Trecho do Documento de Análise de Conjuntura da CNBB referente à situação dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais
Os povos indígenas, quilombolas e povos tradicionais, juntamente com seus direitos territoriais e culturais vêm sofrendo sérias ameaças por parte do Estado brasileiro e de suas classes dominantes. O Congresso Constituinte (1986-1988), por ter se constituído num desaguadouro das lutas populares que colocaram abaixo a ditadura civil-militar, foi sensível ao reconhecimento, pela nossa Constituição Federal, dos direitos dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, de outros segmentos minoritários e da necessidade da proteção ambiental no país. As Disposições Constitucionais Transitórias chegaram a estabelecer o período de cinco anos para que todas as terras indígenas fossem demarcadas.
Durante um longo período, particularmente nos anos 1980 e 1990, tivemos sucessivas crises econômicas no Brasil e no mundo e a comunidade internacional viveu o fim da Guerra Fria e a abertura de um novo momento histórico, de valorização da diversidade cultural e do patrimônio ambiental de cada país. Os setores progressistas também deixaram de investir apenas nas lutas operárias, para reconhecerem o valor das lutas territoriais, culturais, ambientais e seus protagonistas populares.
Este conjunto de fatores propiciou que o Estado brasileiro, apoiado pela cooperação internacional, realizasse um amplo processo de demarcação das terras indígenas na região amazônica, com a participação ativa das próprias comunidades e de suas organizações. A falta de interesse por parte das grandes empresas naqueles territórios distantes dos centros econômicos permitiu que este processo fosse realizado de maneira relativamente tranquila. Além das terras indígenas foi possível avançar também na definição de áreas destinadas à proteção ambiental (parques nacionais, reservas biológicas) e iniciar o reconhecimento dos territórios quilombolas.
Durante a última década este cenário começou a mudar: a ênfase na retomada do crescimento econômico; a busca de exploração intensa dos territórios do interior do país; o surgimento de uma classe dominante no campo que associa o velho latifúndio ao agronegócio e aos interesses do capital financeiro; a mudança político-partidária no Congresso Nacional, que dá mais peso a estes novos setores oligárquicos; a simpatia da mídia, que reflete estes novos interesses, tudo isso fez com que a disputa territorial passasse a figurar no centro da nossa agenda política.
Estabeleceu-se uma forte contradição: enquanto os direitos territoriais e culturais dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e das demais populações tradicionais eram cada vez mais reconhecidos no plano internacional e por setores da sociedade nacional, os setores hegemônicos na economia e na política nacionais passaram a desencadear uma ofensiva extremamente agressiva no sentido de desconstruir e anular estes mesmos direitos territoriais e culturais. A mesma ofensiva ocorre com o objetivo de desconstruir os avanços ocorridos na preservação dos nossos diferentes biomas, das nossas florestas e dos nossos rios.
Enquanto a comunidade internacional se preocupa seriamente com a preservação ambiental como estratégia para reverter as mudanças climáticas, inclusive para proteger o planeta e a própria espécie humana, os setores hegemônicos hoje, na economia e na política nacionais, pretendem fazer tabula rasa dos direitos territoriais dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais, principais responsáveis pela preservação de nosso vasto patrimônio ambiental.
Dentro deste contexto se compreende a pressa com que os setores econômicos e políticos se mobilizam para aprovar a PEC 215, que retira o poder de demarcação das terras indígenas do Poder Executivo e o transfere para o Poder Legislativo, além de permitir a revisão e anulação de todas as demarcações já feitas e a extinção de todos os territórios quilombolas e áreas de proteção ambiental.
As “audiências públicas” que estão sendo realizadas no interior do país para “debater a PEC 215” mais parecem um teatro para se divulgar um discurso pré-constitucional, onde a visão integracionista, que se acreditava superada na nossa história, volta com toda a força. Segundo esta visão, não é mais necessário demarcar terras indígenas, pois o desejável é a “integração definitiva dos indígenas na sociedade nacional”. Além da PEC 215 existem outras proposições legislativas que também pretendem restringir ou anular os direitos dos povos indígenas, além de ações no Supremo Tribunal Federal para extinguir os direitos dos povos indígenas e das comunidades quilombolas.
Paralelamente a este ataque sistemático por parte da nova oligarquia agrária-empresarial-financeira do país, percebe-se que o Estado não está aparelhado de forma adequada para demarcar e proteger os territórios dos povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais, nem para defender as áreas de proteção ambiental. Faltam recursos humanos, materiais e financeiros, além de estruturas governamentais eficientes, para que estes territórios sejam protegidos de maneira adequada, como manda a nossa Constituição Federal.
O embate que testemunhamos cotidianamente na mídia, nas redes sociais, nas ruas, no Congresso Nacional, no Poder Judiciário, no interior do Governo e nos territórios do interior do país é um embate de dimensões históricas. Neste embate não se disputa apenas a demarcação de uma ou outra terra indígena; a titulação de uma ou outra comunidade quilombola; o reconhecimento de uma ou outra população tradicional; a proteção de uma ou outra reserva biológica.
Neste embate se disputa uma concepção de país: uma concepção baseada nos direitos territoriais, culturais e ambientais do conjunto do nosso povo, ou uma concepção baseada nos interesses imediatos das nossas elites econômicas.
Essa realidade nos coloca ao menos cinco grandes desafios:
1. A sociedade brasileira precisa conhecer a história e a situação atual dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e das populações tradicionais, também conhecer a história e a situação atual das áreas de proteção ambiental.
2. A sociedade brasileira tem o direito de se pronunciar com relação às ameaças que todos estes povos e territórios sofrem por parte de segmentos da própria sociedade e do Estado, pois é uma possibilidade de destino do nosso país que se encontra hoje seriamente ameaçada.
3. A sociedade brasileira está desafiada a criar novos canais de participação e redes de solidariedade que garantam os direitos dos povos indígenas, comunidades quilombolas e populações tradicionais, assim como os direitos do conjunto da população em ter as áreas ambientais públicas protegidas.
4. O Estado brasileiro, através dos três poderes da República, é desafiado a cumprir com o mandato constitucional que manda proteger os povos indígenas, as comunidades quilombolas, os segmentos mais frágeis da população e proteger o patrimônio ambiental do país.
5. A aprovação da PEC 215 pelo Congresso Nacional é uma ameaça real aos direitos constitucionais dos povos indígenas, de todos os pobres do campo e aos direitos da natureza, além de significar uma anulação de parte significativa da contribuição da CNBB, através de Dom Luciano Mendes de Almeida, ao processo constituinte e à Constituição Federal aprovada em 1988. O que se pode fazer para que este grave retrocesso institucional não ocorra no país?
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Paulo Daniel.