Um documento humano

Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Ataíde: um homem que abrigou as intermitências do século 20 no coração
Alceu Amoroso Lima, ou Tristão de Ataíde: um homem que abrigou as intermitências do século 20 no coração

Por João Paulo, em Estado de Minas

As novas gerações talvez não conheçam Alceu Amoroso Lima (1892-1983). O escritor, crítico literário e pensador católico foi um dos homens de pensamento mais importantes do Brasil no século 20 e se tornou uma referência intelectual e moral para o país em seus momentos mais difíceis. Alceu escreveu quase 100 livros em diversos campos do conhecimento – direito, filosofia, sociologia, política, teologia e jornalismo –, além de ter sido, com o pseudônimo de Tristão de Ataíde, o mais influente crítico literário de seu tempo.

Mas Alceu não foi apenas um grande intelectual, foi um mestre da ação. Sua trajetória, curiosamente, foi na contramão da maioria dos homens de seu tempo: foi conservador na juventude para se revelar de esquerda e libertário na maturidade. Desde que assumiu seu catolicismo, em 1928, com uma carta que se tornou célebre, “Adeus à disponibilidade”, endereçada a Sérgio Buarque de Holanda, Alceu fez da Igreja Católica e de seus desafios no século 20 uma de suas grandes preocupações.

A importância de Alceu Amoroso Lima se torna ainda mais relevante quando se acompanha sua ação política destacada em todos os campos. Dentro da Igreja, foi da doutrina social à teologia da libertação, acompanhando de perto o Concílio Vaticano II e o aggionarmento da Igreja romana, se ligando ao processo de renovação da instituição milenar em crise com as demandas de seu momento histórico. E é bom lembrar que Alceu fez parte dos grupos mais conservadores da Igreja e que, por isso, foi deixando no caminho, em nome de sua coerência, muitos amigos e companheiros de jornada.

Sua relação com a Igreja – talvez também seja difícil para os mais novos entender a força do pensamento católico no Brasil e o mundo por volta dos meados do século 20 – fez dele interlocutor de grandes filósofos, como Jacques Maritain, e até mesmo de papas, como Paulo VI. Mas a religião também deu a Alceu liberdade para se aproximar do pensamento místico (como do trapista americano Thomas Merton) e, sobretudo, das grandes questões políticas, como a crítica à injustiça social e o combate às ditaduras.

Em meio a tanto trabalho intelectual e militância – some-se ainda a isso seu labor como professsor e os vários artigos que publicava diariamente na imprensa –, Alceu Amoroso Lima viveu no âmbito familiar uma história sublime. Em 1952, aos 23 anos, sua filha Lia Amoroso Lima decide entrar para o convento das beneditinas, onde permaneceu até sua morte, em 2011, aos 82 anos. O pai – que levou a filha até a abadessa do convento para que ela se tornasse uma simples monja – passou então a escrever diariamente para Lia, que assumiu o nome de Maria Teresa, numa correspondência que foi até os últimos dias de Alceu. E é bom lembrar que se tratava de cartas físicas, escritas à mão e postadas no correio todos os dias.

Um dos maiores documentos humanos do nosso país, a correspondência trata de temas profundos, como religião e filosofia, entra no debate das questões políticas do momento, encontra espaço para a conversa amigável e afetuosa entre pai e filha. Há passagens em que Alceu fala dos amigos e de trabalhos em andamento, queixa das dificuldades, se anima com os pequenas conquistas, relembra momentos idos e vividos. Há um pouco de tudo na vasta correspondência: filosofia, literatura, política, crônica, memória e comentário político. E sobretudo a confiança absoluta de dois seres que se amavam.

Como eram cartas diárias e Alceu se encontrava sempre assoberbado de mil atribuições, era de se esperar que as cartas fossem curtas, pequenos registros do dia a dia, uma simples tentativa de estar perto da filha querida. Nada disso, muitas delas se alongam por várias páginas, fazem comentários profundos, ensaiam reflexões que depois ganhariam artigos para imprensa, ensaios e mesmo livros. Alceu era um analista incisivo e dotado ao mesmo tempo de senso crítico, base filosófica e humor, o que dá aos seus comentários um sabor muito especial, sobretudo no momento em que não precisava se preocupar com as censuras de toda natureza, das políticas às psicológicas. Um dos homens mais íntegros e completos que o país já teve, em suas cartas revela ainda a cálida presença de sua personalidade, sempre intensa e entusiasmada (palavra na medida para Alceu, já que sua etimologia registra: estar cheio de deus).

Religião e política

Parte da correspondência de Alceu Amoroso Lima à filha já havia sido publicada em 2003, no volume Cartas do pai, pelo Instituto Moreira Salles. Um livro com mais de 600 páginas que reúne as correspondências enviadas entre julho de 1958 e dezembro de 1968. Além de revelar pela primeira vez o teor das cartas – havia uma grande curiosidade sobre elas entre os admiradores de Alceu, que sabiam de sua existência –, o livro se mostrou o registro de um momento marcado principalmente pela religião. Mas a sombra da política brasileira parece se adivinhar, até mesmo pela data de encerramento do volume, às portas da decretação ao Ato Institucional nº 5, que marcaria a fogo a história recente do país e a atuação de Alceu Amoroso Lima como um de seus principais combatentes pela liberdade.

Por isso se torna precioso o lançamento de mais um livro dedicado às cartas de Alceu à filha, Diário de um ano de trevas, que abrange o período que vai de janeiro de 1969 a fevereiro de 1970. Lançado também pelo Instituto Moreira Salles, o volume é organizado por Frei Betto e por Alceu Amoroso Lima Filho, que trabalhou ao lado da irmã na decifração da caligrafia do pai até a morte da madre Maria Tereza. O trabalho dos organizadores é soberbo. A seleção é primorosa – não há uma carta publicada que não emocione ou ensine sobre o tempo abarcado e os personagens –, as notas sempre informativas e concisas, a concentração nos temas de interesse amplo é mantida com equilíbrio (houve supressões de trechos por razões de ordem pessoal, segundo os organizadores, o que em momento algum prejudica a leitura), a recuperação do contexto histórico é sempre competente e a favor da legibilidade dos documentos.

O que em Cartas do pai era revelação humana e religião, em Diário de um ano de trevas é política e indignação. Alceu Amoroso Lima vive, com a decretação do AI-5 um sofrimento pessoal palpável. Ele parece antever, e chega a registrar, que a ditadura demoraria 20 anos para deixar a sociedade brasileira e que, por isso, talvez não vivesse mais a democracia em seu país. Ao morrer, em 1983, não sem deixar de lutar todos os dias, Alceu ajudou a conquistar a redemocratização, mas não chegou a esperimentá-la. Suas cartas à filha documentam esse período, um longo ano de batalhas pela liberdade no mais duro dos períodos da ditadura militar.

O sempre afável e esperançoso Alceu tem momento de revolta e impaciência, padece pelo afastamento dos amigos, vê os jornais lhe fecharem as portas em razão do medo da censura. Não havia general com estofo suficiente para censurar o pensador, mas nas redações o medo ia além do razoável. Alceu não negociou com o inimigo, não mudou de tom – antes o tornou mais ácido e até feroz – não deixou de pensar nem mesmo pela sedução de incendiar as consciências. Sua crítica aos militares se unia à crítica à Igreja que retrocede em seu caminho de abertura para apoiar o golpe. Como escreve à Maria Teresa: “Somos um país inchado, e não grande, não por culpa do nosso povo pobre, mas dos dirigentes que o exploram de qualquer modo, e agora, particularmente dessa oligarquia militar puritanística”.

Ao tratar da situação por que passava o país, Alceu o faz a partir de análise de fatos do momento, não necessariamente apenas da conjuntura, mas de aspectos ligados à educação, à ciência, aos partidos políticos, à imprensa. Tudo ao lado de análises feitas em cima da hora dos descaminhos da ditadura e da vergonhosa atuação de seus personagens. A correspondência, mesmo atravessada pela política, encontra também espaço para o afeto, para as memórias, para os bastidores da Academia Brasileira de Letras e da vida literária, para as lembranças do Rio antigo, dos amigos que se foram, das leituras de juventude e dos consolos da fé.

Diário de um ano das trevas é testemunho que revela não apenas a grande figura de Alceu Amoroso Lima, mas a dimensão necessária da resistência humana contra toda forma de injustiça. Em cada ato e omissão escrevemos uma carta ao mundo. Felizes daqueles que podem reuni-las um dia para entregar, como um bastão de corrida de revezamento, nas mãos dos que vêm depois.

Diário de um ano de trevas
• Cartas de Alceu Amoroso Lima para sua filha madre Maria Teresa: janeiro de 1969 – fevereiro de 1970

• Organização de Frei Betto e Alceu Amoroso Lima Filho
• IMS, 294 páginas, R$ 49,90

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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