*para Combate Racismo Ambiental
Às vésperas de nossa partida para missão na Prelazia do Xingu, Pará, Amazônia, que se deu no dia 27 de setembro de 2011, uma pessoa amiga me perguntou se eu não tinha medo dos índios. Ela estava vivamente preocupada. Mais recentemente, um padre me argüiu se, no Xingu, os índios são antropófagos.
O senso comum e mesmo os ambientes científicos conservam uma visão mitológica sobre a Amazônia, enraizada há anos. Por isso refleti sobre a melhor forma de mostrar que os mitos, alguns até valorosos do ponto de vista folclórico, revelam apenas o exótico de uma realidade. E o caminho que encontrei foi fazer uma descrição de como é, aqui, o nosso dia a dia. Afinal, missão não se dá na abstração nem nos elementos exóticos e nos estereótipos, mas na concretude dinâmica do cotidiano.
A Amazônia não é um bloco homogêneo! É diferente estar no Acre, Rondônia, Roraima, Pará. No estado do Pará, uma coisa é estar na Transamazônica, o nosso caso, outra coisa é estar na área ribeirinha, numa aldeia indígena ou em Belém, na Capital. Cada região se acha em diferentes fases de avanço capitalista – mas ele segue avançando em todas elas – e diferentes momentos de resistência ou adesão a esse neocolonialismo apelidado de desenvolvimentismo.
A Amazônia tem diversos povos, grande parte concentrada em cidades, que vão crescendo muito, e o Pará, rotulado de violento, não é uma terra de bárbaros. O povo paraense e tantas pessoas que migraram para ali são acolhedores e, aí sim, sofrem duas violências justapostas, a dos ricaços, mais primitiva, e a do Estado brasileiro, ora sutil ora escancarada. O assassinato de Dorothy, ocorrido em Anapu no dia 12 de fevereiro de 2005, é um caso típico da violência ‘primitiva’, quando enricados formam um Consórcio e contratam pistoleiros para eliminar alguém. Já a militarização da área de Belo Monte, com a Força Nacional instalada dentro dos canteiros de obra da barragem para inibir a organização dos operários confinados, que passam de 20 mil, e para impedir o acesso e a mobilização dos atingidos é um caso típico da violência do Estado.
O Estado brasileiro na Amazônia é, ao mesmo tempo, fraco e forte! Para quem? A presença do Estado brasileiro é forte para o Agronegócio e fraca para a Agricultura Familiar; é forte para as mineradoras e donos de barragens e fraca para os ribeirinhos e indígenas, cujos direitos, conquistados historicamente, estão sendo constantemente violados e correm risco de regredir na Constituição brasileira; é forte para o Madeireiro e fraca para o camponês que deseja roçar uma Tarefa para plantar o seu sustento.
O caso do Senhor Alexandre, no Arroz Cru, à margem do Xingu, é anedótico. Ele foi à casa de seu compadre e vendo lá, na parede, um rabo de Tamanduá dependurado, pediu-lho para fazer um chá. Os fiscais do IBAMA chegaram ao seu rancho e lhe deram uma multa, apesar de sua explicação. O detalhe curioso é que a moradia do Senhor Alexandre é bem à frente do local onde está em construção a barragem de Belo Monte, que tira bem mais que um rabo de bicho para fazer remédio.
Um dos mitos mais fortes, porém, é o do paraíso terrestre. Crê-se na terra toda coberta de floresta, com rios imensos, aves e animais diversos, em plena harmonia, e silvícolas em aldeias, de flecha na mão, com suas partes pudendas cobertas de folha, e o branco como o grande inimigo, o demônio nesse paraíso.
A Amazônica é como outro lugar qualquer! O chamado Estado do bem viver, tão badalado em segmentos de viés ambientalista e eclesial, só existe aqui como utopia. O que há é o comum em todo país capitalista: gente explorando gente, e empresas transnacionais se apropriando de bens naturais, buscando materializar seus papéis-moeda, transtornadas com a crise capitalista mundial; e gente e organizações que resistem, entre as quais a Prelazia do Xingu, na pessoa de d. Erwin.
O indígena, que não é nem o ‘bom selvagem’ nem o ‘antropófago’, pois tem as suas contradições normais enquanto seres humanos, é uma raça em extinção! O grande inimigo do indígena, do ribeirinho, do imigrante empobrecido de qualquer cor, da floresta não é o branco com sua cultura, mas o Capital. O chamado choque de cultura nada mais é do que a força do mais forte se sobrepondo à fragilidade dos mais fracos, massacrando-os, à busca de acumulação de riquezas.
Belo Monte nesse exato momento exemplifica a ação devastadora do Capital no Xingu. Orçada inicialmente em 9 bilhões, hoje passa dos 30 bi com pouco mais da metade das obras construída. Embora cacifada pelo governo federal, é um empreendimento privado cujo objetivo é gerar energia-mercadoria, que servirá principalmente às grandes empresas do Sudeste, com Linhão de 2 mil Km já leiloado, percorrendo desde o Xingu até MG. Há diversos indígenas perambulando pelas ruas de Altamira, empobrecidos, arrancados de suas aldeias, vulneráveis às diversas drogas, mas principalmente ao álcool, vítimas do preconceito, por causa de Belo Monte. Num processo neocolonial, eles são aliciados pela tática do espelho, ‘ganhando’ uma roupa, um alimento enlatado, um carro, tudo para quebrar-lhe a resistência à hidrelétrica.
Como é da índole de qualquer povo, também o indígena quer melhorar de vida e, aproveitando-se disso, empresas e governos lhe confundem a cabeça com migalhas e promessas. Mas a qualquer momento o indígena poderá sentir-se traído e poderá reagir, mudando a conjuntura atual.
Outro mito também considerável é da tábula rasa, como se a missão na Amazônia partisse do zero. Há um longo caminho já construído! A Prelazia do Xingu avançou muito, tanto na organização de comunidades vivas quanto na estrutura de serviço. Temos uma casa em Brasil Novo, a 45 km de Altamira, sede da Prelazia. Parece obvio, mas é importante afirmar isso! Pois há quem pense que ficamos na floresta, ou numa aldeia, e que nos cobrimos de folhas como Adão e Eva no paraíso, envergonhados depois da arrumação da serpente.
A nossa casa é modesta, mas confortável e grande! A casa, o escritório, o salão paroquial, a quadra de esportes, a matriz ocupam todo um quarteirão no centro da cidade. A Paróquia tem, ainda, um centro de formação modesto – mas não precário – conhecido por Barraco Queimado, uma moto e uma caminhoneta para atendimento às comunidades, algumas a 40 km de distância, estrada de chão, intransitável para carro pequeno no longo período chuvoso.
A história das comunidades nesse trecho da Transamazônica, no Oeste do Pará, está associada a d. Erwin e aos padres Oscar (in memoriam) e Alírio, dois missionários gaúchos que trabalharam na Transamazônica a partir da década de 70. Há casos folclóricos deles. Oscar gostava de dizer que ‘a fé vem pelo pé!’. É uma frase missionária! Arriscaram a vida e aproveitaram toda a sua energia na implantação das CEBS, cujas sementes estão vivas até hoje, e na organização do povo, através de associações, sindicatos e do Partido dos Trabalhadores, à época um partido enraizado na base. As famílias da Transamazônica foram atraídas pela política do Estado brasileiro de colonização da Amazônia, supostamente para defendê-la do domínio estrangeiro. Ironicamente, a Amazônia hoje está dominada pelo capital financeiro internacional. Por trás dos grandes empreendimentos há sempre algum grande banco. Essas famílias, então, sentiam-se abandonadas e inseguras nessas terras, e por isso o trabalho da igreja engajada foi muito importante. Uma questão de vida ou morte!
Entre as principais heranças desses missionários, estão os grupos de vizinhos e os almoços comunitários, já que não aceitavam alimentar-se sozinhos em casa de fazendeiros ou colonos.
Os grupos de vizinhos são semelhantes aos grupos de reflexão. Usam a própria bíblia e, com ela, debatem a realidade. Os almoços comunitários seguem-se imediatamente às celebrações. Neles aparece de tudo, desde a polenta do Sul até o Baião de dois do Nordeste. Cada família chega carregando uma vasilha com a comida já pronta e coloca numa mesa improvisada, que fica lotada e farta. Uma que outra comunidade tem uma cozinha simples e o almoço é feito ali, em mutirão. É uma continuação da comunhão! É uma extensão da mesa eucarística, com comida típica dos diferentes povos das várias regiões do Brasil – pois assim é o povo da Transamazônica -, quando as pessoas, juntamente com o missionário, sem nenhuma pressa, se confraternizam.
Além do trabalho de animação das comunidades na Paróquia Corpo e Sangue de Cristo, em Brasil Novo, há um trabalho de engajamento social. Em nível local, temos a Comissão Justiça e Paz, a qual já existia, mas cuidamos de revigorar. Fazemos reuniões, encontros, mobilizações. Já paramos a Transamazônica por diversas vezes a fim de exigir melhorias na estrada e, atualmente, a bandeira principal é a melhora da qualidade de água para abastecimento humano na cidade de Brasil Novo, que é muito precária. A fragilidade das políticas públicas em geral é grande justamente pela fragilidade da estrutura do Estado nessa perspectiva.
Em nível regional, trabalhamos junto aos atingidos de Belo Monte. A barragem atinge diretamente próximo de 60 mil pessoas, mas afeta negativamente toda a imensa área do Xingu. Esse trabalho tem um caráter sindical, político e popular.
O caráter sindical é a luta pelo direito! Segundo dados do Movimento dos Atingidos por Barragens, 70% das famílias atingidas no Brasil ficam fora da lista de indenização ou são mal indenizados. Em Belo Monte, pelo tamanho do empreendimento e pela diversidade dos atingidos (indígenas, ribeirinhos, camponeses, urbanos, oleiros, carroceiros, pescadores…), essa situação é pior. Estamos às vésperas do enchimento do lago, previsto para janeiro de 2015. Somente em Altamira, em torno de 30 mil pessoas deverão ser deslocadas e, dessas, apenas 150 famílias já foram transferidas para umas casinhas de concreto construídas pela Norte Energia, dona da barragem. Não há moradias para todas as famílias e, provavelmente, não haveria tempo hábil para sua construção. Além do mais, a prioridade absoluta dos donos da barragem é o muro de represamento do rio e a instalação das turbinas.
No caráter político, a luta é de resistência aos grandes projetos, entendendo que não são para beneficiar o povo, e pela mudança do modelo energético do país, que é centralizado e ditatorial. As barragens e a exploração de minério, por exemplo, são impostas de forma prepotente, planejadas e implantadas de acordo com a demanda do capital e, não, segundo a necessidade do povo brasileiro. Uma frase que resume esse trabalho é ‘águas para a vida, não para a morte!’, uma afirmação que exprime um sonho e um esforço concreto. Outra frase que revela o nosso projeto de sociedade é ‘água e energia com soberania, distribuição de riqueza e controle popular’, cunhada por ocasião do encontro nacional do MAB, que ocorreu nos dias 5 a 7 de setembro de 2013, em São Paulo.
Tanto no caráter sindical quanto político, nossa força é a pressão popular entendida como a somatória da força própria (base organizada), alianças táticas com outros segmentos organizados e simpatia da sociedade. Isso exige um trabalho de base continuado e muita habilidade para a construção do círculo o mais amplo possível de alianças, mas sem abrir mão do que é central.
Essa é uma possibilidade de missão na Amazônia, sem mitos, sem fotos chocantes. E toda pessoa sensível à causa do reino – seminarista, padre, leiga, leigo – é bem-vinda e, com a graça de Deus, terá momentos felizes com alguns desafios normais da vida, aprenderá muito e fará um bem imenso ao povo.