Ribeiro, em homenagem ao nome da minha avó. E essa é a Majestade”, foi assim que José Cláudio me apresentou à Majestade. Em seguida, apontou para o chão. O que para mim parecia uma árvore caída, disse ele, “era um galho que caiu dela”. Todas as outras castanheiras ao redor, e eram muitas, seriam filhas da Majestade. “Pode dar uma volta ao redor da Majestade e se perder”, brincou. “Se depender de mim, essa árvore vai ficar por muitos e muitos anos aqui. Mesmo que ela venha a morrer, esse tronco vai ficar aqui.”
Na volta, subi na caçamba de uma caminhonete. Uma irmã de José Cláudio, a mesma que desmaiou, ainda chorava. “Ele sempre falava: ‘Eu tô preparado para morrer porque eu não vim para ser pedra. E quando morrer, quero ser cremado, e minhas cinzas jogadas nos pés da Majestade’.” A família não teve dinheiro para fazer a vontade dele. Clara, sobrinha, também na caçamba do carro, tenta apontar a Majestade no meio da mata. Não encontra. Mesmo imponente, a mata camufla sua copa. Mas ela ainda está lá. No mesmo lugar.
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Enviado para Combate Racismo Ambiental por Ione Rochael.