Elaine Tavares – Palavras Insurgentes
A lógica da “democracia” cantada em verso e prosa pelo mundo ocidental chegou ao Egito com a queda de Mubarak. O povo foi às ruas, denunciando a ditadura, exigindo direitos. Muita gente morreu por isso, antes, durante e depois das grandes lutas. Obviamente havia a necessidade de mudanças e o povo egípcio as queria. Mas, como sempre acontece, a mão da “democracia” ocidental logo se fez notar, com ajuda financeira, logística e política. O exército egípcio, ainda eivado de remanescentes do velho regime, foi quem preparou a transição. E foi preciso mais luta e povo na rua para que eles soltassem o poder, realizando finalmente as eleições.
Saídos de uma longa ditadura, os lutadores egípcios tiveram de se deparar com uma eleição nacional que exigia organização em todo o país. Muitos grupos políticos não conseguiram lograr essa articulação, que exigia tempo e dinheiro. O resultado foi que os mais votados acabaram sendo o representante do velho governo, por razões óbvias, e o da Irmandade Muçulmana, que acabou eleito. Ocorre que a Irmandade sempre esteve organizada nacionalmente e ainda contava, em cada povoado, com a ajuda vinda das mesquitas. As forças que alavancaram a luta por mudança ficaram à margem.
Vencidas as eleições pelo representante da Irmandade Muçulmana, as coisas pareciam caminhar no rumo de uma abertura política. Mas, passado um ano de governo, o presidente Mursi decidiu fazer mudanças na Constituição, incluindo leis baseadas no livro sagrado dos muçulmanos. Isso acirrou alguns grupos seculares que queiram ver o Egito avançar para um estado laico.
Segundo o jornalista inglês, Roberto Fisk, a violência desatada na última semana no Egito cria um fosso imenso na sociedade, podendo levar a uma longa guerra civil. O golpe de estado aplicado pelos militares destruiu todas as esperanças de ver o país avançar. Para boa parte dos egípcios, os muçulmanos chegaram ao poder de forma limpa. Não há motivos plausíveis para o golpe. A irmandade tem sobrevivido no Egito, ora apoiando a ocupação britânica, ora apoiando o exército local. Agora, está de novo na berlinda, mas tendo já ocupado um espaço de poder que pôde ser bem articulado nacionalmente.
O fato é que o destino do povo egípcio está por se cumprir, agora cindido em lutas internas. Muçulmanos incendiaram igrejas cristas, e existem muitas no Egito. Cristão se armam contra os muçulmanos. Abriu-se uma chaga dentro da lógica da religião, o que torna também o processo ainda mais complicado, uma vez que as duas religiões sempre conviveram numa certa paz. Há organizações novas, buscando mudanças e muitas das suas lideranças certamente perecerão nos protestos que têm sido violentamente esmagados. Os mártires já se contam aos milhares. É muita violência. E, como pano de fundo, assomará cada dia mais a ideia de que os árabes, a saber os muçulmanos, são potencialmente “terroristas”. Tanto que o exército que perpetrou o massacre contra o povo, acusa a irmandade de fomentar a resistência e levar seus filhos à morte. Uma inversão total dos valores.
Estive no Egito quando se completava um ano da revolução. Havia esperança, orgulho. Os filhos do Egito estavam dispostos a dar sua vida para defender a liberdade nascente e para defender seus tesouros culturais. Abaixo segue o depoimento de um desses lutadores sociais, Ibrahim, que é também guia turístico. Ele dedicava parte do seu dia – assim como outros colegas – a cuidar dos museus e das bibliotecas do país, para evitar que as riquezas fossem roubadas. Segundo ele, nesses momentos de crise e violência, os ladrões que surrupiam os tesouros antigos são justamente as autoridades oficiais, e não o povo. São essas atitudes, de cuidado com o país, que nos levam a pensar sobre o terrível destino que aguarda toda essa gente que sonha com a autonomia.