Inteligência, medo e paranoia

Cena de "Dr. Fantástico" (Dr. Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), magnífica comédia de humor político dirigida por Stanley Kubrick em 1964, com Peter Sellers em diversos papéis. Vale ver!
Cena de “Dr. Fantástico” (Dr. Strangelove or How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), magnífica comédia polítics dirigida por Stanley Kubrick em 1964, com Peter Sellers em diversos papéis. 

“O medo era a base daquele Estado, que produziu seis bombas nucleares”

Por Gustavo Guerreiro, em O Povo

As revelações de Edward Snowden geraram uma crise de confiança entre os Estados Unidos e seus aliados que dificilmente será superada. Os serviços de inteligência utilizam táticas paranoicas que abalam a convivência democrática entre os países. Este fenômeno é bem explorado no seriado de TV “Homeland”, que retrata histéricos agentes da CIA em um país dominado pela esquizofrenia coletiva.

Na ficção, a agente Carrie Mathison mantém-se inquietamente sentada em sua casa, monitorando o apartamento de um ex-fuzileiro naval estadunidense que passou para o lado da Al-Qaeda. Mathison empenha-se em descobrir o máximo que puder sobre ele. Ela é histérica, bipolar e esquizofrênica – todas as características vantajosas para o seu trabalho.

No mundo real, os serviços de inteligência dos Estados Unidos levam suas tarefas muito mais a sério. A CIA/NSA tem o poder de espionar qualquer pessoa, mesmo a presidenta Dilma ou a chanceler Angela Merkel, que não têm suspeitas de manter vínculos com o terrorismo islâmico e tiveram seus celulares grampeados.

Supõe-se que as agências de inteligência são um mundo à parte. Não raro, agem com autonomia e por iniciativa própria. No entanto, elas também são a expressão das sociedades a que pertencem, especialmente de seus medos. Em outras palavras, é possível que não haja apenas agentes paranoicos, mas Estados paranoicos que atuam de forma inconsequente, motivados por demandas obscuras. Via de regra, adotam um forte discurso de defesa da liberdade e da democracia.

Há outros exemplos desse tipo de desvio comportamental coletivo. Na África Austral, os bôeres, colonizadores imigrados da região europeia dos países baixos, massacraram a população nativa na luta pela terra. Essa comunidade ainda mantém uma visão glorificadora de sua história, como sugerido por expressões do tipo “eie terra, vrye Volk”, ou “uma terra, pessoas livres.” A partir de 1948, implantaram um rígido sistema racista de apartheid na África do Sul, isolando-se da maioria negra, e criaram sua própria “democracia”. O medo era a base daquele Estado, que produziu seis bombas nucleares, mesmo sem ter inimigos externos.

Israel, a terra prometida dos judeus, criada principalmente para dar aos sobreviventes do Holocausto um país onde se sentissem livres e seguros, buscou a liberdade e a segurança em guerras contra palestinos e países vizinhos, ocupando ilegalmente territórios na Cisjordânia. Em Israel, também, a política é moldada pelo medo. Um dos símbolos dessa inquietação é um gigantesco muro que isola áreas palestinas de seu território. “Homeland” foi baseada na série de TV israelense “Hatufim”.

Os EUA, a África do Sul do apartheid e Israel dos dias de hoje assemelham-se quando se sustentam no mito da liberdade, da busca do paraíso e do medo. Se não chegam ao padrão de violência da Alemanha nazista, essas “democracias paranoicas” usam a mesma ferramenta das mais cruéis ditaduras: vigilância total dos cidadãos.

Hoje, os serviços de inteligência transformaram-se numa gigantesca máquina de captura de informações, confundindo intencionalmente segurança da população com favorecimento a interesses econômicos. A NSA é a campeã inconteste em vigilância global e espionagem industrial. Mas aos novos problemas políticos, destaca-se o setor privado como elemento-chave. Em todo o planeta, os dados de internet e telefonia são armazenados e processados por empresas privadas. São elas cúmplices da vigilância global. Enquanto isso, o diretor da NSA, general Keith Alexander, dá ordens a partir de uma sala projetada para se parecer com a sala de comando da nave Enterprise, de Star Trek.

Em um mundo de tensões e incertezas, a informação tornou-se o produto mais valioso. Países que se sentem ameaçados procuram saber o máximo possível sobre as ameaças reais e potenciais, de modo a controlar ações e preparar ataques preventivos. Doze anos se passaram desde o 11 de setembro do World Trade Center e a NSA, aparentemente, ainda considera o fatídico evento como seu maior argumento para justificar a espionagem descontrolada, sem se pronunciar sobre ações contra setores industriais estratégicos de países aliados.

No seriado, a agente Carrie Mathison está traumatizada pelo fato de ter falhado uma vez. Agora está determinada a não deixar isso acontecer novamente, mesmo que isso signifique violar a lei.

Gustavo Guerreiro – Mestre em Sociologia e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

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