Conjuntura da Semana. Junho 2013. Significados, inflexões e perspectivas do Outono Brasileiro

IHU On-Line –A análise da Conjuntura da Semana é uma (re) leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.

Sumário:

A potência das ruas

Tudo mudou nas últimas semanas
A recusa e o reconhecimento
Ruas pedem outro modelo
O precariado está nas ruas
Ética. Uma bandeira da direita?
Redes Sociais. Novo sujeito político?
O despreparo da vanguarda institucional
As reações de Dilma e do Congresso
Da Assembleia Nacional Constituinte ao Plebiscito

Eis a análise.

A potência das ruas

Tudo mudou nas últimas semanas

Os acontecimentos de junho de 2013 – as grandes manifestações serpenteando as ruas das principais cidades brasileiras – colocaram o país no cenário mundial das multidões que tomaram as ruas e praças nesse início de século. Tahrir, Puerta do Sol e Taksim também acontece aqui. Por que o Brasil? Por que agora? Qual o significado dessas manifestações? Qual é a sua potência e o seu devir?

O assombro que virou o país de cabeça para baixo nas últimas semanas – e permanece – suscita mais perguntas do que respostas. Aqueles que já têm as respostas definitivas para o que está acontecendo também são aqueles que não previram o que iria acontecer. Assumir a condição da fragilidade na análise é a primeira condição para se aproximar dos acontecimentos. Como diz o historiador Lincoln Secco, “o movimento é uma esfinge, pede para ser decifrado”.

A condição de fragilidade na análise se faz ainda mais necessária quando se percebe que estamos diante de um novo tipo de movimento que não segue a estrutura dos movimentos tributários da sociedade industrial, fordistas em sua organização e compreensão de mundo. O viés conservador que inicialmente tomou conta das análises dos movimentos tradicionais – partidos, sindicatos, intelectuais e até mesmo do MST – que viam e veem riscos de despolitização e direitização nas ruas é resultante do desencaixe que esse movimento provoca.

Estamos diante de um tipo de movimento que não se enquadra nos manuais clássicos de análise – sem direção, sem organicidade, sem fundamentação teórica explícita, sem bandeiras, sem carro de som, etc. Os dois grandes movimentos de massa recentes no país – Diretas Já! (1984) e Fora Collor (1992) tiveram a hegemonia da esquerda que nesse momento foi pega de surpresa com o furor das ruas.

A novidade agora é que não há um centro. Como afirma Giuseppe Cocco, “o primeiro elemento é este [o movimento] têm uma dinâmica intempestiva, foge a qualquer modelo de organização política (não apenas os velhos partidos ou os sindicatos, mas também o terceiro setor, as ONGs) e afirmam uma democracia radical articulada entre as redes e as ruas”. Assiste-se a uma revolta plural, a uma polissemia de manifestações na manifestação. Assiste-se, como destaca Candido Grzybowski, um modo de ser e de fazer luta política na forma de uma “destruição criativa”.

Uma grande novidade do junho 2013 – absolutamente improvável, inimaginável e impensável – foi o encontro de Dilma Rousseff no Palácio do Planalto com representantes do Movimento Passe Livre – MPL. A interlocução com o que estava acontecendo nas ruas não foi feita com os partidos, as centrais sindicais, o MST, as ONGs, mas sim com jovens autonomistas.

Tudo mudou nas últimas semanas. Doravante, arrisca Vladimir Safatle, “não haverá mais política como conhecemos até agora. Daqui para a frente ela irá em direção aos extremos”.

Em poucos dias, viu-se um giro radical nas articulações, prioridades e estratégias no mundo da política. A agenda do Palácio do Planalto e do Congresso mudou proporcionalmente à força das ruas – voltaremos a falar sobre isso. Mas não foi apenas o executivo e o parlamento que se renderam às ruas, a grande imprensa também, que transitou da tentativa de criminalização e desqualificação do movimento das ruas para incensá-lo como manifestações do exercício da livre manifestação e da democracia.

Ainda mais. As ruas mexeram com os Movimentos Sociais e partidos. Perplexos, os partidos tiraram suas bandeiras dos armários e correram para as ruas para se somarem às multidões. Alguns não foram bem recebidos por uma minoria, o que empurrou muitos a uma análise conservadora do significado do que estava acontecendo.

Que movimento é esse que mudou tudo nas últimas semanas? Que inverteu as pautas de cabeça para baixo? Na sequencia, sugerimos “aproximações” de leitura sobre o que está acontecendo no Brasil, sem a pretensão de interpretações definitivas.

A recusa e o reconhecimento

Atônitos, perplexos, confusos e desorientados. Assim ficaram analistas, cientistas políticos, comentaristas e jornalistas com o vagalhão das manifestações que explodiram em todo o país a partir da violenta repressão contra a manifestação convocada pelo Movimento do Passe Livre – MPL no dia 13 de junho em São Paulo.

Onde encontrar a razão desse turbilhão? Procurar uma única razão como base e fundamento do movimento pode ser precipitado. Como afirma Giuseppe Cocco, “podemos logo começar dizendo que o que caracteriza essas manifestações é que elas não representam exatamente nada ao passo que, por um tempo mais ou menos longo, elas expressam e constituem tudo”.

Duas palavras chaves, entretanto, irrompem para a leitura das ruas: A recusa e o reconhecimento. Recusa pelo que está aí, reconhecimento pelo que se quer.

“O que acontece nessas manifestações é uma recusa”, afirma o sociólogo Luiz Werneck Vianna ao comentar a onda de protestos que se disseminou pelas principais capitais brasileiras: “Ao longo desses anos, essa geração cresceu vendo e se confrontando com uma situação em que os partidos e a classe política em geral se desmoralizavam a cada dia (…). Tudo isso foi distanciando a população, especialmente os jovens, da vida institucional”.

O mesmo analisa Tarso Genro para quem “a questão do país não é uma corrupção em abstrato. A questão do país é a corrupção concreta de um sistema político vencido e é um cansaço da democracia, que não ousa inovar-se”. Assiste-se a “uma forte negação do modo de fazer política no Brasil”, diz o sociólogo Sérgio Adorno.

Retomando a análise de Werneck Vianna, diz o professor da PUC-Rio: “Não há clubes, não há partidos. Estes (os partidos) vivem inteiramente orientados para sua reprodução política, eleitoral, não têm trabalho de consolidação, de nucleação. A própria Igreja Católica, que antes cumpria um papel muito importante nessa organização, hoje tem um papel muito pequeno. A sociedade está inteiramente isolada da esfera pública. São dois mundos que não se tocam. Por toda a parte viam-se faixas com os seguintes dizeres: ‘nós não acreditamos na representação que aí está’. Foi um movimento dirigido também contra essa política”.

Segundo ele, “temos que procurar as origens desse processo, que mal começou, nessa forma de relação entre Estado e sociedade, entre política e sociedade. Está evidente que temos que passar por reformas políticas importantes no sentido de que o sistema político se abra à participação”.

As ruas alertam: o “vocês me representam” foi substituído pelo “eu me represento”. Como afirma Tarso Genro, vemos agora o “salto do cidadão anônimo para a esfera pública, ele agora se exprime na sua pura singularidade, sem a necessidade de compartilhar publicamente para tornar-se influente”. As manifestações expressam, diz Leonardo Boff, que “cada cidadão, pode sair do anonimato, dizer sua palavra, encontrar seus interlocutores, organizar grupos e encontros, formular uma bandeira e sair à rua”.

Assiste-se a um esgotamento da representação política, diz Giuseppe Cocco. Segundo ele, “no Brasil, esse fenômeno foi totalmente subavaliado pela esquerda e, sobretudo, pelo PT porque não o entenderam (e não o entendem)”.

Segundo o professor da UFRJ, “no Brasil, o PT e seu governo (e sua coalizão) pensavam estar blindados pelos recentes sucessos eleitorais, por estar num ciclo econômico positivo e por ter achado que o sagrado graal do ‘novo modelo’ econômico seria, na realidade, reeditar o velho nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de neodesenvolvimentismo. O que a esquerda como um todo, e o PT no Brasil não entenderam, é que a crise da representação é geral (mesmo que ela tenha sintomas e manifestações diferenciadas), e que os levantes da multidão no Egito, na Tunísia, na Espanha, na Turquia e agora no Brasil são a expressão, entre outras coisas, de uma recusa radical dessa maneira autorreferencial de pensar por parte dos governos e dos partidos políticos”.

Contrapondo-se ao esgotamento da democracia representativa, pede-se “reconhecimento político”. Trata-se do reconhecimento pela afirmação do “eu me represento” politicamente. Como diz Rudá Ricci, “não está em questão a necessidade de mediação social, de representação. A forma partidária, entretanto, se tornou anacrônica”.

A palavra de ordem nas manifestações “sem partido, sem partido”, significa que o movimento é apolítico? Ao contrário, expressa Giuseppe Cocco, “não estamos diante da falência da política, trata-se da persistência da política”, porém, de outra política.

A leitura de que o movimento é despolitizado, como muitos se apressaram a insinuar, e depois recuaram, é conservadora. “Os partidos (sobretudo aqueles que estão no governo) dizem que esses movimentos são limitados porque recusam os partidos, não são ‘orgânicos’, porque têm uma ‘ideologia’ que os recusa e, portanto, são potencialmente antidemocráticos. Obviamente, isso é correto. Só que, a afirmação correta esconde duas belas falsificações”, diz Giuseppe Cocco.

A primeira, diz ele, “os grupos que rezam por uma crítica fundamentalista da representação têm pouca consistência social e nenhuma capacidade de determinar, sequer influenciar, movimentos desse tamanho”. Segundo, “os partidos atribuem a crise da representação a um processo e a uma crítica que viria de fora, quando na realidade os maiores e únicos responsáveis dessa crise são eles”.

Há um cansaço da política do aliancismo, do clientelismo, do “aconchabrismo”, do “conchavismo”. “O movimento que nasceu com a luta contra o aumento recusa as dimensões autoritárias e arrogantes das coalizões e desses consensos que reúnem direita e esquerda na reprodução dos interesses de sempre”, diz Giuseppe Cocco.

Segundo Cocco, “é o Haddad que devia representar o novo e se apresenta junto ao Alckmin para juntos dizerem a mesma coisa: que a redução da tarifa terá um custo (sic!). É a coalizão conservadora que governa o estado e a prefeitura do Rio, e onde o PT planeja e executa remoções de pobres, desrespeitando a própria Lei Orgânica do Município – LOM. São as alianças espúrias com os ruralistas de um ministro de esquerda. É a condução autoritária das megaobras e dos megaeventos. É a entrega da Comissão de Direitos Humanos da Câmara a um fundamentalista que, exatamente no dia seguinte da grande manifestação da segunda-feira, fez votar o projeto de Lei que define a homossexualidade como uma doença”, afirma ele.

Na opinião de Cocco “na realidade, o apoio genérico dos jovens à palavra de ordem ‘sem partidos!’ não tem nenhuma significação linear e ainda menos ‘fascista’. Paradoxalmente, a recusa dos partidos, inclusive dos ‘radicais’ e de suas bandeiras, é a recusa – claro, confusa e contraditória – da homologação de direita e esquerda e uma demanda para uma ‘verdadeira esquerda’. Essa demanda não é idealista e não pode ser travada com linguagens e símbolos obsoletos (as bandeiras vermelhas, por exemplo). Para reerguer as bandeiras vermelhas, é preciso deixá-las em casa por um bom momento! A bandeira vermelha precisa abandonar sua dimensão ideal e transcendente (ou seja, vazia) e voltar a ser interna (imanente) às linguagens das lutas como eles são. Nesse terreno é possível e necessário construir outra representação e, sobretudo, reforçar a democracia”.

As ruas pedem uma autocrítica dos partidos, principalmente os da esquerda, porque eles fazem parte do problema. Na análise do sociólogo Rudá Ricci, “o governo Lula cometeu dois erros políticos. Primeiro, retirou os canais sociais por onde as demandas das ruas se organizavam e eram transformadas em pautas. Estou citando ONGs, pastorais sociais, sindicatos, entidades de representação e mobilização social. Todas ingressaram na estrutura de Estado ou passaram a terceirizar serviços públicos através de convênios. Na prática, aquele canal por onde a população tinha sua insatisfação acolhida foi interditado. O segundo erro foi abdicar do papel histórico dos governos de esquerda, que é sua ação pedagógica, o confronto com valores conservadores”.

Aqui diz ele, “Lula não enfrentou nenhuma agenda polêmica porque decidiu estabelecer a conciliação de interesses em sua gestão”. Algo já expressado por Werneck Vianna sobre o modus operandi lulista que neutralizou os movimentos, tal qual na Era Vargas: “Qual foi a operação que o Estado Novo getuliano fez? Exatamente esta: tudo o que era vivo na sociedade ele trouxe para si. Tal como agora. Trouxe para si e, de cima, formula políticas para a sociedade”, diz ele. Segundo o sociólogo, “um governo que absorve as representações corporativas de trabalhadores e empresários, com um chefe de Executivo carismático a mediar interesses conflitantes, fortalecido pela crescente centralização do Estado”.

Por outro lado, o movimento não é apenas de recusa, é também de busca de reconhecimento. “As pessoas querem ser reconhecidas, querem que sua dignidade e identidade sejam respeitadas, legitimadas”, diz o sociólogo Werneck Vianna. Ou ainda como afirma Manuel Castells trata-se de um movimento “em defesa da dignidade”.

O reconhecimento aqui assume uma tripla condição: Reconhecimento político, social e cultural. Ao lado do reconhecimento político (representação) e social (inclusão), tem-se a luta pelo reconhecimento cultural, ou seja, a luta não é apenas pela igualdade, também é uma luta pelo reconhecimento à diversidade nas condições e opções de gênero, mas não apenas, também raciais e étnicas.

Ruas pedem outro modelo

A luta pelo “reconhecimento” assumiu na expressão “inclusão social” uma de suas maiores potências. O modelo de inclusão via mercado de consumo – a aposta lulista/dilmista – se tornou insuficiente. Segundo Tales Ab’Sáber, “em termos históricos mais amplos, o que se anuncia nas ruas é o esgotamento do período de hegemonia do pacto social realizado pela política de Lula, incluindo aí o seu corpo, centrado na inclusão pelo consumo de superfície”.

O “milagre brasileiro está em pane”, anuncia manchete do jornal francês Le Monde. As ruas pedem um modelo de inclusão via resolução dos problemas estruturais. Transporte coletivo que funcione, moradia com acesso aos serviços públicos, educação e saúde de qualidade, trabalho decente.

De um twitter: “Dilma, imperdoável. Jamais uma palavra de apoio aos LGBT, índios, removidos, ribeirinhos, haitianos. Só carros, produção, consumo, energia”. Em outro twitter: “As cidades tão tendo seus dias de índio e de operário do PAC”. É evidente o esgotamento do modelo neodesenvolvimentista centrado em grandes obras – a Copa do Mundo aqui como simbologia maior do dinheiro público gasto de forma desmedida, vide cartazes: “Muito mais do que 20 centavos”; “Da Copa eu abro mão, eu quero mais dinheiro para a saúde e a educação”; “Seu filho está doente? Leve para um estádio da Fifa”.

Precariado nas ruas

Há ainda outro componente potente que vem das ruas e diz respeito àqueles que a ocupam e se anuncia como explosivo: o jovem precariado – conceito de Ruy Braga que diz respeito aos jovens que ao adentrar no mercado de trabalho se veem diante de empregos precários, alta rotatividade, baixa remuneração. A sociedade do “pleno emprego” brasileira esconde a superexploração no trabalho.

O professor de sociologia Marcelo Ridenti destaca que “embora muita gente tenha concluído o colegial e entrado na faculdade, o lugar para os jovens no mercado é muito restrito. E, quando conseguem uma colocação, acabam se sujeitando a condições de trabalho que não combinam com as promessas de ascensão social pelo estudo. Isso gera um desconforto que tem laços também éticos e existenciais”.

Algo similar diz o sociólogo Gabriel Cohn, para quem percebe-se na ruas certo mal-estar que reflete “uma insegurança dos jovens em relação a seu futuro”. A mesma intuição, de Ridenti: “É de que é menos a passagem de ônibus e mais a manifestação de desconforto dessa nova geração que não está encontrando um lugar muito claro na sociedade”.

Segundo Giuseppe Cocco, agora, o mundo do trabalho complexificou-se e não passa mais apenas pela prévia implementação na relação salarial tal qual no período fordista. Agora, afirma Cocco, “o trabalho dos incluídos enquanto excluídos é um trabalho de tipo diferente: ele é precarizado (do ponto de vista da relação de emprego); imaterial (do ponto de vista que depende da recomposição subjetiva e comunicativa do trabalho manual e intelectual) e terciário (do ponto de vista da cadeia produtiva, aquela dos serviços)”.

Segundo o professor da UFRJ, “a qualidade da inserção produtiva desse trabalho depende diretamente dos direitos prévios aos quais têm acesso e que, ao mesmo tempo, ele produz, como, por exemplo, poder circular pela metrópole. É exatamente essa composição técnica e social do trabalho metropolitano o que constitui a outra face da ‘nova classe média’ oriunda do período Lula. Ao mesmo tempo em que ela foi a base eleitoral das sucessivas derrotas do neoliberalismo, ela é também hoje, na sua recomposição política, a oposição ao neodesenvolvimentismo. Para ela, a questão da mobilidade urbana tem a mesma dimensão que tinha o salário para os operários ao mesmo tempo em que o segmento estratégico é aquele dos serviços”.

Continua Cocco, “as cidades e metrópoles brasileiras – e não a reindustrialização – constituem o maior gargalo, ao mesmo tempo social, político e econômico. A ideologia e a coalizão de interesses que estão com a presidente Dilma não mostraram, até agora, a menor capacidade de enxergar esse dado. Mais do que isso, essa nova composição do trabalho imaterial e metropolitano produz, a partir de formas de vida, outras formas de vida. Por isso, o movimento do passe livre, como aquele de Istambul que defendia um parque, foi juntando todos os focos de resistência que existem nas metrópoles, até se espalhar – como está fazendo nesse momento, dramaticamente e assustadoramente – pelas periferias onde nunca teve manifestação de massa nenhuma”.

“O que esse ‘levante’ da multidão do trabalho imaterial nos mostra é que o ‘legado’ destes últimos dez anos de governo está em disputa, e que o mais interessante é ficar por dentro dessas alternativas, em vez de querer colocar uma ou outra bandeira. A política e os movimentos estão dentro e contra”, conclui Giuseppe Cocco.

A nova realidade e composição do mundo do trabalho lança um desafio ao movimento sindical. Não estariam as centrais sindicais indo às ruas no dia 11 de julho com bandeiras de lutas esmaecidas? Estão elas conectadas aos desejos e pulsões do novo precariado jovem que se faz a partir dessa nova composição técnica do trabalho imaterial das metrópoles?

Ética. Uma bandeira da direita?

Há outro aspecto que vem das ruas e não pode ser negligenciado. O tema da ética. Esse tema emergiu com força em todas as manifestações e uma de suas vítimas foi a PEC 37. Há uma leitura superestimada que sugere que o movimento nas ruas retoma a bandeira udenista da corrupção, ao gosto da direita. Nessa interpretação, o movimento corre o risco de ser instrumentalizado com o único objetivo de se desmontar os avanços sociais obtidos na Era Lula e preparar o terreno para o retorno da direita ao poder.

É inegável que a direita procura se apropriar desse discurso e usa o tema da corrupção, tendo ao fundo o ‘mensalão’, como um aríete para abalar a fortaleza em que se transformou o mito Lula. Deixar esse tema, entretanto, sob a hegemonia da direita é um equívoco. A ética é uma bandeira da esquerda. Validar o discurso do medo de que não se pode criticar o governo pelos equívocos cometidos, ou ainda porque isso significa jogar “água no moinho da direita” é recusar a legitimidade da importância estratégica desse tema num projeto de país.

Redes Sociais. Novo sujeito político?

Paralelamente e proporcionalmente ao desgaste dos partidos e da força das ruas, viu-se a emergência das redes sociais: “As redes estão cumprindo uma expectativa que já existia há algum tempo, de ser um canal onde as pessoas procuram manifestar frustrações que elas não conseguem há anos expressar na esfera política, expressar uma vontade de participar na esfera pública que o sistema político há anos deixou de conseguir canalizar. Isso é o mais importante que está acontecendo”, afirma Ronaldo Lemos.

Na opinião do pesquisador da FGV: “As redes sociais se tornaram o principal fórum para esse debate. As pessoas que participaram das manifestações ligam a TV e veem os mesmos comentaristas falando sobre o que aconteceu. Daí, vão para a internet e passam três, quatro horas checando o que seus amigos estão falando sobre a mesma questão no Twitter e no Facebook. As pessoas agora estão se dedicando a discutir e a analisar o que está acontecendo. Há um momento de reflexão. As pessoas estão fazendo um balanço sobre quais os limites e quais as garantias democráticas que não podem ser abaladas. Há uma busca por outras agendas que podem se tornar centrais. As pessoas estão buscando novas agendas que podem gerar consenso. Não acho que o papel das redes sociais se enfraquece”.

Segundo Pedro Abramovay, diretor de campanhas da Avaaz, “tinha gente que dizia: ‘olha só, isso é uma despolitização, isso se resume a sofá’. E não, as pessoas não perceberam que a internet hoje faz parte da vida das pessoas”. Em sua opinião, “quando as pessoas compartilhavam uma petição pelo Facebook, pelo Twitter, elas estavam assumindo posição política diante dos seus amigos. Aquilo foi criando um caldo novo de cultura política num ambiente no qual a política e a forma de se fazer política está muito envelhecida. Uma hora tinha que explodir. E acho que explodiu, foi para as ruas”, afirma.

Há um novo “sujeito político” – a internet e o seu impacto transformador. Sobre isso, a ex-senadora e ex-ministra do meio ambiente, Marina Silva, diz algo interessante: “Não sei porque as pessoas achavam que só a política ia ficar do mesmo jeito”, numa referência ao impacto transformar da internet nas outras áreas. A internet sempre esteve na política, agora, porém, como uma novidade, levou a política para as ruas.

As ruas relativizam ainda o propalado poder do império da mídia. A grande mídia procurou desqualificar e criminalizar o movimento, porém o movimento cresceu apesar da contrapropaganda da impressa. A “guerrilha” das redes sociais contrarrestam a mistificação do poder da mídia.

O impacto das manifestações e o despreparo da vanguarda institucional

Quando as manifestações nas ruas já ganhavam proporções inimagináveis, veio da boca do ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, a expressão mais significativa do estado em que políticos, partidos, sindicatos e movimentos sociais de vanguarda se encontravam. Segundo Carvalho, o país acompanhava tudo o que estava ocorrendo um pouco “atônito”. “Nós temos que entender isso, se não seremos atropelados pela história”, disse.

As redes sociais foram fundamentais para que todas essas manifestações chegassem até o ponto de se transformarem num fenômeno mundialmente conhecido e observado. O depoimento do fotógrafo Douglas Agostinho Teodoro, de 34 anos, é um bom exemplo do que significaram as redes sociais para a ampliação das manifestações: “Acho que eles (os políticos) ainda não entenderam o que está acontecendo”. Acrescentando: “Eles são de uma geração analógica, e nossa revolução é digital. Eles não entenderam que a gente não precisa mais esperar quatro anos para dar nossa opinião nas urnas. A gente dá nossa opinião a hora que quiser, na internet. O Brasil não funciona, mas o Facebook funciona”.

O economista Carlos Lessa considera que “o aumento das tarifas de transporte coletivo urbano foi a gota d’água que produziu uma metamorfose espetacular. Uma novíssima geração de brasileiros foi para as ruas protestar e se situar como sujeito que faz história. O paradigma das antigas mobilizações foi estruturalmente modificado com a rapidez do uso das redes sociais”.

Esse novo paradigma das mobilizações parece ter gerado insegurança e perturbação para as centrais sindicais, que tiveram que se justificar ressaltando que “a pautas ‘das ruas’ é basicamente a mesma do movimento sindical, mas precisa ser ‘organizada’ para que dê resultados”. “Nunca deixamos de pleitear concomitantemente recursos para educação, saúde e questões sociais”, disse Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT). Já Paulo Pereira da Silva (Paulinho), presidente da Força Sindical, enfatizou: “Nós estamos na rua há muito tempo, só que as nossas manifestações não têm a mesma cobertura”. Será mesmo?

O jornalista Ricardo Kotscho considera que as autoridades de todos os níveis “ficaram tanto tempo ilhadas em seus gabinetes, afastadas da interlocução com o movimento social e o empresariado, que agora não sabem nem por onde começar a conversa e que medidas tomar primeiro”. Também salientou que “os governos demoraram demais para perceber a mudança dos ventos e do humor das populações urbanas, sufocadas pela deterioração dos serviços públicos, que transformaram a vida nas cidades numa permanente gincana pela sobrevivência”. Kotscho citou uma das intervenções do senador petista Lindbergh Farias, do Rio de Janeiro, que reconheceu que partido político “virou coisa de eleição (…), deixou de ser instrumento de mobilização das ruas (…) Houve um afastamento principalmente desse contato com a juventude. (…). Um deslocamento de todos os governos de uma realidade e da vida das pessoas”.

Não por acaso, os partidos políticos, com seus exíguos militantes, padeceram diante da fúria de multidões apartidárias, indispostas, saturadas e desacreditas das bandeiras partidárias. A espontaneidade, horizontalidade e anarquia das massas preocupam as lideranças partidárias. Renato Simões, secretário nacional de Movimentos Populares e Políticas Setoriais do PT, chegou a mencionar a necessidade de separar o joio do trigo, ressaltando a importância da participação e disputa dos rumos do movimento. Diante da atual fragilidade do elo entre partidos e sociedade, seria esta a saída correta?

O fato do movimento não ser galvanizado pelas organizações e instituições mais ‘tradicionais’, não pode ser pretexto para deslegitimá-lo, nem desmerecê-lo. A militante do Movimento Passe Livre (MPL), Mayara Vivian, precisou esclarecer, ao longo do desdobramento das manifestações, que o movimento é apartidário, mas isto não significa que seja contra os partidos. O movimento é contra qualquer tipo de pauta conservadora representada por alguns manifestantes presentes nos atos. “O MPL é anticapitalista e contra qualquer forma de opressão”, disse.

Além disso, Mayrara também rebateu as críticas quanto ao uso da violência. Disse que os atos isolados de violência não os representam, sendo que a violência policial só instiga o apoio da sociedade ao movimento. “Qual violência é pior? Os jovens assassinados na periferia de São Paulo que ninguém está nem aí? Ou uma pessoa que bota fogo em um saco de lixo indignado por ter levado pancada da polícia?”, questionou Mayara.

As reações de Dilma e do Congresso

Após o momento inicial de letargia, a presidente Dilma Rousseff começou a agir. Na opinião de Lincoln Secco, professor de História Contemporânea na USP, em artigo publicado em conjunto com Antônio David, pós-graduando em filosofia, “a presidenta Dilma Rousseff parece ter feito dois movimentos ousados. O primeiro é legitimar nas manifestações os interlocutores de esquerda: o MPL, o qual de fato já foi ultrapassado pelas ruas, e o MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto]. O segundo movimento da presidente foi jogar as manifestações contra o Congresso e este já acusou o golpe e chamou a proposta de Constituinte exclusiva de autoritária”, o que já foi descartado pela presidente.

Dilma procurou interpretar as vozes que vinham das ruas, dando a entender que as manifestações contam com o seu aval. “Precisamos oxigenar o nosso velho sistema político. Encontrar mecanismos que tornem nossas instituições mais transparentes, mais resistentes aos malfeitos e, acima de tudo, mais permeáveis à influência da sociedade. É a cidadania, e não o poder econômico, que deve ser ouvida em primeiro lugar”, pronunciou em cadeia nacional.

Na segunda-feira, do dia 24 de junho, Dilma prontamente anunciou cinco medidas em resposta às manifestações nas ruas:

1. Responsabilidade fiscal para garantir a estabilidade da economia;
2. A convocação de um plebiscito sobre a reforma política e alteração na legislação para que o crime de corrupção se torne hediondo;
3. O pacto pela saúde, com a criação de novas vagas para médicos e a contratação de profissionais estrangeiros;
4. Investimento de 50 bilhões de reais em mobilidade urbana para transportes, com metrô e ônibus;
5. Mais recursos para a educação, repetindo a destinação de 100% dos recursos dos royalties do petróleo para a educação.

Somando-se a isto, desde que as manifestações mostraram toda a sua energia, Dilma iniciou um amplo leque de conversas com os mais diversos representantes dos manifestantes, estendendo o diálogo com os demais movimentos sociais e centrais sindicais.

Resta saber qual será o peso das últimas estratégias e embates políticos da presidente Dilma. Ela sabe que precisará agir com rapidez e astúcia. A última pesquisa realizada pelo Datafolha aponta que a avaliação positiva de seu governo recuou 27 pontos em três semanas, caindo de 57% para 30%.

E se as ruas estão reorientando as preocupações de Dilma Rousseff, também estão colocando o Congresso Nacional em ritmo frenético. Segundo reportagem de Raymundo Costa, pelo jornal Valor, “o Congresso só se move por pressão. E a rua tem um papel fundamental em suas decisões. Basta ver a derrota da PEC 37 (que limitaria poderes do Ministério Público Federal), uma espécie de musa da onda atual de protestos: os deputados não tiveram a menor dúvida em votar maciçamente com as ruas”.

Para que as coisas sejam bem encaminhadas, as negociações entre Dilma e o Congresso precisarão ser bem costuradas. Hylda Cavalcanti, em reportagem pela Rede Brasil Atual, menciona que o trabalho da presidente, neste momento, é o de “aparar arestas e desfazer o clima ruim com os partidos e parlamentares”, para conseguir avançar nas respostas às manifestações ocorridas nas ruas. Neste sentido, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, como bom mediador para o executivo, disse que no plebiscito sobre a reforma política “o Congresso é que tem a palavra final, a competência para estabelecer a lei partidária, a lei eleitoral. O plebiscito vai balizar e nortear as reformas, mas quem definirá tudo será o Congresso”. O assunto ainda renderá muitos debates e caberá aos brasileiros fazer valer o que já exigiram nas ruas.

Da Assembleia Nacional Constituinte ao Plebiscito da reforma política

Entre as primeiras propostas surgidas para dar uma resposta aos clamores por mudanças na ordem da política estava a da convocação de uma assembleia nacional constituinte exclusiva, para aprovar uma reforma política. A ideia era que, nas eleições de 2014, um grupo de pessoas seja eleito exclusivamente para discutir e aprovar uma reforma política. Os constituintes não precisariam ter filiação partidária e seriam eleitos para mandato de um ano. Essa constituinte exclusiva funcionaria paralelamente aos trabalhos da Câmara dos Deputados e do Senado.

A proposta da assembleia constituinte exclusiva foi defendida por parlamentares – os senadores Cristovam Buarque (PDT-DF), Pedro Taques (PDT-MT), Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) e Pedro Simon (PMDB-RS) e os deputados Chico Alencar (PSOL-RJ) e Miro Teixeira (PDT-RJ) –, pelo governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, e inclusive pela Presidente Dilma Rousseff, num primeiro momento.

Tarso Genro chegou a fazer uma veemente defesa desta proposta: “Um processo constituinte atípico para promover uma profunda reforma política, precedido de um plebiscito convocado segundo a Constituição, é uma oportunidade extraordinária para fazer avançar o sistema por dentro da democracia”.

As reações contrárias, no entanto, manifestando ora inconstitucionalidade, ora falta de clareza, mas sobretudo falta de vontade política, vieram de juristas, do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional.

Dadas as dificuldades em torno desta proposta, a própria Dilma Rousseff, num segundo momento, propôs a realização de um plebiscito da reforma política. Seria algo mais tangível e que tem amplos apoios de parlamentares da base aliada do governo, de juristas, embora tenha resistências na oposição, que prefere um referendo.

A realização de um plebiscito com vistas a entrar em vigor na eleição de 2014, coloca também uma série de questões, em torno dos quais vai avançando o debate. O tempo é exíguo, uma vez que as mudanças devem ser aprovadas até o início de outubro próximo.

Outra frente de questões diz respeito às perguntas a serem submetidas à população e o seu número. Até o momento, três temas são apontados como obstáculos para modernização do sistema partidário e eleitoral. A ideia é que o plebiscito traga questões sobre o financiamento público de campanha, o modelo de eleição de parlamentares e de escolha de candidatos. Com outras palavras, os pontos principais deverão ser, a questão do financiamento de campanha – se poderá ser público, privado ou misto – e o sistema de votação – se proporcional, como é hoje, ou um sistema majoritário, o distrital, ou ainda um sistema distrital misto.

A campanha “Reforma Política Já”, iniciativa das mesmas entidades que se mobilizaram para a aprovação da Lei da Ficha Limpa, iniciou a coleta de 1,5 milhão de assinaturas para a apresentação de um projeto de lei de iniciativa popular. Entre as propostas defendidas, consta a mudança nas formas de financiamentos e de prestações de contas das campanhas e o estabelecimento de um sistema de dois turnos para a eleição proporcional. De acordo com a proposta, no primeiro turno, os eleitores votariam em partidos. No segundo, em candidatos. Essa mudança obrigaria os partidos a apresentarem seus programas e bandeiras.

Outras propostas foram apresentadas pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, que defende a candidatura avulsa e o ‘recall’, mecanismo pelo qual o mandato de um político pode ser revogado pelos próprios eleitores.

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