A solidão dos pais de Brayan, por Rocío Lloret Céspedes

Edilberto e Verónica, pais de Brayan, em sua casa em Tacamara, na Bolívia. Foto: Rocío Lloret Céspedes
Edilberto e Verónica, pais de Brayan, em sua casa em Tacamara, na Bolívia. Foto: Rocío Lloret Céspedes

Verónica e Edilberto, pais do menino boliviano de cinco anos assassinado durante assalto em SP em junho de 2013, relatam a dificuldade de retomar a vida

Por Rocío Lloret Céspedes*, em Repórter Brasil

Tacamara (Bolívia) e São Paulo (SP) – Para Edilberto Yanarico, São Paulo representa a única oportunidade que tem de trabalhar em costura e economizar algum dinheiro. Por isso diz que precisa voltar logo se quiser seguir em frente. Mas logo, para ele, pode ser tanto um mês como um ano, o tempo necessário para enfrentar suas lembranças. Porque para Edilberto Yanarico, São Paulo também representa a cidade onde mataram seu único filho Brayan, de cinco anos, com um tiro na cabeça.

É meio-dia de um sábado de janeiro e a praça principal de Tacamara parece desolada. Um idoso encurvado caminha apoiado em um pau pelas estreitas ruazinhas de terra e uma mulher de pollera (saia típica), que carrega um volume nas costas, anda por uma ladeira que dá em um campo de futebol. A única loja aberta que se vê é escura e acaba de fechar sua pesada porta antiga de madeira. As casas, umas de tijolos e outras, menores, de adobe, parecem abandonadas. Se fosse um quadro, seria uma paisagem cinza com um sol raquítico, cujos raios se perdem entre as nuvens que anunciam uma tormenta.

Tacamara é um lugarejo da província de Omasuyos, no departamento de La Paz, e está a 3.200 quilômetros de São Paulo, a selva industrial brasileira. Tem menos de dois mil habitantes e se encontra a 3.900 metros acima do nível do mar. Para chegar até aqui, primeiro é preciso viajar três horas de carro, de La Paz até Achacachi, a capital da província, e depois outros 45 minutos em um dos poucos micro-ônibus que chega ao lugar.

Antigamente, era a fazenda de uma família de proprietários de terras de sobrenome Rada. Os patrões iam ao lugar unicamente para buscar a produção agrícola e pecuária, fruto do trabalho de famílias de indígenas que consideravam sua propriedade. Mas depois da Revolução Agrária de 1953 as terras passaram a ser daqueles homens e mulheres de rosto cor de cobre que, independentemente das condições ou das baixas temperaturas, trabalhavam de sol a sol para cumprir as exigências de seus “donos”.

“Fuga” de jovens

Edilberto nasceu nessa comunidade aymara há 28 anos. É descendente direto de Saturnino Yanarico, o homem que liderou a expulsão dos patrões, depois de séculos de abusos e escravidão, segundo um ensaio de Benedicto Yanarico sobre a história do lugar. Feliciano Yanarico, o pai de Edilberto, encarregou-se de fazer o que pôde para que nunca faltasse nada a sua família, embora sempre soubesse que para ter algo deveria trabalhar sem horário nem limite de força. “Fiquei órfão de pai, por isso desde pequeno aprendi a fazer de tudo. Vendia sorvetes, depois trabalhei de pedreiro, encanador, eletricista. Fazia de tudo, porque tinha de juntar dinheiro para que meus quatros filhos estudassem”, diz, esquecendo de mencionar que também é agricultor.

É que nesse lugar as crianças crescem sabendo que nem bem tenham alguma força devem se somar a seus pais ou a outras famílias para ajudar nos trabalhos do campo. Por isso, preparar a terra com bois e jogar sementes de batata, feijão, milho, cevada ou quinua, para depois capiná-las com as mãos, é tão habitual como levantar-se e preparar o café da manhã.

Já quando chega a época de colheita, depois do agradecimento à Pachamama, ou Mãe Terra, com rituais ancestrais, os habitantes da comunidade se reúnem para tirar os frutos e separá-los: os melhores para o consumo próprio e o resto para a venda em feiras de povoados maiores ou na cidade. Esse sistema de ajuda mútua prevalece desde tempos ancestrais.

Mas há muitos anos essa cerimônia deixou de ser numerosa, porque Tacamara viu seus filhos mais jovens irem embora para trabalhar como costureiros no Brasil. Por suas ruas se vê muitas crianças pequenas ao cuidado de seus avós e pessoas que superam os 50 anos de idade; mas não muitas entre 18 e 30. Embora os dados oficiais do Censo de 2012 sobre essa comunidade ainda não foram divulgados, se alguém consulta várias pessoas aleatoriamente percebe que cada uma conhece ou é familiar de alguém que saiu.

Alguns emigraram há mais de dez anos, como uns primos de Edilberto, que já têm “uma linda casa em São Paulo”. Essa ideia, a de ter uma melhor qualidade de vida, é a que lhes motiva a ir embora. Porque ainda que aqui haja uma escola com ensino primário e secundário, um centro médico e um par de campos de futebol e futsal – tudo entregue nos últimos cinco anos –, não há rede de esgoto e há muito pouco tempo chegou a dotação de água potável e a eletricidade. Mas o que pesa mais é que as novas gerações não veem um futuro profissional estável. “Aqui não tem em que trabalhar. Alguns são pedreiros, outros motoristas, mas nem sempre há trabalho, porque cada homem se encarrega de fazer sua casinha com adobe, e na cidade se ganha muito pouco”, assegura Feliciano, moreno e magro, com as mãos compridas e ossudas.

Como consequência, cada vez há mais graduados, mas poucos decidem continuar estudando, porque se veem obrigados a trabalhar para ajudar seus pais a manter seus irmãos mais novos, antes do que pensar em um futuro acadêmico. No caso dos homens, assim que deixam a escola prestam o serviço militar obrigatório por um ano e depois voltam a seu povoado para serem recebidos como heróis, o que significa que podem formar uma família. As mulheres, por sua vez, veem frustradas suas aspirações muito antes, pois seu papel é acompanhar seu marido, ajudar nas tarefas agrícolas e criar os filhos.

Durante muito tempo, Edilberto esperou pacientemente que Brayan crescesse para poder ir a São Paulo. De fato, ele foi o último dos quatro irmãos Yanarico a partir. Arriscou-se mesmo sabendo que lá as coisas seriam muito duras, pois seu irmão mais novo – Efraín – morreu doente em um hospital paulista, justamente no dia que seu pai estava para comprar uma passagem de 400 dólares para ir vê-lo, em outubro de 2011. Nunca se soube que doença acabou com sua vida.

O menino Brayan. Foto: arquivo familiar
O menino Brayan. Foto: arquivo familiar

Assim, em janeiro do ano passado, seis meses depois que o menino cumpriu cinco anos, ele, sua esposa Verónica Capcha, 23 anos, e o pequeno embarcaram em um ônibus até Santa Cruz de la Sierra. De lá pegaram outro ônibus, até Puerto Quijarro, fronteira com Brasil e, segundo as instruções que lhes deram familiares que haviam emigrado muitos anos antes, por ali cruzaram a fronteira somente com seus documentos de identidade, como estabelece um convênio binacional. Dessa maneira evitaram os “coiotes”, que costumam enganar os bolivianos dizendo-lhes que é difícil passar e que pagando 100 dólares eles podem ajudar.

“Foram quatro dias de viagem. Só levávamos roupas nas malas, como nos haviam dito que fizéssemos”, lembra ele agora, sentado em uma cadeira velha, no segundo andar da casa que seu pai lhe cedeu para que vivesse com sua família; a 15 minutos a pé da praça principal de Tacamara, por umas trilhas estreitas nas quais não cabe nem um carro. De rosto moreno, pômulos proeminentes e cabelo preto, sua extrema magreza o faz parecer frágil apesar de sua grande estatura. Mas, quando fala, é claro e direto. “Minha ideia era voltar. Eu queria ir, fazer um pouco de dinheiro e voltar para que Brayan estudasse no colégio daqui, como eu. Este ano já teríamos que matriculá-lo, porque eu não queria que fosse ao colégio de lá. Então, eu deixaria a Verónica aqui, com a criança, e depois outra vez iria ao Brasil. Outra vez iria trabalhar, iria mandar dinheiro e assim… lá ficaria sozinho, para que ela ficasse tranquila aqui com a criança, depois voltaria, porque minha ideia nunca foi a de ficar para sempre.”

Os Yanarico Capcha chegaram primeiro na casa de outro irmão mais novo de Edilberto, Carlos, quem lhes ajudou a se estabelecerem rapidamente. Em pouco tempo compraram máquinas de costura para cada um e se integraram a um sistema de trabalho que muitos bolivianos que emigram seguem: as cooperativas familiares.

Carlos era o elo com os coreanos que encomendaram o trabalho, que consistia em costurar os corpos centrais das camisetas, sem mangas nem colarinho. As peças já vinham cortadas em moldes, por isso eles só passavam a máquina. Além disso, Edilberto havia aprendido costura na Bolívia, sempre com a ideia de emigrar. Por cada unidade lhes pagavam R$ 1,50: quanto maior a quantidade, maior o ganho. Por dia, entregavam de 150 a 200 peças.

Como acontece nesses casos, a oficina estava na casa que haviam alugado as famílias de Edilberto, de seu irmão Carlos, de sua irmã Francisca e do irmão mais novo de Verónica, Wilson, em um bairro periférico da capital paulista chamado São Mateus. Quando mataram Brayan, em junho do ano passado, faltavam dois meses para que vencesse o contrato de arrendamento e todos pensavam em se mudar “a outra região mais segura”.

“Não tínhamos horário fixo nem chefes que nos controlassem, mas trabalhávamos várias horas, às vezes começávamos às sete ou às oito da manhã e ficávamos até às nove ou dez da noite, às vezes até à meia-noite também para ganharmos algum dinheiro. Aos sábados e domingos descansávamos. Como meu primo tem carro, íamos visitar meu outro primo, que já tem uma casa no centro de São Paulo, ou íamos ao parque com o Brayan”, recorda Edilberto.

Enquanto seus pais trabalhavam, Brayan costumava ficar em outro cômodo vendo televisão. Como era a única criança da casa, procuravam formas de distraí-lo. Para sorte de Edilberto e Verónica, não foi difícil que ele se adaptasse rapidamente ao idioma, de forma que não se entediava. De vez em quando saía para brincar no pátio e outras vezes se sentava ao lado dos pais. Gostava de cantar para eles ou sair para conversar com as outras pessoas da oficina. No dia que iam matá-lo apareceu com um pacote de biscoitos nas mãos que alguém lhe ofereceu. Sem falar nada, dividiu entre todos os presentes. “Foi como se estivesse se despedindo”, diz agora seu pai, baixando o olhar para não chorar.

Combate ao trabalho escravo

Junho de 2013. Uma fiscalização coordenada pelo Ministério do Trabalho e Emprego do Brasil resultou no resgate de 28 bolivianos, entre eles um menor de 16 anos, “em situação análoga à escravidão”, em três oficinas da rede Restoque S.A., empresa brasileira que produz roupa para marcas exclusivas. Os trabalhadores produziam para duas delas: Le Lis Blanc e Bourgeois Bohene (Bo.bo), cujas peças em lojas de luxo custam até R$ 2 mil.

O caso resultou na convocação, por parte da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), dos diretores da empresa para que dessem uma explicação. Isso porque em janeiro do ano passado foi promulgada a Lei 14.946, que, entre outras coisas, anula a licença de empresas que são flagradas beneficiando-se – direta ou indiretamente – de mão de obra em condição escrava. Dessa maneira, ficam impedidas de exercer a mesma atividade econômica ou abrir um novo negócio no setor por um período de dez anos no estado.

Seu elaborador, o deputado Carlos Bezerra, do PSDB, conta que conseguir sua aprovação foi um trabalho complexo, porque “infelizmente muita gente aceita o trabalho escravo como algo normal”. No entanto, com a promulgação da lei, São Paulo se converteu em pioneiro no mundo em ditar sanções duras e claras contra esse flagelo social.

O problema é que nem sempre é fácil provar esse delito, porque as grandes multinacionais terceirizam ou quarteirizam o trabalho, de maneira que é difícil demonstrar que as peças confeccionadas nas oficinas clandestinas são para suas diferentes marcas. Então, como contratam empresas intermediárias que, por sua vez, subcontratam microempresas e inclusive cooperativas familiares, é difícil detectar e sancionar os responsáveis diretos. O costureiro nem sempre sabe para quem trabalha.

Caderno de dívidas encontrado durante operação em oficina que produzia para a Le Lis Blanc. Foto: Anali Dupré
Caderno de dívidas encontrado durante operação em oficina que produzia para a Le Lis Blanc. Foto: Anali Dupré

E foi precisamente com esse argumento que a Restoque se defendeu, por meio de seu diretor Livingston Bauermeister, que minimizou a responsabilidade da empresa. “A Restoque jamais se beneficiou desse tipo de exploração. Nós exigimos de nossos provedores que cumpram a legislação trabalhista. Dois deles romperam nosso contrato sem nosso conhecimento e nos inteiramos apenas por meio da notificação do Ministério do Trabalho”, disse, diante de uma série de perguntas que lhe fizeram na Alesp.

Luís Alexandre Faria é o auditor fiscal do trabalho que se encarrega de executar fiscalizações depois de fazer uma investigação e dar seguimento a esses casos. De fala serena e amável, é difícil encontrá-lo em seu escritório, porque quase sempre está em operações. Durante uma apresentação que fez no 1º Seminário Sobre Combate ao Trabalho Escravo no Estado de São Paulo, realizado em 21 de agosto do ano passado, ele mostrou cifras e indícios preocupantes de como vivem mais de 40 mil bolivianos em – segundo seus cálculos – 12 mil oficinas de costura que se estima haver na urbe paulista.

Revelou, por exemplo, que muitos casos de trabalho em condição análoga à escravidão estão ligados ao tráfico de pessoas. A cadeia costuma se iniciar em El Alto, onde em programas de rádio se solicita jovens que desejem trabalhar como costureiros no Brasil “com bom salário”. O único requisito é ter mais de 18 anos, ainda que, como se viu, nem sempre se cumpre. A maioria provém da área rural de La Paz, tornando-se presa fácil dos chamados “coiotes”, que são aqueles que se encarregam de fazê-los cruzar a fronteira. Uma vez que chegam lá, o coiote os faz chegar a São Paulo, e então começa um acúmulo de dívidas que nunca terminam de pagar. “Encontrei folhas de cadernos que mostravam que cobravam até por um ovo a mais que haviam comido”, assegura Faria.

Ainda que o problema date de décadas, foi somente em 1995 que o estado de São Paulo começou a trabalhar para erradicar o trabalho escravo, seis anos depois de se conhecer a primeira denúncia de irregularidades nas oficinas. “No Brasil, trabalhar por muitas horas, em condições desumanas, é um crime. Temos esse programa de fiscalização, por meio do qual tiramos as pessoas daquelas condições, calculamos quanto devem receber de acordo com as leis do Brasil, fazemos com que sejam pagas e colocamos multas em autos de infração contra os exploradores”, afirma.

Vítimas

No entanto, até agora o principal problema que as autoridades brasileiras têm enfrentado, embora pareça irônico, são as vítimas, que não assumem que sua condição trabalhista é análoga à escravidão. Edwin Laime e Martín Huanca, que se identificaram como pequenos empresários bolivianos, estiveram no seminário como representantes de parte da comunidade boliviana em São Paulo. O primeiro contou que desde criança aprendeu a trabalhar e explicou que para ele isso dignifica, não o degrada, assim que propôs – quase gritando – que o tema deve ser debatido a partir de outra ótica, por exemplo, a de reduzir os custos dos trâmites de residência legal no Brasil.

Mais tarde asseguraria que “todos” chegam assim e que, embora seja verdade que há muitos jovens que são submetidos a tratos desumanos e meninas que inclusive são vítimas de abuso sexual, “com o tempo terminam estabelecendo-se e trazendo a família”. Disse isso como uma conquista, como se esse fosse o caminho que todos tivessem de trilhar para chegar a algo bom.

De estatura baixa, magro e de pele morena, ele conta que agora administra “várias empresas”. Com uma garrafa de vinho que guarda em uma mochila e tira de vez em quando para tomar um gole, diz que nas regiões fora da capital paulista, onde vive a comunidade boliviana, não somente devem se enfrentar os abusos de brasileiros, como também de paraguaios e peruanos. Para ele, a forma de trabalho de seus compatriotas é dura, “mas não escravizante como dizem”, além de ser compensada com o que bebem nos fins de semana, “para esquecer o que nos acontece”.

Faria, que já escutou o argumento que tenta justificar o trabalho escravo até a exaustão, assegura que quando se resgata uma pessoa e se explica quanto deve ganhar, ela se dá conta de que alguém está se tornando milionário com seu suor e lágrimas. “Talvez as condições de onde saíram na Bolívia também sejam extremas, mas isso não é uma justificativa. Quando nós fazemos pagarem o que lhes corresponde se dão conta de que foram explorados. Nós, como país, não aceitamos as condições nas quais trabalham não apenas bolivianos, como também brasileiros de estados mais pobres, paraguaios e peruanos. Aqui a lei considera que o trabalho em condição de escravidão é um crime”, insiste.

O outro grande problema é a falta de conhecimento de milhares de migrantes sobre tratados internacionais que lhes permitem trabalhar legalmente, sem se exporem ao abuso de terem recolhidos os poucos documentos com os quais chegam, para extorqui-los. Eunice Cabral, presidenta do Sindicato das Costureiras de São Paulo, é uma mulata que criou seus filhos sozinha trabalhando em uma confecção. Incomodada, assegura que a postura que muitos bolivianos assumem diante das lutas sociais por melhores condições de vida terminam prejudicando todas as classes trabalhadoras. “Se eles dão de presente sua força de trabalho, o empresário entende que nós [brasileiros] também devemos fazê-lo. Nos despedem, porque sabem que há outro que fará o mesmo por um salário menor e piores condições. Eu conheço bolivianos que denunciaram essas irregularidades e hoje têm um bom emprego, com todos os benefícios que o país oferece para um trabalhador legalizado”, reclama.

Distante das discussões que se levam adiante sobre o assunto no estado de São Paulo, Edilberto diz que a única coisa que ele busca é poder trabalhar. Quando ocorreu o crime de seu filho, a comunidade boliviana saiu às ruas para protestar, exigindo que os responsáveis fossem punidos, e o caso foi imediatamente relacionado com as condições em que vivem e trabalham milhares de seus conterrâneos. “A cifra com a qual o consulado boliviano trabalha é de 40 mil sem documentos, mas nós acreditamos que sejam muitos mais. Todos os dias entra gente, porque aqui precisa de muita mão de obra, sempre há trabalho para quem chega com a ideia de progredir”, afirma Martín Huanca, um boliviano que se converteu no elo entre o Centro de Apoio ao Migrante (Cami), uma instituição da Igreja Católica, e seus compatriotas. Em um trabalho conjunto, ambos buscam que as pessoas que chegam se informem e sintam que podem receber ajuda para se legalizarem.

Tacamara, de onde a família de Brayan saiu para trabalhar na indústria têxtil em São Paulo. Foto: Rocío Lloret Céspedes
Tacamara, de onde a família de Brayan saiu para trabalhar na indústria têxtil em São Paulo. Foto: Rocío Lloret Céspedes

Semanas antes de Brayan morrer, Edilberto e Verónica começaram a ter sonhos estranhos. Um dia o pai viu os assassinos na esquina de sua casa. Tudo estava escuro e eles estavam reunidos ali, como costumavam fazer sempre. “O que será?, pensei”, conta agora. Ela, por sua vez, viu nos sonhos que esfaqueavam a criança e sentiu que algo ruim iria acontecer.

Na noite de 28 de junho, seus maus presságios foram cumpridos. Quando Edilberto e seu irmão Carlos voltaram em seu carro para casa, 20 minutos antes das 23 horas, apareceram cinco jovens armados que os agrediram e exigiram dinheiro. “Não me lembro bem, era como um filme, não entendia o que estava acontecendo. Demos todo o dinheiro, havíamos juntado R$ 4,5 mil, mas queriam mais. Entregamos até o cofrinho da criança, mas não era suficiente para eles”, diz Edilberto.

Brayan começou a chorar e Verónica o estreitou contra seu peito. “Ele não gritou. Só dizia ‘não me matem, não matem minha mamãe’. Aí as lágrimas começaram a cair pela sua carinha. Aí soou um estampido forte”, relata ela. Nesse momento Edilberto perdeu a noção do tempo. Quando voltou à razão estava no Hospital Geral de São Mateus, com o menino nos braços pedindo desesperadamente que o salvassem. Era tarde, tinha morrido no trajeto.

O crime causou comoção por conta da frieza com a qual os criminosos atuaram. Depois de dispararem na cabeça de Brayan, fugiram com o dinheiro e deixaram para trás uma família destruída. “Nós organizamos marchas porque nos sentíamos desprotegidos. Só precisávamos que naquele momento o cônsul ou alguma autoridade nos desse alguma palavra de esperança. Era como se um de nossos filhos tivesse morrido”, recorda agora Edwin Jimmy Laime, tomando um longo gole de vinho de sua garrafa.

Por causa da tragédia, Edilberto e Verónica voltaram a Tacamara com o ataúde de seu filho a tiracolo para enterrá-lo em um cemitério que está a poucos quarteirões de sua casinha. As autoridades bolivianas os ajudaram com os trâmites de repatriação e lhes prometeram um emprego estável a ele, para que ficasse no país. Acreditando nisso, dias depois viajou a La Paz e foi à Chancelaria, como lhe haviam dito, e responderam que ainda não havia vagas. “Na segunda vez em que fui, nem me deixaram entrar. Por isso, agora penso que tenho de voltar a São Paulo, assim que eu supere isso. Lá deixei minhas maquininhas, que devem estar se deteriorando. Estou esperando que Verónica fique boa e não sei, que passe um pouco mais de tempo, porque não sei como será ir e não ver mais o Brayan.”

Verónica ficou doente de desgosto. Pequena e morena, de mãos rechonchudas, durante a entrevista prefere manter esse silêncio de luto que é difícil de romper. Desde que a tragédia aconteceu não deixou de pensar em seu filho, e aos 23 anos parece uma mulher de 50. Envolta em uma manta para evitar que o frio andino lhe provoque outro mal, responde apenas que também pensar em ir, embora em seu caso o retorno ainda seja mais uma tortura do que uma esperança. “Muitas vezes sonho também. Brayan me diz que está bem, que não tem mais medo de dormir com a luz apagada, como quando era vivo”, balbucia.

Mas nenhum consolo é suficiente. Não chora mais e sua tristeza é mais forte que uma lágrima. Talvez por isso não sabe nem se importa que os assassinos de seu filho tenham sido mortos na prisão, depois de sua captura. Nenhum dos cinco passava dos 20 anos e a imprensa brasileira diz que o caso causou tanta indignação inclusive entre os presos, que os mataram um a um, como um ato de vingança pela morte de Brayan. “Não sei, não disseram nada para nós, nem a advogada que nos ajudou nos liga, de qualquer forma o que podemos fazer com isso?”, diz Edilberto.

Tanto ele como ela estão conscientes de que precisam voltar a trabalhar para terem algum dinheiro. Para o momento, Feliciano, o pai de Edilberto, lhes deu um carro que este usa como táxi, especialmente às quintas-feiras e domingos, quando há feira em Achacachi, mas o ganho bruto chega somente a 90 ou 100 bolivianos [entre R$ 28 e R$ 32, aproximadamente]. Nos outros dias ficam em casa, ajudando na semeadura ou sentados no pequeno pátio em frente ao quarto dos dois, ali onde Brayan costumava sair a cantar aplaudindo em volta deles: “Será papai, será mamãe?”.

* Tradução: Igor Ojeda. Reportagem produzida com apoio da Fundação Rosa Luxemburg

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