“Precisamos ter uma medida exata do desperdício, porque existe um certo pânico quando se trata dessa questão”, adverte o engenheiro agrônomo
IHU On-Line – Qual é o tamanho do desperdício de alimentos no Brasil? Não há resposta para essa pergunta, alerta Walter Belik em entrevista concedida à IHU On-Line, pessoalmente, em ocasião da sua participação no XV Simpósio Internacional IHU. Alimento e Nutrição no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que ocorreu na Unisinos entre os dias 5 e 8 de maio. Belik explica que as pesquisas realizadas para identificar qual a porcentagem dos alimentos desperdiçados no país não seguem metodologias “compatíveis com a realidade brasileira”. “O que é o desperdício, afinal de contas?
Muitas pessoas que fazem pesquisa de desperdício vão ao varejo ou à feira e perguntam para o feirante quanto ele perdeu. Então, como ele calcula isso? Se ele vende a banana por R$ 3,00 à dúzia e no fim da feira vende por R$ 1,50, ele calcula que perdeu 50%. Nesse caso, ele fez uma conta em valor, ou seja, desperdício para ele é isso. No caso do peso, é complicado também fazer uma avaliação, porque, afinal, como você pesa as coisas? A melancia, por exemplo, tem bastante peso por causa da casca, e consumimos muito pouco dela, embora os nutricionistas insistam para utilizarmos a casca da melancia para diversas coisas. Nesse sentido, se você pesa o que está jogando fora, o peso é a maior parte do componente alimentar daquele alimento. Então, essas estatísticas são muito enviesadas por conta disso”, assinala.
Segundo ele, é possível ter uma evidência maior do desperdício de alimentos na fase de produção e de transporte. Contudo, “o desperdício no consumo é baixo, porque a população brasileira é pobre e pobre não joga fora a comida; come tudo, tenta aproveitar tudo, até resto de alimentos para uma nova refeição”. Nesse cenário de desperdício, acentua, o modelo físico adotado pelas CEASAs “não funciona mais”. “As centrais de abastecimento não se atualizaram. Então, ainda se tem um sistema de centrais de abastecimento que perderam a sua identidade e a sua função. No passado, elas foram criadas para aproximar o produtor do consumidor, então tinham justamente a função de atacado. À medida que as cidades foram crescendo e os supermercados se desenvolvendo, as centrais perderam essa função.”
Belik também chama atenção para a discussão acerca do padrão de consumo adotado em relação aos alimentos, no qual o “consumidor valoriza o aspecto cosmético da fruta, da verdura. (…) Se ela está com uma manchinha, ou feia, enrugada, ou se a cenoura não tem aquele tamanho ou formato exato, ela já não serve para o consumo. Então, como o consumidor rejeita, o varejo acaba rejeitando, e o produtor nem colhe”. Isso está mudando na Europa e em alguns lugares dos Estados Unidos, mas, principalmente na Europa, existem campanhas públicas para consumir alimentos que não são perfeitos, bonitos, mostrando que a qualidade nutricional está nessa diversidade. As pessoas são diferentes, por que os vegetais têm de ser iguais, todos exatamente iguais?” E dispara: “O consumo é ditado pelo mercado, sim, porém o mercado se move em função da consciência das pessoas. Por isso, tem de conscientizar as pessoas para o consumo diferenciado”.
Walter Belik é graduado e mestre em Administração pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas. Possui ainda pós-doutorado na University of London, na Inglaterra, e no Department of Agricultural & Resource Economics da Universidade da Califórnia, Berkeley, nos Estados Unidos. Em 2000, recebeu o título de professor livre-docente pelo Instituto de Economia da Unicamp, universidade onde está vinculado desde 1985. De uma trajetória de pesquisas relacionadas à avaliação da política agrícola e agroindustrial, concentrou as atenções nos aspectos do processamento e da distribuição de alimentos. Atua principalmente na discussão das alternativas de políticas de segurança alimentar, analisando o papel do abastecimento alimentar e a logística da distribuição. Confira a entrevista.
IHU On-line- Em que medida o desperdício de alimentos, seja na produção, no transporte ou no consumo é um dos implicadores da fome?
Walter Belik – Em primeiro lugar, precisamos ter uma medida exata do desperdício, porque existe um certo pânico quando se trata dessa questão, uma vez que se utilizam muitas medidas para avaliá-la, as quais não são compatíveis com a realidade brasileira. Então, é preciso, primeiro, definir qual base de dados está se usando para calcular o que vem a ser o desperdício: se considera o desperdício em termos de valor, se considera o peso, se consideram as calorias. O que é o desperdício, afinal de contas? Muitas pessoas que fazem pesquisa de desperdício vão ao varejo ou à feira e perguntam para o feirante quanto ele perdeu. Então, como ele calcula isso? Se ele vende a banana por R$ 3,00 à dúzia e no fim da feira vende por R$ 1,50, ele calcula que perdeu 50%. Nesse caso, ele fez uma conta em valor, ou seja, desperdício para ele é isso. No caso do peso, é complicado também fazer uma avaliação, porque, afinal, como você pesa as coisas? A melancia, por exemplo, tem bastante peso por causa da casca, e consumimos muito pouco dela, embora os nutricionistas insistam para utilizarmos a casca da melancia para diversas coisas. Nesse sentido, se você pesa o que está jogando fora, o peso é a maior parte do componente alimentar daquele alimento. Então, essas estatísticas são muito enviesadas por conta disso.
A identificação do desperdício por caloria também é complicada. Ou seja, têm alimentos que são muito mais calóricos, porém não quer dizer que sejam bons. Então, eu estou jogando fora bolacha recheada, mas isso não serve para nada, é uma caloria absolutamente vazia.
Então há um alarmismo generalizado com relação ao tamanho do desperdício. Por isso, a primeira coisa que devemos fazer antes de responder à pergunta é avaliar qual o tamanho do desperdício no Brasil, e nós não temos essa informação. Nós sabemos que o desperdício, na fase de produção e transporte, é grande, mas o desperdício no consumo é baixo, porque a população brasileira é pobre, e pobre não joga fora a comida; come tudo, tenta aproveitar tudo, até resto de alimentos para uma nova refeição.
Então, voltando à produção: o que é uma perda normal e uma anormal? Por exemplo, uma mudança climática — o caso de seca — é perda, ou seja, um evento climático que causa uma perda de alimentos. Esse evento poderia ter sido evitado? Sim, poderia, se houvesse irrigação, por exemplo. Então, as técnicas de produção não são adequadas ao que se imagina. Também há muita perda em função dos preços. Se o preço caiu muito, o agricultor não colhe determinado produto. Isso poderia ser evitado através de uma política pública na qual o agricultor poderia ser remunerado de alguma forma, ou o Estado poderia comprar esses alimentos e montar estoques reguladores, etc.
Voltando, portanto, à pergunta inicial: nós sabemos que temos uma perda, porém não sabemos de quanto é nem onde ela está, como se fosse uma “entidade fantasma”, e também sabemos que precisa haver políticas públicas para fazer isso aí. Essa perda, que seria aproveitada de fato, poderia alimentar muita gente, porém, às vezes, isso não interessa muito para o mercado.
IHU On-line- Essa perda é muito determinada pelo mercado, pelo consumo, porque alguns agricultores já selecionam o produto durante a colheita?
Walter Belik – Essa é uma discussão enorme que está acontecendo, mas que ainda não chegou ao Brasil; nós ainda vivemos certa imitação do padrão de consumo, que não tem nada a ver com a realidade. Então, o consumidor valoriza o aspecto cosmético do produto, da fruta, da verdura, se ela está bonita, etc. Se ela está com uma manchinha, ou feia, enrugada, ou se a cenoura não tem aquele tamanho ou formato exato, ela já não serve para o consumo. Então, como o consumidor rejeita, o varejo acaba rejeitando, e o produtor nem colhe. Isso está mudando na Europa e em alguns lugares dos Estados Unidos, mas, principalmente na Europa, existem campanhas públicas para consumir alimentos que não são perfeitos, bonitos, mostrando que a qualidade nutricional está nessa diversidade. As pessoas são diferentes, por que os vegetais têm de ser iguais, todos exatamente iguais? Então, o consumo é ditado pelo mercado, sim, porém o mercado se move em função da consciência das pessoas. Por isso, tem de conscientizar as pessoas para o consumo diferenciado.
A questão do preço também tem muito a ver; muitas vezes, se o preço está ruim, o produtor não colhe, mas algumas empresas podem imaginar que se o produto for colhido e for colocado no mercado, o preço pode cair ainda mais, porque aí vai se atender uma demanda em situação de preço elevado. Então, tem de ter política para isso também. O Estado está aí para manter estoques reguladores de forma que não se faça essa oscilação tão grande dos preços. Por exemplo, veja o que aconteceu com o tomate: no começo do ano, o preço dele disparou, ficou em torno de R$ 12,00 ao quilo. Um mês depois já havia baixado de preço, pois o Brasil é grande, diversificado, tem uma quebra num lugar, mas em outro já está produzindo. Mas o que acontece? Esse preço de R$ 12,00 acabou sendo incorporado no índice de preço dos alimentos, gerou pânico e especulação de que a inflação iria disparar. Todos começaram a reajustar os preços em função disso, sendo que, no momento seguinte, o tomate e outros gêneros alimentícios baixaram de preço.
Se tivesse uma política de regulamentação dos estoques para o bem e para o mal, a situação seria outra, ou seja, se o preço cai muito, então o governo compra, se o preço está alto, o governo vende. Mas o Brasil não tem isso.
IHU On-line – Como avalia as centrais de abastecimento do país? Esses são locais de grande desperdício de alimento?
Walter Belik – As centrais de abastecimento não se atualizaram. Ainda se tem um sistema de centrais de abastecimento que perderam a sua identidade e a sua função. No passado, elas foram criadas para aproximar o produtor do consumidor, então tinham justamente a função de atacado: vinha o produtor e vendia diretamente para alguém que iria depois colocar os alimentos no varejo ou ia consumi-los diretamente. À medida que as cidades foram crescendo e os supermercados se desenvolvendo, as centrais perderam essa função.
Hoje, os supermercados fazem muito melhor essa função: eles compram muito melhor, colocam o preço muito mais barato e concorrem diretamente e com vantagens com a feira livre e com outras estruturas. São Paulo, por exemplo, é uma cidade de feira livre, mas, mesmo assim, é mais caro comprar na feira do que no supermercado. Então, elas perderam o sentido. As CEASAs teriam de repensar a sua forma de trabalhar, por um lado, trabalhando com produtos comoditizados de uma forma virtual. Hoje é possível ter um sistema de classificação de produtos em que as negociações e a logística são feitas virtualmente. Isso evitaria o passeio da mercadoria.
O papel das CEASAs é cada vez mais de organizador de mercado. Não funciona mais essa atividade num espaço físico de compra e venda, com pessoas circulando com dinheiro para lá e para cá, com alimento caindo no chão. Os alimentos viajam dois dias para chegar ao lugar, aí ficam expostos fora de uma câmara frigorífica. Imagina o custo disso? No mundo todo não está mais assim, mas no Brasil nós temos estruturas obsoletas. Por outro lado, é preciso desenvolver a produção. Então, normalmente as CEASAs têm interpostos regionais, que poderiam se transformar em centros de organização da produção familiar para a venda regional. Não tem sentido a produção de batata de uma região ter que viajar até Porto Alegre, por exemplo, para ser vendida. A CEASA também perdeu, por exemplo, os compradores de pequeno varejo, porque eles não vão comprar em Porto Alegre, vão acabar comprando dos pequenos produtores da sua cidade.
IHU On-line – Ainda há muitas pessoas passando fome no Brasil? O problema da fome no mundo não está ligado à produção de alimento e sim ao desperdício?
Walter Belik – As estatísticas mostram que tem aproximadamente 8% da população brasileira em situação de subnutrição. O Brasil tem 200 milhões de pessoas, então, são 16 milhões de pessoas passando fome. É um número grande, mas ele já foi muito maior, e caiu bastante, porque reduzimos para mais da metade, ou seja, em 60-70%, o número de famintos. Esse é um problema sério, mas que começa a clarear no sentido de perceber exatamente qual a dificuldade dessas famílias em ter acesso à alimentação. Temos alguns casos que são bastante claros, por exemplo, os indígenas e os quilombolas são comunidades específicas que estão muito isoladas, são pobres e não foram “encontradas” pela política pública.
Hoje, o Bolsa Família tem um cadastro de 20 milhões de famílias, mas o Ministério estima que existem 24 milhões de famílias em situação de vulnerabilidade. O Ministério não consegue encontrar essas pessoas; as estatísticas mostram que elas estão lá, mas você não sabe onde. Quer dizer, o sujeito está tão desassistido, tão fora do mundo, tão pobre, tão ignorante, que não consegue procurar uma assistente social; está absolutamente à margem da sociedade. Então, tem muita família rural perdida aí no Nordeste.
O problema da obesidade também é sério. Então se estima que há mais obesos hoje no Brasil do que desnutridos. Muitos usam isso para dizer que o problema da fome não é tão importante e que o problema maior é a obesidade. Porém, a obesidade é uma forma também de vulnerabilidade, muitas vezes de desnutrição de alguns micronutrientes que a pessoa não tem. Ela é gorda, tem uma alimentação supercalórica, mas o sujeito não foi instruído de como se alimentar, ele come porcarias, etc.
IHU On-line – Quais são as políticas públicas realizadas no Brasil para resolver esse problema do desperdício?
Walter Belik – A política que existe no Brasil — que não é bem uma política — são os bancos de alimentos. Essa política está no topo da agenda e não é política porque ela tem pouco a ver com o Estado, pois quem desenvolve a política do banco de alimentos normalmente é a sociedade civil. Então, o SESC tem uma rede excelente, o Mesa Brasil; diversas organizações, as igrejas, conseguem recuperar uma parte dos alimentos que são desperdiçados. Mas está faltando uma legislação, uma regulamentação do Estado para que essas iniciativas pudessem aumentar em mil vezes.
Eu gosto de falar, pois sou militante de banco de alimentos, e faço coleta de banco de alimentos no final de semana no mercado municipal de São Paulo. As pessoas vão lá para comer, beber. É lá que têm as melhores frutas, as melhores verduras. Os chefes de cozinha vão lá se abastecer. Então, nós passamos no mercado municipal e os donos dos boxes doam toneladas de alimentos que se perdem, alimentos que você come em um restaurante chique de São Paulo porque o sujeito não vendeu, porque ficou mais frio e ele vendeu menos abacaxi, por exemplo, então vai ter que se livrar daquilo porque não tem onde colocar. Nós também coletamos junto aos agricultores. Tem um cinturão verde em São Paulo, em Cotia, que doa alimentos para nós. Se houvesse uma legislação, isso seria potencializado, mas as pessoas têm medo de doar.
IHU On-Line – Em restaurantes, inclusive, é proibido.
Walter Belik – Exato. Já que a segurança sanitária não tem competência para fiscalizar, então é melhor proibir. De fato, tudo bem, restos de comida, alimentos preparados, é complicado de doar; você não vai doar sobras dos pratos das pessoas. O buffet por quilo é visto como um bom exemplo de redução de desperdício, porque a pessoa põe no prato apenas aquilo que ela irá comer. Mas e o buffet? A comida que não tem saída acaba sendo descartada. Poderia perfeitamente ter um sistema de coleta, mas no Brasil é proibido. Em outros lugares do mundo, por exemplo, nos Estados Unidos, o pessoal é mais consciente: numa festa de casamento, com um buffet enorme, as pessoas que têm consciência já colocam no convite da festa que “as sobras serão doadas ao banco de alimentos ‘x’”. Eu sou filho de imigrante e em casa não podia sobrar comida. É comum minha mãe ir a uma festa e perguntar: “O que farão com a comida que sobrar?”.