Cidades: entre desafios e esperanças

Raquel Rolnik – Folha de S.Paulo

Estava em Belfast, capital da Irlanda do Norte, em plena missão como relatora da ONU para o direito à moradia, chocada com os muros que separam as comunidades católicas das protestantes no norte da cidade (denominados –pasmem!– de “peace lines” –ou linhas da paz), quando recebi o convite da Folha para publicar uma coluna quinzenal em “Cotidiano”.

Aceitei imediatamente, reconhecendo o privilégio de poder abrir mais um espaço de reflexão sobre as cidades neste momento de nossa trajetória urbana. Mas por que este momento é particularmente especial?

A resposta mais óbvia reverbera as vozes dos milhões de manifestantes das chamadas “jornadas de junho” que reposicionaram o tema das cidades na agenda do país.

Embora a precariedade de nosso urbanismo e a má qualidade dos espaços e serviços públicos em nossas cidades não sejam absolutamente novidade, sempre me perguntei por que esse tema não fazia parte da agenda de debate público do país.

Tomemos como exemplo o tema da mobilidade, que hoje ocupa os corações e mentes de nossas cidades, funcionando como uma espécie de expressão máxima de nosso mal-estar urbano.

Ora, há décadas o transporte público é de baixíssima qualidade e, pelo menos desde os anos 70, andar de ônibus e trens de subúrbio nas principais metrópoles brasileiras é visto como uma espécie de calvário vivido por aqueles que, desprovidos de meios econômicos, não podem ter seu próprio automóvel.

Há décadas sabemos que são prestadores desse e de outros tipos de obras e serviços públicos que sustentam candidaturas e eleições municipais, garantindo seus negócios e a sobrevivência política de quem apoiam. Mas o tema do transporte público não “aparece” na agenda: os formadores de opinião, dentro e fora do Estado, nos meios de comunicação, nos “think-tanks” do país, salvo honrosas exceções, simplesmente não usam nem nunca usaram ônibus e trens de subúrbio.

O mesmo poderíamos dizer de muitos outros temas urbanos: a moradia e os espaços públicos, só para nomear alguns.

Entretanto, parece que alguma coisa mudou nesse cenário. Será que foi necessário generalizar a imobilidade para o tema do transporte público ganhar centralidade e relevância? Teriam sido os velhos carros da “nova classe média” e a multidão de motoqueiros disputando o espaço dos automóveis nas ruas que inverteram essa equação? Ou estaríamos diante da crise de um modelo de mobilidade insustentável para as dimensões metropolitanas?

A migração pragmática para o transporte público e as bicicleta por parte dos proprietários de veículos –fartos de ficarem presos em congestionamentos– e a mudança cultural que isso implica na relação com a cidade teriam também desempenhado um papel?

E movimentos como o passe livre e as ocupações (de prédios vazios, de espaços públicos) que, embora invisíveis para o grande público e reprimidos pela polícia, não pararam de crescer na última década? E a visibilidade crescente das relações promíscuas entre empresas e estado?

Perguntas como essas me animam a escrever esta coluna: pensar a cidade e seus desafios, trazer referências de experiências urbanas de outros países, fomentar o debate de políticas e planos, enfim, alimentar esperanças de utopias possíveis. De cidades justas e belas em nosso país.

*Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada

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