O bispo do Xingu conversou com papa Francisco em audiência particular. Disse que o ex-presidente não honrou o combinado e que, com Dilma, não há diálogo
Bruno Calixto – Época
O bispo Dom Erwin Kräutler pode caminhar tranquilo quando visita sua família em sua terra natal, a Áustria. Quando viajou para Roma, no começo de abril, também não precisou se preocupar com a segurança. Não pode dizer o mesmo de sua terra adotiva, o interior do Pará. Bispo da prelazia do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Dom Erwin vive com escolta policial há nove anos, ameaçado por pistoleiros. Defensor dos direitos indígenas, Dom Erwin conseguiu uma audiência particular com o papa Francisco. Diz que ele prepara uma encíclica sobre as questões ambientais. Em entrevista a ÉPOCA, também fala sobre os impactos negativos da obra de Belo Monte. Afirma que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não cumpriu o prometido e que Dilma não dialoga sobre o assunto.
ÉPOCA – O senhor já conhecia pessoalmente o papa?
Dom Erwin Kräutler – Conheci o papa na Conferência do Episcopado Latino-Americano e do Caribe em 2007, em Aparecida. Ele foi o cardeal de Buenos Aires e integrante de redação daquele documento. Claro, se soubéssemos que se tornaria papa, olharíamos mais de perto, não é? (Risos.) Tenho uma lembrança boa da simplicidade dele naquela conferência, a maneira humana e fraterna com que trata os outros.
ÉPOCA – Como o senhor chegou ao Vaticano?
Dom Erwin – Fui lá na qualidade de secretário da comissão episcopal da CNBB para a Amazônia e como presidente do Conselho Indigenista Missionário, o Cimi. Dom Claudio Hummes incentivou esse encontro. Me hospedei onde o papa mora, na casa Santa Marta. Aí a gente vê a simplicidade do papa. Não teve nada cerimonial, nada de seguir protocolo. Me senti em casa. Um encontro como esse é muito gratificante. Ele é simples, humilde e estou feliz de termos esse papa. Fiquei impressionado pela forma como ele recebe, como a um irmão, muito atencioso. Ele também convoca e diz: “Olha, os bispos têm de vir com propostas concretas, corajosas”. Ele espera isso.
ÉPOCA – O senhor levou propostas ao papa?
Dom Erwin – Levei quatro temas. O primeiro é que 70% das comunidades da Amazônia só têm acesso à eucaristia duas ou três vezes ao ano. Isso é lamentável. Faltam padres. No meu caso, Altamira, a prelazia do Xingu tem quase 800 comunidades e apenas 27 padres. Foi nesse contexto que o papa falou que nós, bispos, precisamos pensar em propostas concretas. Não é possível que esse povo todo, milhares de cristãs e cristãos, seja praticamente excluído do centro de nossa fé.
ÉPOCA – O senhor falou sobre temas sociais e da Amazônia?
Dom Erwin – Sim. O segundo tema é ligado aos povos indígenas. Falei ao papa que há uma campanha anti-indígena em curso. Falei da proposta de emenda que quer mudar direitos indígenas já assegurados na própria Constituição Federal. Detalhei alguns pontos sobre a situação dos guaranis-caiovás, em Mato Grosso do Sul. Eles enfrentam uma situação insuportável, com muitas mortes, e sobre o Vale do Javari, no Amazonas, onde os indígenas estão contaminados pelo pior tipo de vírus de hepatite, que não tem cura. Também lembrei do papa que ele recebeu um lindo cocar no Rio, quando veio ao Brasil na Jornada Mundial da Juventude. Pedi, em nome dos povos indígenas, seu empenho em favor dessa causa. O terceiro assunto foi a ecologia. Não podemos deixar para as futuras gerações um deserto. O papa me disse que pensa numa encíclica não só sobre a ecologia, mas também sobre a ecologia humana. A gente não pode separar o meio ambiente do ser humano, também parte do meio ambiente. Ele me disse que pediu ao cardeal Peter Turkson que fizesse um rascunho, um início de conversa sobre esse tema. Disse ao papa para não se esquecer da Amazônia nessa encíclica. O quarto ponto é o Xingu. Disse ao papa que o povo do Xingu lhe quer muito bem. Aí ele disse para também mandar um abraço a cada um, em nome do papa. (Risos.) Depois, ficou sério e afirmou: “Diga a seu povo que reze por mim”.
ÉPOCA – Na época em que a irmã Dorothy Stang foi assassinada (em 2005), o senhor enfrentou ameaças de morte e precisou de escolta. O perigo continua?
Dom Erwin – Sim, continua. Desde 2006, estou sob proteção da Polícia Militar no Xingu, 24 horas por dia. Graças a Deus não estão fardados, não é? Exigi isso na época. Você pode imaginar que perdi minha liberdade. Não posso ir e vir quando quiser. Minha vida social, encontrar pessoas, fazer visitas, fica muito restrita. Não posso ir a um aniversário sem levar dois policiais. Antigamente, eu tinha o costume de andar pela rua, entrar nas casas, conversar com as pessoas. Isso acabou. Agora, uma coisa digo, a liberdade exterior me tomaram, mas a interior não podem levar. A liberdade de dar minha opinião e defender o que for importante na vida do Brasil.
ÉPOCA – O que mudou na região desde a morte da irmã Dorothy?
Dom Erwin – Não digo que continua do mesmo jeito, mas nunca foi dada uma solução real. Uma reforma agrária que realmente pudesse ter esse nome nunca ocorreu. Sempre o latifúndio e as grandes extensões de terra são favorecidos nas políticas públicas. O pequeno produtor depende apenas dele mesmo. Como não têm estrutura para produzir, eles vêm para as cidades, que incham. Vivemos em Altamira o caos da hidrelétrica de Belo Monte. Em todos os setores: saúde, educação, transporte, segurança e habitação. Muitos crimes. Assaltos todos os dias. Um homicídio atrás do outro. Claro que vem gente boa para a cidade, mas também vem bandido.
ÉPOCA – O senhor falou de Belo Monte com o papa?
Dom Erwin – Sim, sim. Quando falamos da questão indígena e da questão da ecologia, falei de Belo Monte. Belo Monte é responsável agora pela transferência de 40 mil pessoas. A maioria vivia em casas bem-feitas, de alvenaria ou madeira. Poucos moravam em palafitas. Colocam essa gente em casas feitas em série. Verdadeiras gaiolas, sem pensar na maneira de o povo se relacionar. O paraense tem uma cultura de família não só com pais e filhos, mas também vovô, vovó, uma enteada, um parente de passagem, alguém que se hospeda. Nossas famílias são assim. Confinar essas famílias àquelas gaiolas é uma agressão tremenda. Claro que os construtores dizem que é o melhor do mundo.
ÉPOCA – Essas casas são de responsabilidade da empresa?
Dom Erwin – O governo fecha os olhos e tapa os ouvidos diante dos gritos. Antes de começar a hidrelétrica, havia a exigência de cumprir condicionantes. O Ibama exigia 40 delas, e a Funai 23. De repente, deram a licença para instalar o canteiro de obras, e essas exigências não foram cumpridas. Querem cumpri-las concomitantemente com a obra. O que deveria ter sido feito em termos de hospital, escola, saneamento básico, se faz agora, enquanto Altamira está um caos. Tenho a impressão de que não terminarão de fazer tudo.
ÉPOCA – O senhor ainda acha que é possível parar Belo Monte?
Dom Erwin – Não. O estrago já está feito. O que fazemos agora é lutar para que esse povo seja tratado humanamente.
ÉPOCA – O senhor já tentou dialogar com o governo sobre essa situação?
Dom Erwin – Estive com o presidente Lula duas vezes, em 2009. Do que o Lula me prometeu, nada foi cumprido. Ele prometeu que não empurraria o projeto goela abaixo, que haveria diálogo. Não houve. Disse que não repetiríamos o monumento à insanidade que era Balbina, que o Brasil tem uma grande dívida com os atingidos por barragens e que essa dívida tem de ser paga. Quero ver onde já pagou. E disse que o projeto só sairia se fosse do agrado de todos. Isso é impossível. Tudo o que ele falou foi simplesmente para agradar ao bispo, e pronto. Fiquei muito magoado.
ÉPOCA – E com a presidente Dilma?
Dom Erwin – Com a presidente Dilma, você tem de fazer uma pauta com assuntos relacionados à conversa. Se um desses pontos for Belo Monte, mandam cortar. Não tem conversa sobre esse assunto. Quase tive uma audiência com o ministro Gilberto Carvalho. Quinze dias antes da audiência, ele já disse que Belo Monte era irreversível. Então me neguei a ir. Se, de antemão, ele já tem posição firme e diz que não tem conversa, não vou lá bater foto e dizer que o bispo visita e que o governo dialoga, quando não faz isso.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.