Impunidade no campo é a mesma da ditadura, diz ex-líder sem-terra

Júlio Miranda, morto em um conflito de terra na década de 80, ao lado da esposa Cipriana (Foto: Arquivo Pessoal)
Júlio Miranda, morto em um conflito de terra na década de 80, ao lado da esposa Cipriana (Foto: Arquivo Pessoal)

Cida Miranda perdeu o pai em um conflito de terra da década de 80 e garante que pouca coisa mudou em relação à impunidade dos fazendeiros acusados de mortes no campo

Por Thaís Mota – Minas Livre

Trinta anos se passaram, mas as lembranças continuam vivas na memória da filha mais velha. Cida Miranda, hoje com 52 anos, tinha 24 quando perdeu o pai em um conflito de terra em Bonfinópolis de Minas, na região Noroeste de Minas. Na época, os sindicatos de trabalhadores rurais começavam a ganhar força e a luta pela reforma agrária passou a ser uma bandeira cada vez mais forte no interior de Minas Gerais e do país. E, foi nesse contexto que Julio Rodrigues de Miranda foi assassinado com dois tiros no dia 6 de outubro de 1985 deixando esposa e oito filhos.

Segundo a filha de trabalhadores sem terra, desde aquela época pouca coisa mudou em relação à impunidade no campo. Da mesma forma em que o assassino de seu pai nunca fora preso, os fazendeiros e mandantes de crimes que aconteceram recentemente no interior de Minas continuam à solta. É o caso de Adriano Chafik, responsável pela morte de cinco trabalhadores rurais em Felisburgo, Norte de Minas, e dos irmãos Antério e Norberto Mânica, acusados de mandar matar dois auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho que investigavam denúncias de trabalho escravo em fazendas de Unaí, Noroeste do Estado.

Ambos os casos aconteceram em 2004, quase vinte anos depois da tragédia que atingiu a família Miranda. No entanto, os casos só foram julgados este ano. Adriano Chafik foi condenado, após inúmeras manobras jurídicas e adiamentos do júri. No entanto, conseguiu o direito de recorrer em liberdade. Já no caso da Chacina de Unaí, apenas os executores foram assassinados, enquanto os mandantes continuam à solta aguardando que a Justiça defina se o julgamento acontecerá em Belo Horizonte ou na comarca mais próxima do município onde aconteceram os crimes.

“Minha história começou no regime militar. Já passamos pela transição democrática e até hoje a impunidade é a mesma. Em 1987 a Justiça foi parcial no julgamento do assassino do meu pai e em 2013 também. Se fosse o outro lado, ou seja, um fazendeiro assassinado em um conflito de terra, os assassinos certamente estariam na cadeia ou teriam sido mortos. Anos se passaram, mas a Justiça continua duvidosa”, completou.

Entretanto, Cida Miranda reconhece que muita coisa mudou no campo desde a década de 80. “Hoje há aproximadamente 30 assentamentos em Unaí e a maioria deles são resultado de lutas por desapropriações que começaram naquela época. Ainda existem latifúndios, conflitos, desigualdade no campo, mas o cenário é diferente hoje. Os sindicatos são respeitados e os trabalhadores se organizam nas cooperativas para escoar sua produção”.

Além disso, programas criados pelo Governo Federal dão mais segurança aos trabalhadores rurais como a aprovação de crédito para os pequenos produtores por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), pelo qual os agricultores familiares vendem sua produção para a utilização no preparo da merenda escolar.

Relato

Cida Miranda vivia com a família em uma fazenda ocupada na região do Mandiocal, município de Bonfinópolis de Minas, próximo à Unaí. Aproximadamente 20 famílias moravam na comunidade fundada em 1961 e que funcionava em regime de parceria com o proprietário do terreno, ou seja, parte da produção dos sem-terra era entregue ao fazendeiro em troca da utilização da terra. “Era uma terra devoluta, mas tinha um proprietário que se dizia dono do terreno”, conta.

No início da ocupação, a região era uma mata fechada e não possuía nenhuma infraestrutura. “As famílias foram desmatando parte da área para a construção das casas, abrindo estradas e começando as roças. Ali foi se desenvolvendo a Comunidade do Mandiocal”. No entanto, a partir de 1975 o proprietário do terreno teria iniciado um processo para mudar as relações com os moradores do local e passou a proibir as roças e a fazer ameaças, dando início ao conflito com a comunidade.

Neste mesmo período, a conscientização da importância da organização social como forma de fazer frente a essas ameaças e de conquistar a posse definitiva das terras começou a ganhar força especialmente no Norte e Noroeste de Minas. “A Igreja Católica começou um trabalho também nessa época baseado em documentos que resultaram da Conferência de Medellin e um deles era ‘Igreja e Problemas da Terra'”, relembra Cida Miranda.

A partir de então, os trabalhadores rurais e sem-terra começaram a se organizar. “Esse trabalho foi crescendo e ganhando corpo na região inteira e passamos a reivindicar um sindicato de trabalhadores rurais que fosse a nossa voz, afinal, juridicamente e socialmente, nós não existíamos enquanto classe. Éramos qualquer coisa menos cidadãos porque não tínhamos nenhum direito. Mas, os fazendeiros também passaram a se organizar ainda mais”.

Em 1981, os trabalhadores fundaram o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Unaí e Região estruturando a luta em torno da reforma agrária e com o lema: “Terra para quem nela trabalha”. Neste mesmo ano, um grande conflito na Fazenda Saco Grande em função de uma ação de despejo obtida pelo proprietário mobilizou os trabalhadores. “Esse foi o ponto de partida para que o Sindicato lutasse pela desapropriação da fazenda por interesse social, com base em uma brecha prevista no Estatuto da Terra”.

Segundo Cida Mirada foi a partir daí que os conflitos na região passaram a se acirrar. Em 1983, ela assumia a presidência do Sindicato e um ano depois a fazenda Saco Grande foi desapropriada para fins de reforma agrária, sendo a segunda decisão desse tipo em todo o Estado. “Então, eu fui me envolvendo com esse trabalho e acabei saindo da comunidade para assumir o sindicato integralmente, deixando o Mandiocal ainda mais visado”.

Com o envolvimento de toda família na luta pela terra, o conflito no Mandiocal passou a tomar outras proporções e o proprietário começou a cortar as cercas e destruir as roças das famílias que viviam na comunidade. “Por dois anos tivemos toda produção levada por jagunços armados e praticamente passamos fome porque só nos restou o fruto da terra já que o que cultivamos foi roubado. Nessa época, várias famílias começaram a ir embora em função das constantes ameaças”.

Até que no dia 6 de outubro de 1985, um domingo de manhã, o dono da fazenda esteve na casa de um parente da família acompanhado de dois homens armados para fazer novas ameaças, enquanto Cida coordenava uma assembleia na Fazenda Saco Grande para organizar o parcelamento dos lotes na área desapropriada. “Como éramos uma rede de vizinhos que se ajudava e protegia, meu pai e minha mãe foram até a casa desse tio assim que ouviram o barulho e, quando chegaram na porteira, se depararam com o fazendeiro que disse: ‘Eu vim aqui resolver o problema de todos vocês’. Nesse momento, minha mãe respondeu: ‘Resolver problema nosso aqui é continuar na terra pra dar comida aos nossos filhos’. Foi então que ele sacou uma arma e atirou primeiro no meu pai, que ainda tentou atravessar a cerca, e depois na minha mãe que estava de costas acudindo meu pai. O terceiro tiro aconteceu depois que meu pai já estava do outro lado da cerca e ele não resistiu”, relembra.

Ainda segundo Cida, o fazendeiro perguntou por ela antes de atirar em seus pais e também esteve na casa de outro parente que também era tido como uma liderança do movimento dos trabalhadores rurais da região. Em seguida, ele teria se apresentado à delegacia da região, entregue a arma, e alegado que matou um homem em legítima defesa. De acordo com a militante, foi com base nessa alegação que a polícia elaborou o inquérito que deu origem ao processo.

Após dois anos aconteceu o julgamento do acusado, mas ele foi inocentado. “Vivemos outra perda porque o julgamento foi todo montado para legitimar a ação do fazendeiro. Então, recorremos da decisão e tentamos pedir a transferência do caso para Belo Horizonte, mas o o pedido não foi aceito. E dois anos depois ele foi julgado novamente e condenado a comparecer ao juiz uma vez por mês durante um ano e fazer uma doação em dinheiro para a Sociedade São Vicente de Paula. Não ficou preso por nem um dia. Mas, por outro lado, tivemos a vitória de ver pela primeira vez um latifundiário sentado no banco dos réus”, afirma.

Hoje sua mãe, Cipriana Miranda, e dois irmãos ainda vivem na região, mas em um assentamento no município de Unaí. Ela foi despejada da Comunidade do Mandiocal em 1993. Aos 72 anos, e apesar de ainda conviver com uma bala alojada no corpo, ela ainda cultiva alimentos e vende sua produção ao governo, por meio do PAA. Além da renda adquirida com o que produz em sua pequena gleba, ela tem ainda uma pensão do marido morto. Já Cida Miranda, veio para Belo Horizonte logo após o assassinato do pai em função de ameaças e emboscadas armadas para ela e vive até hoje na capital mineira.

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