Grupos religiosos impõem, sob a aquiescência pacífica do governo, aberrações como o Estatuto do Nascituro e outras propostas de igual teor de violência contra as mulheres
Por Ana Maria Costa*, em Rede Brasil Atual
O dia 28 de setembro é marcado pelos movimentos sociais latino-americanos como data de luta pela descriminalização do aborto. Por que legalizar o aborto? Para consolidar o Estado laico, aperfeiçoar a democracia e promover os direitos sexuais e reprodutivos e a saúde das mulheres.
Ao contrário do Uruguai, que optou pela vida e os direitos das mulheres legalizando o aborto, o Brasil estancou o debate sobre o tema no parlamento e no governo, barrando direitos essenciais para a democracia.
Na vida real, as mulheres brasileiras que engravidam contra a vontade, planos ou desejos, prosseguem interrompendo gestações de forma clandestina e insegura, morrendo ou adquirindo sequelas que na maioria das vezes impedem os futuros planos reprodutivos.
Sempre é pertinente lembrar que todas as mulheres, de todas as idades, classes sociais, etnias e religiões abortam, mas a ocorrência de problemas de saúde relacionados ao aborto clandestino é bem maior para as mulheres pobres e negras que, nestas ocasiões, são as que de fato se submetem a atendimentos e condições mais precárias e arriscadas.
A sociedade brasileira deve encarar a legalização do aborto por diversas razões. Trata-se de um reconhecido problema de saúde pública cujas evidências, ainda que subdimensionadas, têm sido amplamente demonstradas e discutidas.
A ilegalidade do aborto compromete os direitos inerentes à democracia e, por isso, é premente o seu aperfeiçoamento articulado à laicidade do Estado, garantindo às mulheres mais direitos e mais cidadania.
Por último, é inconcebível que o país que hoje avança rumo ao grupo de nações mais poderosas do planeta mantenha-se alienado no reconhecimento do direito legal à interrupção da gravidez, acuado por grupos religiosos, recusando a analisar e aprovar mudanças na legislação sobre o aborto que atende aos interesses coletivos.
O conceito de laicidade deve ser entendido como um dispositivo democrático que garante a liberdade religiosa na sua ampla diversidade e ao mesmo tempo garante a independência das decisões do Estado relacionadas aos interesses públicos. Em outra perspectiva, no Brasil a laicidade é afirmativa no marco constitucional ao expressar e conferir garantias à liberdade religiosa aos cidadãos, o que requer a neutralidade do Estado.
Entretanto, a prática da laicidade não tem sido observada e os poderes públicos estão contaminados com referências, signos e valores religiosos, mais especificamente os cristãos católicos. A maioria das repartições públicas, hospitais e outros serviços tem crucifixo na parede ou outras imagens católicas. Há alguns anos, o fato de o plenário do Supremo Tribunal Federal dispor de um grande crucifixo, gerou uma polêmica por oportunos questionamentos de feministas e de defensores da laicidade.
A mensagem do símbolo religioso presente nos espaços públicos impõe o falso pressuposto de que a religião é anterior à própria democracia quando, de fato, a religião deveria estar submetida ao pacto democrático.
O direito constitucional à liberdade religiosa garante que os crentes tenham qualquer religião e que os não crentes não tenham religião. Entretanto, o Estado tem o dever de contestar, pelo bem comum e pela preservação dos interesses coletivos, a imposição de dogmas religiosos.
Às religiões e às igrejas é dado criar suas próprias verdades, que nem sempre estão baseadas em constatações objetivas e científicas, e nem sempre são capazes de permitir a liberdade dos que não agem ou pensam de forma semelhante aos seus preceitos. Já ao Estado não é permitido atuar ou decidir sem fundamentação científica ou baseado em argumentos que não possam ser comprovados. Nem decidir com base em preceitos e valores religiosos de grupos sociais, contrariando os interesses do conjunto da população.
A inversão do lugar da religião emprenha os poderes e as instituições, cujas consequências se manifestam na vida social. Um bom exemplo desta inversão é a objeção de consciência dos profissionais de saúde no atendimento ao aborto, mesmo nos casos legalizados ou permitidos pela lei.
Tem sido assim nos serviços de saúde, que, mesmo incorporando objetivos quanto ao cuidado seguro das mulheres em situação de abortamento, os profissionais alegam “objeção de consciência” e negam o atendimento, subtraindo o direito à saúde e à preservação da vida das mulheres. Trata-se, em última instância, de uma imposição de poder do profissional e de seus valores morais às mulheres. E o fazem amparados, geralmente, pelos respectivos códigos de ética profissional.
Como advogar pela laicidade do Estado quando o país incentiva o ensino da religião católica na escola pública, em obediência a acordos entre governos nacionais e o Vaticano? Na saúde é expressiva a presença das organizações sociais religiosas na assistência hospitalar, que contam com apoio financeiro e subsídios governamentais. Será que estas instituições atendem de forma correta, pronta e segura a mulher que busca atendimento nas situações de abortamento, mesmo nos casos permitidos pela lei?
Nos últimos anos a situação do aborto no Brasil vem sendo esclarecida pelos diversos estudos realizados. Já não sobram dúvidas de que o aborto é importante causa de morte na mortalidade materna. Mesmo que a ampla comercialização seja lamentavelmente proibida pela Anvisa, o uso do Cytotec (misoprostol), adquirido pelas mulheres clandestinamente, reduziu de modo significativo as complicações por aborto inseguro. Mas nem sempre o processo de abortamento por uso do Cytotec prescinde da assistência médica e, nesses casos, quando as mulheres buscam os serviços de saúde, acabam vitimadas por censuras, ameaças ou maus tratos dos próprios profissionais de saúde.
Os estudos de itinerários de mulheres que abortam mostram que quanto mais pobres, mais tempo e mais difícil é para elas o acesso a um atendimento em serviço de saúde. Por isso morrem ou adquirem doenças em decorrência do abortamento desassistido.
Aborto é de fato um problema complexo de saúde pública e a sua legalização é uma necessidade de saúde. O sofrimento das mulheres e das famílias que vivenciam o abandono e a ausência do Estado quando precisam ou desejam abortar deve ser dimensionado por todos os atores públicos, se é que ocupam esta posição para defender os interesses públicos.
No lugar de comprometer com a cidadania e a saúde das mulheres brasileiras, grupos religiosos impõem ao pais, sob a aquiescência pacífica do governo, aberrações como o Estatuto do Nascituro, bolsa-estupro e outras propostas de igual teor de violência contra as mulheres. Se estes atores que atuam no governo e no Congresso Nacional , tivessem a sensibilidade, humanizada e solidária, de perceber, sentir e compreender a situação de abandono, o desespero e a dor das mulheres quando se encontram diante de uma gravidez indesejada, teriam a chance de colocar seus valores religiosos na estrita esfera do pessoal e do privado. Mas para isso é imprescindível que se aproximem da condição humana. As decisões destinadas ao conjunto da sociedade devem ser pautadas pelo respeito ao outro e pela solidariedade humana. Assim o país avançaria para promover não apenas a laicidade e a democracia, mas, especialmente, os direitos, a autonomia , a cidadania e a saúde das mulheres.
*Ana Maria Costa é médica, feminista, presidenta do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)