Meus amigos do Espírito Santo e da Bahia não se entendem quanto a qual moqueca é mais saborosa: a tradicional, feita na Boa Terra, que leva azeite de dendê, ou a capixaba, mais leve, cozida sem dendê. Na dúvida, fico com as duas. Mas o fruto dessa palmeira, que tem um lugar de destaque em nossa culinária, tem estado no centro de polêmicas, que podem causar uma bela indigestão para o meio ambiente e as comunidades tradicionais se não tratadas de maneira certa.
O dendê tem sido duramente criticado por organizações da sociedade civil em todo o mundo por promover desmatamentos e expulsão de pequenos agricultores. Já desterrou gente na Indonésia, Malásia, Papua Nova Guiné, Filipinas, Camarões, Uganda, Costa do Marfim, Camboja, Tailândia, Colômbia, Equador, Peru, Guatemala, México, Nicarágua e Costa Rica. Tratado como “herói da economia” pelo mercado mundial (se os usineiros da cana são “heróis” para o ex-presidente da República, o dendê tinha que ser herói para alguém), a palmácea tem a maior produtividade de óleo por hectare dentre todas as oleaginosas comerciais.
O dendê tem espaço consolidado no abastecimento das indústrias alimentícia e cosmética da Europa, do Japão e dos EUA, e sua utilização para produção de biodiesel, destinado sobretudo ao consumo interno dos países de origem, tem crescido à medida que é usado como mecanismo regulador dos preços internacionais do óleo bruto. Porém, a valorização ascendente do óleo de dendê acabou causando uma catástrofe ambiental e social nos países acima mencionados.
Por aqui, a cultura ainda não teve seu papel ou seu impacto definidos. Do ponto de vista biológico, o dendezeiro tem características que o tornam uma espécie apropriada em processos de recuperação de áreas degradadas na Amazônia e, do ponto de vista social, a cultura tem revelado potencial de geração de empregos, já que todo o seu manejo é manual. Cultivado mais extensivamente no Pará e no Sul da Bahia, o ele ainda não está na lista dos grandes vetores do desmatamento ou dos conflitos socioambientais por aqui.
Esta situação pode mudar pois o novo Código Florestal permitirá, entre outros, a recuperação das reservas florestais na Amazônia com espécies exóticas, incentivando a produção de dendê. O que pode ser uma dor de cabeça, uma fez que as áreas degradadas não são contínuas, e a implantação de grandes projetos de plantio poderia levar a desmatamentos das faixas intermediárias de floresta. Os impactos de uma dendeicultura massiva sobre um bioma tão megadiverso como a Amazônia também não foram mensuradas ainda, assim como são imprevisíveis os efeitos sobre as comunidades tradicionais e sobre a agricultura familiar da região. Leis específicas devem tentar impedir novas supressões vegetas para o dendê. Mas desde quando desmatador é punido por não seguir lei por aqui?
As características positivas poderiam fazer do dendê uma alternativa econômica bem-vinda para a agricultura familiar, se cultivado em sistemas agroflorestais, em pequena escala e de forma autônoma. Mas esta não parece ser a opção prioritária das políticas públicas. Não obstante sua alta rentabilidade, o cultivo de dendê em larga escala tem um alto custo de implantação e manutenção, modelo que tende a transformá-lo em exclusividade do grande agronegócio, com eventuais projetos de integração da agricultura familiar.
Os investimentos em dendê no Pará, principal estado produtor do país, aumentaram consideravelmente este ano, com recursos que superaram os R$ 27 milhões, de acordo com o Banco da Amazônia. Esta injeção de dinheiro e a concomitante instalação ou expansão de grandes empresas no Estado, porém, tem preocupado o Ministério Publico Estadual (MPE), que teme o acirramento de disputas fundiárias e da pressão sobre territórios de populações tradicionais, como quilombolas e indígenas. A reportagem é de Verena Glass, da Repórter Brasil:
Denúncias de violência e trabalho escravo envolvem cultura do dendê no Pará, por Verena Glass
No início de novembro, quilombolas da Comunidade Dezenove de Maçaranduba, localizada na divisa dos municípios de Acará e Tomé Açu, sofreram um ataque de pistoleiros que deixou dois mortos e quatro feridos. O crime ocorreu na vila de Quatro Bocas, ironicamente o local onde o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou o Programa de Produção Sustentável de Palma de Óleo em 2010.
De acordo com a denúncia encaminhada pelos quilombolas à promotora de justiça agrária, Eliane Moreira, parte de suas terras vem sendo disputada por um fazendeiro, interessado em vendê-las para a empresa Biopalma (braço produtor de dendê da mineradora Vale), o que pode ter motivado o ataque. A empresa tem como meta plantar dendê em 60 mil hectares no estado.
“A área hoje ocupada por várias comunidades quilombolas na região está em processo de regularização junto ao Instituto de Terras do Pará (Iterpa) desde 2010, mas, segundo os quilombolas, parte das terras já teria sido ocupada pela Biopalma. Para garantir a posse do território até a finalização da análise do Iterpa, que já vistoriou e gerreferenciou a área, os quilombolas ocuparam aquela parcela, e a Biopalma entrou com pedido de reintegração de posse. Mas não há nenhum elemento que ligue os assassinatos à empresa”, explica a promotora.
De acordo com José Carlos Galiza, coordenador da associação Malungu, que representa as organizações quilombolas do estado, “o que nós, das comunidades quilombolas da região, estamos reivindicando, é a titulação coletiva de 4,3 mil hectares. A comunidade Maçaranduba está em uma área muito cobiçada para o dendê. A Biopalma, que diz que comprou parte dessa terra, pelo que a gente saiba não tem documentação, mas já desmatou boa parte da área. O que tem mesmo é pressão de outros fazendeiros que querem vender parte do nosso território para o dendê. E tem criminalização da polícia, porque no dia do velório dos dois assassinados, a policia prendeu não os assassinos, mas quatro familiares dos mortos”.
Para a promotora Eliane Moreira, o caso dos quilombolas de Maçaranduba é sintomático e preocupa o MP. “Estamos verificando como o dendê tem afetado os direitos territoriais das comunidades tradicionais, bem como se as empresas estão cumprindo o Protocolo Socioambiental do Óleo de Palma (que prevê critérios de sustentabilidade ambiental, social, produtiva e econômica), acordado com o governo do Estado. Mas partimos do princípio que, em casos de disputas em territórios tradicionais, por mais que os fazendeiros tenham título da terra, este não tem condão de macular os direitos territoriais das comunidades”, explica a promotora.
Agropalma compra produção de trabalho escravo – Outro exemplo que evidencia problemas na cadeia produtiva do dendê no Pará é o caso do produtor Altino Coelho de Miranda, vice-prefeito reeleito do município de Moju pelo PSB, flagrado duas vezes com trabalho escravo. Miranda é fornecedor da empresa Agropalma, maior do país no setor do dendê.
A primeira fiscalização na fazenda de Miranda, conhecido como Dedeco, ocorreu em 2007 e resultou no resgate 15 trabalhadores. Na época, o Grupo Móvel de fiscalização, composto por cinco auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego e seis agentes da Polícia Federal, iniciou a ação com uma busca por armamentos, já que havia uma denúncia de que os trabalhadores seriam impedidos de deixar a propriedade enquanto tivessem dívidas na cantina da fazenda. No local, foi encontrada e apreendida munição de armas de fogo.
Quanto aos fatores que caracterizaram condições de trabalho análogas à escravidão, de acordo com os auditores, além de alojamentos extremamente precários, os trabalhadores não tinham salário fixo ou carteira assinada, eram obrigados a comprar alimentos na cantina da fazenda, não tinham controle sobre os preços – que eram anotados em caderneta e descontados do pagamento no fim do mês -, não recebiam água potável nas frentes de trabalho, e não recebiam ferramentas, que eram obrigados a adquirir por conta própria. Também foi constatado que um dos trabalhadores se acidentou por falta de equipamento de proteção individual. Nesta ocasião, foram lavrados 25 autos de infração.
Em abril de 2008, o Ministério Público Federal denunciou o produtor na Justiça por prática de trabalho escravo, e em 2009 Miranda foi condenado a nove anos de prisão em regime fechado. O réu apelou, e o processo se encontra parado no Tribunal Federal Regional da 1a Região (TRF1), em Brasília.
A segunda libertação ocorreu em agosto deste ano, e resgatou 10 trabalhadores. Nesta ação, os auditores fiscais encontraram trabalhadores alojados em um barraco de madeira, coberto de lona, sem paredes laterais, portas, janelas e, principalmente, sem banheiros. O assoalho estava podre, e o telhado de cavaco, em adiantado estado de deterioração, tinha muitas goteiras. Ainda segundo os fiscais, durante a noite, quando chovia, os empregados eram obrigados a levantar de suas redes e protege-las para não molhar.
Já as refeições eram preparadas em um fogareiro improvisado no interior do barraco, não havia mesas, cadeiras, armários e local adequado para armazenar mantimentos. Os trabalhadores comiam sentados no chão, sustentando o prato sobre as pernas. Roupas, objetos pessoais, louças e outros também ficavam no chão. Como não havia banheiros, os trabalhadores tinham que fazer suas necessidades no mato.
O alojamento também servia de galinheiro, e, do lado de fora, o pátio barrento era usado pelos porcos. “A área adjacente à cozinha era alagadiça, na qual acumulavam-se resíduos orgânicos. Essa área era local de recreação dos porcos, que ali banhavam-se na lama, além de ser foco de um odor péssimo. Tal situação expunha os trabalhadores à contaminação parasitária, degradava as condições de trabalho e humilhava os empregados”, afirma a fiscalização.
No campo, os trabalhadores não tinham lugar pra comer, não havia banheiro, kit de primeiros socorros, abrigo contra chuva, e o transporte até a frente de trabalho era feito em um trator sem freio e demais dispositivos de segurança.
Sem carteira de trabalho assinada, no ato da fiscalização os trabalhadores estavam 90 dias sem receber. De acordo com os fiscais, o produtor afirmou que não pagava os funcionários “porque não estavam dando produção”. Também foi constatada escravidão por dívida, ja que os alimentos eram comprados na cantina da fazenda, e as dívidas, anotadas em caderneta e descontadas do pagamento no fim do mês. “Os trabalhadores estão trabalhando por comida, porque chega no dia do pagamento o patrão diz que não tem saldo”, afirmaram os fiscais. Nesta segunda ação do Grupo Móvel, foram lavrados 22 autos de infração.
Procurada pela reportagem, a Agropalma afirmou que, mesmo com todos os problemas, não irá rescindir o contrato com Miranda. De acordo com Túlio Dias, gerente de responsabilidade socioambiental da empresa, a Agropalma tem um contrato de 25 anos com o produtor e, apesar da existência de uma clausula contratual que permite a rescisão em função de desrespeitos à legislação trabalhista, a política da empresa é implementar ações pedagógicas que levem à melhora das práticas dos produtores parceiros. “Cancelar o contrato significaria que estamos correndo do problema, não resolvendo”, justifica Dias. Segundo ele, a empresa também poderia ser questionada na Justiça se resolvesse terminar a parceria.
A Agropalma é signatária do Protocolo Socioambiental do dendê mas, segundo Dias, o acordo tem pouca eficácia uma vez que o próprio governo, seu proponente, nunca implementou mecanismos de fiscalização.
A reportagem tentou entrar em contato com Altino Miranda via a prefeitura de Muju, município do qual é vice-prefeito, mas ninguém atendeu às ligações.
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http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2012/12/25/denuncias-de-violencia-e-trabalho-escravo-envolvem-lavouras-de-dende-no-para/
*Jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.