Presidente da Funai durante o governo FHC, Márcio Santilli lembra que até hoje existe uma disputa pelo que resta do território no Brasil
Márcio Santilli, um dos fundadores do Instituto Socioambiental (ISA), foi presidente da Funai durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), entre setembro de 1995 e março de 1996. Segundo ele, a disputa hoje é pelo que resta de território no Brasil, “visando expansão da fronteira agrícola com grilagem de terras”. A força ruralista no Congresso, para ele, na entrevista abaixo, se dá pela distorção da representação política. Com menos de um ano no cargo, ele disse que teve de administrar um “caos”: “aceitei a presidência da Funai achando que haveria uma reforma do Estado e, quando restou apenas a perspectiva de administrar o caos, preferi a atuação no terceiro setor”.
CartaCapital: O que está acontecendo hoje, como explicar esse ataque aos direitos indígenas?
Márcio Santilli: O ataque é aos direitos do povo brasileiro e as terras indígenas são apenas o foco momentâneo. O objetivo das empreiteiras e ruralistas é a apropriação de terras públicas, sejam indígenas, de quilombos, de unidades de conservação, de assentamentos da reforma agrária ou que possam ser privatizadas por mecanismos legais de concessão. É uma disputa pelo que ainda resta do território, visando a expansão da fronteira agrícola com grilagem de terras.
CC: Qual a ameaça dessas mudanças legislativas (PEC 215, PLP 227) para o futuro?
MS: O rompimento do pacto constitucional, o ingresso do Brasil numa era de agravamento dos conflitos sociais, a degradação do território e a agrarização da economia.
CC: Como esse processo de força contrário aos índios se tornou tão poderoso e influente?
MS: Com a distorção da representação política (superdimensionando a representação dos grotões), o enquadrilhamento dos partidos e sua subordinação aos financiamentos espúrios de empreiteiras, a ausência prolongada de política econômica, com o amoldamento do país a uma nova divisão internacional do trabalho que pretende nos reduzir a condição de produtores de commodities sem valor agregado. O país se encontra em processo de regressão civilizatória e o atentado contra os direitos indígenas é apenas um passo a mais, que se sucede à revogação da legislação florestal e deve ser sucedida por outras iniciativas da pauta ruralista/empreiterista, como a legalização do trabalho em condições similares à da escravidão.
CC: O que pode ser feito? Ou o que deveria ser feito no Brasil?
MS: Será preciso reiniciar a discussão sobre um projeto de futuro para o Brasil, a começar pela promoção de uma economia mais sã, fundamentada nos produtos da inteligência e nos serviços, reduzindo-se a ênfase em produtos de matéria bruta sem valor agregado. Por outro lado, reprimir exemplarmente a corrupção, que hoje é promovida como sendo indispensável à “governabilidade” e construindo novas opções políticas e partidárias desatreladas do orçamento público.
CC: Por que não conseguiu ir mais adiante enquanto esteve na presidência? Algum lamento, frustração?
MS: Já se vão 18 anos, aceitei a presidência da Funai achando que haveria uma reforma do estado e, quando restou apenas a perspectiva de administrar o caos, preferi a atuação no terceiro setor.
CC: E alguma esperança? Qual?
MS: Sim, que o povo brasileiro venha a rejeitar a dicotomia PT/PSDB nas próximas eleições, abrindo espaços para um novo projeto de país.
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