Raul do Valle, ISA
Quem acompanhou atentamente o julgamento de ontem (23/10) dos embargos de declaração relativos às 19 condicionantes impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para confirmar a demarcação da Terra Indígena (TI) Raposa-Serra do Sol deve ter percebido o quão difícil é entender as razões que justificam alguns votos. Pudera. Nem todas eram realmente coerentes com os posicionamentos que deveriam suportar.
O que se viu foi uma imensa dificuldade de alguns ministros em discordar do posicionamento de outro. Diferentemente do julgamento do mensalão, no qual posições se extremaram até em demasia, nesse caso mesmo os que tinham razões – confessáveis ou não – para discordar do voto do relator acabaram a ele aderindo.
O ministro Teori Zavascki, por exemplo, foi buscar princípios teóricos do direito processual civil, citando juristas italianos, para se meter numa imensa confusão. Queria, por alguma razão, dizer que os efeitos do julgado se estendiam a outros casos, mas diante do refinado e bem argumentado voto emitido pelo relator, não teve coragem. Assim, acabou confundindo a si mesmo e aos que o assistiam. E deve ter feito Enrico Tulio Liebman, o processualista italiano citado, revirar no túmulo.
Nesse ponto, reside a maior fortaleza do voto vencedor do relator Roberto Barroso: a clareza. Ele foi muito lúcido ao reconhecer que a decisão de 2009, ao impor ressalvas que não estavam presentes no pedido original, e que, como dois ministros agora reconheceram, inovam na ordem jurídica, foi “atípica e não é um bom padrão a ser seguido”. Ou seja, de forma delicada, mas clara, disse que a Corte extrapolou sua competência e suas funções. Mas que, para solucionar aquele caso concreto, teve que seguir nesse caminho.
E foi nessa toada que ele liderou o Tribunal no ponto central da decisão de ontem: a confirmação de que essa decisão, com todas suas virtudes e problemas, não pode ser automaticamente aplicada a outros casos. Ou seja, não só não tem força de súmula vinculante, como quiseram fazer crer a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Advocacia-geral da União, como sequer é um precedente judicial a ser usado por outros juízes que com ela simpatizem. Foi uma decisão estritamente conjuntural, restrita ao caso concreto e ao momento histórico, que, por essas razões, não tem como ser replicada. Em outras palavras, nenhum outro caso reunirá as mesmas condições que justificaram a “declaração” das 19 condições porque este é único. Com isso, só com muita cara de pau o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, poderá justificar a confirmação da Portaria 303, que tanta celeuma causou, conforme informação que circulou ontem em Brasília – a Portaria estende as condicionantes do caso ao processo de demarcação de terras indígenas em geral.
Mas, apesar da decisão final dizer oficialmente o contrário, algumas contradições permaneceram. Uma delas diz respeito ao direito de consulta prévia. A decisão de 2009 é extremamente ambígua, dizendo que a instalações de bases militares, bem como suas intervenções, não precisam de consulta prévia para ocorrerem, no que o ministro Barroso concordou. Mas ela estende essa mesma regra à “expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico”, sendo que a definição de “estratégico” caberia ao Conselho de Defesa Nacional. Claramente uma extrapolação e uma afronta ao Estado de Direito, na medida em que permite que decisões totalmente discricionárias possam impedir o exercício de um direito fundamental. Se esse conselho decidir que é estratégico ao país vender soja pra China com o menor preço possível estaria o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (DNIT) autorizado a cortar uma pequena terra Kaingang do Paraná ao meio, sem consulta, porque seu desvio encareceria a saca exportada por Paranaguá em alguns centavos?
Barroso notou esse perigo e disse claramente que a dispensa de consulta se restringia às instalações militares. Estradas e outras obras de infraestrutura, por mais estratégicas que sejam, precisam ser previamente consultadas com as populações indígenas afetadas. Nas suas palavras, a qualificação de uma obra como “estratégica” não pode ser usada como desculpa para limitar o direito de participação dos povos indígenas nas decisões que moldam seu futuro. O Estado não está obrigado a se submeter a posições unilaterais dos povos indígenas, mas por outro lado deve fazer a consulta de forma séria e honesta, vale dizer, tem que levar em consideração o que ouviu na decisão a ser tomada.
Só que ao invés de modificar a condição original, Barroso julgou improcedentes os embargos nesse ponto. Em seu modo de ver, a decisão do ministro Menezes de Direito – que fixou as 19 condicionantes em 2009 – queria dizer exatamente isso, no que foi seguido pelos demais ministros. Embora nem todos consigam ler essa nuance na redação original, essa é agora, para todos os efeitos, a interpretação oficial da regra ditada pelo Supremo. Como o próprio Barroso reconheceu: mais uma decisão atípica.