O Brasil dos sem-água

Família de Domingos tem TV e parabólica, mas recebe água a conta gotas, em Serra Talhada, Per­­nam­buco
Família de Domingos tem TV e parabólica, mas recebe água a conta gotas, em Serra Talhada, Per­­nam­buco

Gazeta do Povo percorre 2 mil km pelo semiárido brasileiro, castigado há 3 anos pela pior estiagem em 5 décadas, num cenário de desolação e morte

Gazeta do Povo – Homem rústico, aspecto andrajoso, Domingos José dos Santos leva nas órbitas um olhar profundo e triste. A pátina do tempo deu-lhe as rugas antes do previsto, algumas de tristeza, outras de desamparo e umas quantas de desilusão. Mimetizar-se à árida realidade não foi o bastante. Parecia não haver lugar mais seco e rançoso do que o sertão pernambucano, e assim o produtor rural fugiu há 10 anos buscando a sorte no sertão baiano. Foi no desespero atrás de algo tão prosaico quando essencial: a água. Deu com os burros na falta dela. A seca tem o condão de dissolver sonhos em rigores extremos, e Domingos voltou.

O velho sertanejo de 71 anos foi traído pela tal “tirania das contingências”. Vê-se agora em condição pior do que antes da estiagem de três anos a fio no semiárido nordestino. Abandonou no povoado de Lajeto de Pau d’Arco tudo o que tinha: dois terrenos e duas casas de alvenaria – “só uma delas levou 40 sacos de cimento”. Ninguém compra, ninguém tem dinheiro, “tá todo mundo indo embora”. No regresso, há um ano, ergueu uma casa de taipa, feita de ripas e barro, nos costados do terreno que a filha, Maria de Lurdes, 37 anos, ganhou em 2006 num assentamento rural de Serra Talhada (PE).

Domingos e sua família fazem parte de um paradoxo brasileiro, menos pelo fenômeno natural nele subjacente e mais pela incapacidade coletiva de lidar com ele. O sertanejo e a mulher, Maria da Penha, de 69 anos, moram na tapera de barro; a filha, o genro e três netos vivem na residência de alvenaria ao lado. As reuniões familiares se dão na casa de taipa, de frente para a televisão, com sinal da parabólica. A energia elétrica e alguns confortos por ela proporcionados chegaram muito antes do que a água tão procurada por Domingos nos sertões de Pernambuco e da Bahia.

Riqueza sob os pés

Há razões para acreditar em água boa sob os pés, pela abundância no poço artesiano a 300 metros. O vizinho não dá nem vende uma gota, e Domingos não tem dinheiro para uma perfuração. O carro-pipa tarda dois meses para voltar, e abastece só oito dos 16 mil metros cúbicos da cisterna. Se terminar antes, azar. O racionamento priva as crianças de uma brincadeira tão trivial quanto divertida: banho de mangueira. Sentiriam o peso do remorso por se darem o luxo de uma distração quando mal se tem para beber. Entre a sorte de ter uma parabólica e o azar de não ter água, Maria de Lurdes prefere uma inversão. “A água faz mais falta.”

Eles não estão sós. A seca avançou sobre outros 280 municípios além dos 1.135 que compõem o semiárido bra­­sileiro, região mais castigada pela pior estiagem em 50 anos, forjando dias instáveis a 22 milhões de pessoas. A Secretaria Nacional de Defesa Civil decretou situação de emer­­gência e estado de calamidade pública em 1.046 cidades. O saldo é aterrador. Pelas contas do Conselho Nacional de Pe­­cuária de Corte, a seca já levou um milhão de cabeças de gado. Metade morreu e a outra metade foi abatida antes da hora ou mandada para outras regiões.

Há um mês o governo brasileiro anunciou R$ 9 bilhões para o combate emergencial à seca e R$ 32 bilhões em barragens, canais, adutoras e estações elevatórias para garantir o permanente abastecimento de água no Nordeste. Porém, os projetos suscitam dúvidas. “Falta colocar foco no sujeito mais desassistido, que está no campo. Muitos têm energia elétrica, têm parabólica, alguns têm telefone, têm acesso à internet. Mas está faltando água”, destaca o professor de recursos hídricos da Uni­­versidade Federal do Rio Grande do Norte, João Abner Guimarães Júnior.

Doutor em hidráulica e saneamento pela Universidade de São Paulo, Abner joga areia na transposição da Bacia do Rio São Francisco, o grande orgulho do governo brasileiro no combate à seca. Para ele, não passa de um programa inócuo (leia mais na edição de quinta-feira). O problema não é a falta de água, mas a má distribuição. Grandes obras não darão cabo do sofrimento imposto pela estiagem, diz o agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Na­­buco João Suassuna. As 70 mil represas do Nordeste acumulam mais de 10 bilhões de metros cúbicos de água. “Mas não existe uma política para captar e levar para quem precisa”.

História árida

A chuva tem por hábito de­­saparecer com frequência, às vezes com mais insistência. O Nordeste brasileiro enfrentou 34 significativas secas desde 1583, ano do primeiro registro feito pelo padre Fernão Cardin. Desta vez, no entanto, a situação se presta a dar livre curso à preocupação de uma gente cansada de promessas nunca cumpridas. Quanto mais esperar por soluções que nunca chegam? O que se deve esperar desse canal de transposição que representa a opulência do dinheiro gasto sem restrição? E ninguém pode alegar que foi pego de surpresa.

O Centro Técnico Aeroes­­pacial, de São José dos Campos (SP), fez em 1978 um estudo estatístico a partir das secas dos úl­­timos séculos. Descobriu que as grandes estiagens ocorrem em intervalos de 26 anos, entremeados por outras menores. Nesse estudo prospectivo, a seca que ora castiga o semiárido era previsível. “O triste é que, mesmo sabendo da previsibilidade, não se faz nada de ações estruturadoras para tornar possível a convivência do homem nesse período seco”, diz Suassuna. E a seca vai persistir no sertão até o fim de 2014, segundo pesquisas climáticas.

Essas previsões quase foram desmentidas há uma semana. As chuvas voltaram a cair em parte de Pernambuco, mas concentradas no litoral, na Zona da Mata e no Agreste. No sertão, mais para o interior do estado, as precipitações foram tão esparsas que nem de longe permitiriam uma recuperação dos leitos dos rios secos, dos rebanhos bovinos e das plantações já devastadas. As dezenas de rios efêmeros do Nordeste, transformados em leito de morte do gado, retratam a agonia de uma região órfã da seca.

Levar água é mais barato do que levar luz

Levar água para o sertão custa menos do que levar eletricidade, nas contas do professor de recursos hídricos da Uni­­versidade Federal do Rio Grande do Norte, João Abner Gui­­marães Júnior. O parâmetro é o Programa Luz para Todos, lançado há dez anos pelo governo federal para eliminar a exclusão elétrica no país levando energia gratuita a dez milhões de brasileiros do meio rural. Um programa similar, trocando a luz pela água, poderia evitar a fome, a sede e as perdas agrícolas enfrentadas por 22 milhões de nordestinos no semiárido.

O programa federal Água para Todos tem limitações porque o foco está na construção de cisternas para captar a água das chuvas nos telhados das casas. Em longas estiagens, as famílias voltam a depender do oneroso carro-pipa. No semiárido, sete entre dez pessoas estão nas cidades, 92% delas com sistema público de abastecimento de água. O problema está no meio rural, onde vivem os outros 30%. O sistema de Abner, doutor em hidráulica e saneamento pela Universidade de São Paulo, chegaria a eles e evitaria os impactos com secas mais prolongadas.

“Dizer que falta água é mentira”, diz Abner. Sobra água para consumo hu­­mano e animal mesmo em época de seca, ele assegura. “São 10 bilhões de metros cúbicos armazenados em grandes reservatórios acima do Rio São Francisco.” Só o Ceará tem 80% desse manancial. O problema está na democratização do acesso à água. Nesse ponto entra a proposta de Abner, um sistema adutor com capilaridade suficiente para atender a toda a necessidade do semiárido usando um quinto do volume armazenado nos reservatórios. Parece tão lógico que assusta imaginar porque não está em prática.

Custo menor

Nesse sistema capilar, adutoras captam água de reservatórios regionais, que por sua vez podem pegar de outros maiores. À média de um reservatório a cada 30 quilômetros, ela teria um custo per capita de R$ 20 por ano, com amortização do investimento em 50 anos. Com menos de mil reais por mês, uma adutora de três polegadas de diâmetro atenderia de 3 a 4 mil pessoas. Abner, ele próprio um sertanejo da região central do Rio Grande do Norte, lembra que quatro entre dez habitantes do seu estado consomem água de adutora. Uma prova, portanto, de que é possível.

Os 70 mil açudes existentes no Nordeste destinam-se hoje para consumo humano, mas 95% da água se perde em evaporação. Para Abner, um sistema integrado que traga água das grandes barragens para o abastecimento humano liberaria os pequenos açudes para a produção de alimento para o gado e outras atividades rurais. O principal insumo para a distribuição da água, a energia elétrica, já está disponível. O custo de R$ 20 per capita por ano com esse sistema capilar representa um terço do valor da transposição da Bacia do Rio São Francisco.

Ela própria, a transposição, é uma prova de que recursos existem. Os governos, de FHC a Lula e Dilma, apostaram num programa de desenvolvimento regional a partir da transposição do São Francisco. Onde está o erro? Abner aponta dois. Primeiro: alcance restrito, a área de influência chega a apenas 5% do semiárido. Segundo: na prática a obra só irá transferir estoques de água do rio para grandes reservatórios já abastecidos. “É chover no molhado”, avalia. “A transposição é um programa inócuo. O governo precisa se libertar dos lobbies das grandes obras”, diz.

Um exemplo de que a adutora funciona está em Serra Talhada (PE). A água que tirou o município de 80 mil habitantes do colapso no abastecimento vem do rio São Francisco, transportada pela adutora do Pajeú nos 112 quilômetros concluídos pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). A água é transportada numa vazão de mais de 100 metros cúbicos por segundo desde a captação no lago Itaparica, no município de Floresta, até a estação da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) em Serra Talhada.

Sertanejo, esse bravo

O homem que maneja o facão na plantação de palma é um tanto gasto em anos, mas mantém a altivez de sertanejo. É sobre gente como ele que recaem os refluxos da seca. No curso de seus 75 anos, Luís Vieira de Souza guarda na memória os vários períodos de estiagem. E ela sempre volta. “Três anos enrabado um no outro, nunca vi na minha vida”, diz com a vivência que não se aprende na escola. Sabe como poucos ler os sinais do tempo, o que o autoriza, por sinestesia, a afirmar com propriedade que a seca de agora supera aquela histórica que perseverou de 1979 a 1984.

Seu Luís e quatro filhos criam 186 cabeças de gado e plantam milho e feijão na propriedade de 600 mil metros quadrados, em Cabrobó, tendo ao fundo as obras do canal de transposição do Rio São Francisco. Tão perto do rio e a plantação resseca. A irrigação esporádica pouco adianta. Gasta R$ 900 por mês em energia elétrica puxando água para o consumo da família depois de tratá-la com cloro, para dar de beber aos animais e irrigar umas poucas plantas. Não rega tudo porque uma conta de R$ 2 mil seria inviável.

Seu Luís se põe a cortar mais palma. A agrura da seca chegou inclusive para essa que é a mais resistente das plantas do sertão, último recurso de alimento para o gado. “Até o mandacaru tá difícil de achar”, diz o velho sertanejo com o desalento que se adquire com sucessivas frustrações. Está ruim até para os cactos. Seu Luís olha para as folhas murchas e experimenta uma sensação de vazio. Mas não pode simplesmente ignorar suas obrigações. Ao fundo, um gado esquálido aguarda a refeição.

Reina o odor de estrume no modesto curral quando o sertanejo retorna. Reserva dois terços de sua atenção ao filho e à nora que acompanham a movimentação dos dois estranhos com câmeras e canetas. Seu Luís se dirige ao cocho tomado pela desolação. O filho, parado à sua frente para ajudar, parece igualmente desolado. O velho empunha o facão e pica a palma em gestos mecânicos dentro do chocho, atraindo a atenção das rezes amarradas ao redor. Ele suspende a cabeça e divisa ao fundo o animal suspenso na UTI improvisada na estrebaria.

A vaca de 5 anos e duas crias está faz dois meses dependurada em cordas para se manter de pé. Se cair não levanta, não se sustenta nas pernas. Morte certa. Efeitos da fome. Seu Luís guarda esperança; há pouco salvara outra vaca no mesmo sistema, depois de um mês no pêndulo, água e comida na boca. Requer paciência. Diante desse homem crispado em sua rusticidade e honra de sertanejo, resta a impressão de que às provações impostas pela seca acrescenta-se uma cota adicional de humanidade. Antes fosse o único, a despeito da nobreza do gesto.

A mortandade se espraia de forma a fazer das carcaças parte integrante da paisagem da caatinga. A proporção é aterradora. Só o estado de Seu Luís, Pernambuco, perdeu 800 mil animais – 150 mil morreram, o restante abatidos precocemente. A bacia leiteira pernambucana também perdeu sete dos dez litros que produzia antes da estiagem.

Os novilhos definham diante dos olhos e as últimas vacas leiteiras não se aguentam mais em pé. O gado que dá a sorte de tombar perto da sede do sítio tem alguma chance. UTIs iguais às de Seu Luís se tornaram comuns no Polígono das Secas, uma área que abrange o norte de Minas Gerais e oito estados nordestinos: Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Sergipe e Rio Grande do Norte. Mas esses arranjos não adiantam quando não se tem o que dar de comer para o gado.

Uma vizinha de Seu Luís acaba de vender 83 bois por R$ 16 mil. Ou, R$ 192 a cabeça, o equivalente a um churrasco de fim de semana para 10 pessoas em qualquer outra região do país não castigada pela seca. O estoque de ração acabou e o preço do milho subiu. Ela vendeu mais para não vê-los morrer do que para evitar prejuízo maior. Em condições normais, receberia pela boiada 10 vezes esse valor. Não quis repetir a história de tantos outros sertanejos que acreditaram na proximidade da chuva.

Até os mais afortunados, os que têm água no subsolo na propriedade, veem o rebanho definhar. Ires Pereira de Mendonça, 59 anos, extrai água de dois poços artesianos para vender para consumo humano. Ele perdeu 100 cabeças de gado desde o fim de 2012. Os animais morreram de inanição. A água mata a sede, não a fome. Mesmo com tanto recursos hídricos disponíveis, Ires não soube e não teve orientação de forma a aproveitá-los para irrigar a plantação que poderia salvar seu rebanho. Por ironia, o leito de morte do gado foi o leito seco do Rio do Imbé, no distrito de Mimoso, no município pernambucano de Pesqueira.

Polígono das Secas

O semiárido brasileiro estende-se por oito estados do Nordeste (Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe), além do Norte de Minas Gerais, totalizando uma extensão territorial de mais de 980 mil quilômetros quadrados. As principais causas da seca são naturais.

A região recebe pouca influência de massas de ar úmidas e frias vindas do Sul. Logo, permanece durante muito tempo no sertão nordestino uma massa de ar quente e seca. Também contribuiu para agravar o quadro os quase cinco séculos de queimadas e corte intensivo da floresta, além da exploração da monocultura da cana-de-açúcar.

Enviada por Ruben Siqueira para Combate Racismo Ambiental.

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