por Felipe Milanez
Uma das maiores operações de aplicação da lei jamais realizada na Amazônia brasileira começou no domingo 9 de dezembro. Nos últimos dias, conseguiu minar resistências locais e retomar para o patrimônio da União cerca de 50 fazendas ocupadas ilegalmente. Trata-se de uma terra indígena invadida, que é homologada pela Presidência da República e garantida por reiteradas decisões judiciais (Primeira Instância, Segunda Instância e o Supremo Tribunal Federal).
A Justiça determinou a posse, mas faltava o cumprimento da ordem. Em campo, estava estabelecido um conflito territorial e ecológico entre um povo indígena, os xavantes (A’uwê Uptabi, em sua denominação), e a estrutura agrária que avança em busca de novas terras, formada por pequenos produtores rurais, posseiros, grandes fazendeiros, políticos profissionais, e grandes interesses econômicos do agronegócio. Em disputa estão 165 mil hectares de terra, dos quais 110 mil eram de cobertura de floresta amazônica e 20 mil de cerrado. Hoje, segundo a Funai, mais de 60% virou pasto e soja, e um terço é controlado por 22 “casas grandes” que não admitem interferências em seus negócios.
Caetano Veloso, em seu último disco, canta que “O Império da Lei” há de chegar, e em uma analogia podemos dizer que “há de chegar no coração do Mato Grosso, há de chegar lá”. O deslocamento desse império para cumprir a lei ocorre com sua força mais bruta: Forças Armadas, Força Nacional, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, e um aparato burocrático coordenado pela Presidência da República, que envolve, entre 12 órgãos, o Incra e a Funai. E a resistência a ele utiliza métodos amplos: pressões políticas no legislativo, executivo, judiciário, mídia. E também as cruéis: ameaças de morte, de sangue, de guerra, e racismo e intolerância. “A política é a guerra por outros meios”, disse o filósofo Michel Foucault.
Pergunte a algum xavante de Marãiwatséde sobre a recente decisão do STF, em que Joaquim Barbosa, em dezembro, confirmou decisão de Ayres Britto, de outubro, enquanto este era presidente do Supremo, em que suspendia uma liminar que impedia a retirada dos invasores. Ou sobre as manifestações na Rio+20. Ele dirá que é preciso compreender o seu retorno à região em 2004, a homologação de 1998, as denúncias internacionais de sua opressão em 1992, a Eco92 e, sem entrar em sua longa e milenar etnohistória, dos conflitos no nordeste na época da chegada dos europeus e aldeamentos em Goiás, já no século XVIII, ou nos primeiros contatos pacíficos com os colonizadores em 1960, e chegará ao mês de agosto do ano de 1966: data chave para se compreender o que ocorre hoje.
Quem primeiro sentiu força do poder do Estado na região do médio Araguaia não foram os fazendeiros, mas os A’uwê Uptabi. Em 1966, 233 homens e mulheres xavantes embarcaram em aviões da FAB com destino a uma missão católica 450 quilômetros ao Sul no estado do Mato Grosso. O território que ocupavam então, próximo ao recém criado Parque do Xingu (1961), havia sido deixado de fora da proteção indigenista por Jânio Quadros, que excluiu todas as áreas xavantes que constavam nos primeiros projetos apresentado pelos irmãos Villas Bôas, Darcy Ribeiro, Noel Nutels e Eduardo Galvão. A terra era objeto de cobiça de grandes fazendeiros e grileiros paulistas, liderados por Ariosto da Riva, um “colonizador” de São Paulo, e também por políticos matogrossenses. Até então “isolados”, ou tido como “arredios”, os xavantes refutavam relação com a sociedade hostil que os cercava e com o Estado. Restava a troca de violência mútua, com os índios atacando ranchos, e os “brancos” promovendo “expedições punitivas” dizimando aldeias, além de algumas trocas de alimentos e bens materiais eventualmente pacíficas.
Um gerente de Ariosto da Riva, que cuidava da área na época, reclamou que os índios estavam frequentando demasiadamente a sede para pegar facões, machados e farinhas, e estavam dando prejuízo. Com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) decadente, envolto em escândalos de corrupção (viria a ser extinto para dar lugar a Funai no ano seguinte), veio a decisão de “limpar a área”.
A articulação para o desalojamento desta comunidade foi mobilizada no início da Ditadura. Envolveu o exército, a força aérea, o SPI, a Igreja Católica, com o padre Mário Panziera tomando a frente, políticos locais, e o financiamento da Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) para o agronegócio. Nas duas semanas seguintes à transferência, cerca de dois terços dos A’uwê Uptabi que haviam sido deslocados de seu território faleceram na missão Salesiana São Marcos.
Sobre os índios caiu uma bomba química conhecida como sarampo. O número de mortos, em torno de 160, não é preciso. Entre eles estava Ru’waê. Um senhor magro, alto, forte, que exercia uma liderança influente sobre seu povo, porém não absoluta – tanto que foi voto vencido e mudou-se contrariado a sua pretensão de resistir. Entre os filhos que deixou estão Paridzané (“Damião”), e Ruwa’wé (“Rufino”).
Os descendentes de Ru’waê nunca desistiram do retorno. Rufino foi o guerreiro, mantinha o grupo unido internamente, enquanto Damião o político que representava a comunidade diante dos brancos. Porém, o mesmo Estado que os havia deslocado, agia para impedir esse retorno. A terra foi para Riva e transferida ao grupo Ometto. Os índios, revoltados com o que acontecia, passaram a ocupar diferentes terras xavante, que conheciam por laços históricos. A fazenda transformou-se em Suiá Missú (referência a dois cursos d’água), o maior latifúndio do Brasil, palco de violência local e objeto de valor no mercado de terras, sendo então comercializada. Passou para as mãos da Liquigás, sucedeu-se para a italiana Agip Petroli, e aí permaneceu ao longo dos anos 1980.
Nesse período, os A’uwê Uptabi seguiram uma extenuante diáspora. Mudaram-se para o território de Sangradouro, depois Parabubue, Areões, e receberam exílio, finalmente, na terra de um grupo xavante com o qual possuem antigos relacionamentos de alianças: o grande chefe Warodi (falecido em 1988), da vizinha terra indígena Pimentel Barbosa, autorizou a construção da aldeia Belém, existente até hoje.
Nos anos 1970 e 1980, muitos territórios xavantes foram demarcados no estado do Mato Grosso – que serviram de refúgio aos de Marãiwatséde. Excluídos de seu território e enfraquecidos em razão da grande mortandade que sofreram, e ao exílio e à diáspora a que estavam submetidos, não conseguiram reunir força suficiente para recuperar a terra. No entanto, em nenhum momento deixaram de se considerar como A’uwê Uptabi de Marãiwatséde, o que chegava a causar conflitos por motivos históricos com os outros xavantes. Mas nada que impedisse uma eventual alianca contra os waradzu, ou “brancos”: Siridiwê, cacique da aldeia Ethenhiritipá, disse que se precisar ir para guerra para ajudar Paridzané a defender Marãiwatséde, seu povo está pronto. Assim como xavantes de todas as terras indígenas têm expressado solidariedade à luta de Paridzané.
Vem então o fim da Ditadura, a Constituição Federal de 1988, e a conferência Eco92, e a história da relação dos xavante com o Estado começa a mudar. É nesse período que ocorre a principal aproximação política com uma organização internacional, que veio a ser fundamental para a história da retomada: a italiana Campagna Nord Sud, que funcionou de 1989 a 1992. Liderada pelo parlamentar verde Alex Langer, a organização fiscalizava a atuação de empresas italianas no mundo. E o caso da Agip em terras xavantes foi exposto, causando grande constrangimento. A mobilização envolveu a ida de Paridzané para a Itália e matérias nos jornais italianos. A visibilidade da conferência internacional foi considerada uma esperança para o líder xavante para atrair atenção ao seu caso. Também para que pudesse ter um novo acesso às instituições do Estado, dessa vez para beneficiá-lo com os direitos adquiridos em 1988. Queria o retorno a Marãiwatsède e a demarcação da terra.
Em 10 de junho de 1992, durante a Eco92, o presidente da Agip Petrolli, Gabrieli Cagliari, declarou que a empresa iria devolver a terra aos xavantes. O sopro de esperança aos xavantes na Cidade Maravilhosa se transformou em um vento forte e turbulento no Mato Grosso: subsidiária brasileira rebelou-se. Renato Grillo, gerente local da fazenda Liquifarm Suia-Missu, discordou das intenções dos patrões italianos, e passou a incentivar as invasões. No dia 16 de junho, escreveu carta ao Ministro da Justiça informado que 250 posseiros haviam invadido a propriedade que estava sendo devolvida aos índios. Mas não poderiam ocupar tudo: mapas indicavam os locais destinados aos pequenos, aos médios e grande parte, pelo menos um terço no primeiro momento, tinha outro destino: o agronegócio. Em 30 de novembro a mesma empresa anunciou um leilão das terras, organizado pela Companhia Brasileira de Leilões, no Castro’s Hotel, em Goiânia, dispondo um cartaz com selo do Bamerindus. Além das terras, também foram comercializadas 14 mil cabeças de gado.
No meio da floresta, em torno no posto de gasolina ilegal que começava a aglomerar habitantes, o “Posto da Mata”, teve início um novo uso do racismo para deslegitimar o direitos dos índios, na iminência do retorno. Racismo semelhante ao perpetrado por Riva, Ometto e os militares em 1966. As fotografias da época mostram uma terra poeirenta (era o início da seca), e os longilíneos caules amazônicos com as copas espessas ao fundo. Uma gravação da Rádio Mundial FM, de 20 de junho de 1992, a partir das 3 da tarde, descreve o encontro de posseiros e fazendeiros e o movimento de invasão deliberada.
Alguns trechos dos áudios revelam que uma das principais estratégias dos organizadores da invasão era utilizar o racismo e o ódio aos índios como uma ferramenta de união:
Primeiro, Mazinho, um político local:
– E se for colocar índio no seu ambiente natural tem que mandar pra onde tem mata virgem. Como é que vai colocar índio no meio do povo?;
Em seguida, Baú, o então prefeito de São Felix do Araguaia:
– Enquanto a empresa estava intacta nos respeitamos a propriedade. Temos que respeitar a propriedade para ser respeitados;
– O povo da região ficou preocupado com o retorno desses índios;
– Se a população achou por bem que deve tomar conta dessas terras ao invés de dá-las para os índios, nós temos que dar esse respaldo para o povo;
– É o próprio povo que está entrando e demarcando suas terras. Ainda não foi passada a escritura para os índios;
– Já conversamos com o governador, que dará todo o respaldo ao povo;
– Essa ojeriza do nosso povo aos xavantes é muito antiga;
– O xavante é um índio arrogante;
– O que já marcou o lugar primeiro o lugar é dele;
– Não tem a mínima possibilidade do retorno desses xavantes. Estamos canalizando a vontade do povo;
– Nós não queremos índios aqui senão vai desvalorizar toda a região;
– Conversamos com o governador e ele disse que não vai mandar polícia, podem ficar tranquilos;
Filemon Gomes Costa Limoeiro, atual prefeito de São Felix do Araguaia, seguiu o discurso:
– Ou nós ou eles, e preferimos ser nós;
– Hoje (a terra) ia ser jogada nas mãos dos índios;
– Aqueles que estão preocupados com os índios, que tem que assentar, tem um monte de país que não tem índio. Pode levar a metade;
– Na Itália tem índio? Não, não tem. Leva! Leva pra lá! Carrega prá lá! Agora, não vem jogar em nós não. Para atrapalhar uma região;
– Se colocar índio aqui acaba;
– A gente ajuda com caminhão, eu tenho caminhão pra carregar eles pra lá. Aqui não;
– Índio vem pra cá e não vai produzir nada;
– Que deixe essa área aqui pro pessoal que quer trabalhar;
– Xavante é de cerrado, em mata ele não entra, tem medo da onça
– Trazer esses índios vai prejudicar a região toda
Imaginando-se “livres” dos índios, planejavam construir uma “cidade” no Posto da Mata, seguindo um plano bandeirante de Ariosto da Riva. Riva estava vivo ainda na época e, segundo informa uma voz na rádio, estava feliz com a possibilidade da “cidade dos posseiros” e o “progresso”. “Vamos respeitar essa área da cidade porque depois vai dar problema”, ordenava a liderança aos posseiros que chegavam, seguro de si dos padrões urbanísticos pretendidos. Alguns mostravam restrições, perguntando se os índios não iriam voltar, e se voltassem, o que iriam fazer. Mas daí surge outro, mais durão, e diz em tom de quem se garante: “nós já temos uns caboclo bom lá do Bom Jesus já na linha de frente ali na Guanabara. Eu Acho que a gente tem que estar disposto a qualquer coisa. A terra é nossa. Disposto a qualquer coisa.”
Corajosamente, a antropóloga Iara Ferraz, engajada na defesa dos direitos dos índios e que assina o laudo de identificação do território para a Funai, afirma nessa mesma gravação, com voz firme, que a área está em processo de ser reconhecida. “É uma irresponsabilidade muito grande do prefeito e de todos que incentivaram a ocupação sabendo que está em curso um processo de reconhecimento de terra indígena. É uma irresponsabilidade. É um crime”, dizia ela aos posseiros.
A Funai em 1991 e 1992 mobilizou-se para demarcar Marãiwatséde, e os primeiros passos são dados nas gestões dos sertanistas Sidney Possuelo e, na sequência, Cláudio Romero, este identificado ao longo de sua vida com o povo xavante. Ao mesmo tempo, o poder político na região arma as estratégias de resistência do território que tentam conquistar. A antropóloga Iara Ferraz apresentou o laudo com agilidade, a terra é reconhecida pela Funai em 1992 e demarcada em 1995.
Em 1998 é homologada a Terra Indígena Marãiwatséde, registrada em cartório no ano seguinte, sem que nenhum xavante consiga entrar na área, ocupada e vigiada por mais invasores. À medida que a pretensão indígena ganhava cada vez mais respaldo do governo federal, a ocupação ilegal era intensificada. Na década de 2000, ano após ano, Marãiwatséde tem sido a terra indígena mais desmatada na Amazônia.
Liderados por Paridzané, os A’uwê Uptabi deixaram o exílio em Pimentel Barbosa e partiram, em 2004, com guerreiros, velhos, mulheres e crianças, para retomar a área. O conflito foi estabelecido com posseiros em um front marcado por um córrego, ao longo de seis meses. Três crianças faleceram nesse período. Em agosto desse ano, tendo em mãos uma decisão favorável, ainda em caráter liminar, da ministra do STF Ellen Gracie, os A’uwê Uptabi entram na primeira fazenda, Caru, e fizeram ocupações nas proximidades. Em 7 anos agindo quase que por conta própria, apenas com apoio da Funai local e pouco assistidos pela força do Estado, conseguiram retomar menos de 10% do território.
Em 2010, o Tribunal Regional Federal confirmou decisão de primeira instância, favorável aos xavantes, em ação que discutia a demarcação. O Poder Judiciário reconheceu a legalidade do procedimento administrativo de demarcação da terra indígena e, consequentemente, determinou a retirada dos ocupantes não-indígenas e a recuperação das áreas degradadas da TI Marãiwatsédé. A decisão garantiu a posse plena dos indígenas na totalidade da terra indígena – e não apenas na área da aldeia onde já estavam.
No entanto, o TRF não determinou o cumprimento da ordem. Conforme esclarece uma nota técnica da Funai: “Após receber em seu gabinete três representantes de um grupo de aproximadamente 300 mulheres do movimento, e de dois parlamentares da bancada do Estado do Mato Grosso, todos que se opõem à desintrusão, o Desembargador Federal concedeu tal ordem de suspensão. Embasado no seu entendimento de que “na atual situação de exaltação dos ânimos entre os envolvidos, a melhor solução é manter o status quo”. Um eterno “status quo” da ocupação ilegal era pedido.
No final de 2012, a questão chegou ao Supremo. Houve a definição da Corte, pelo presidente Ayres Britto e em seguida reconfirmada pelo novo, Joaquim Barbosa, determinando que fosse cumprida a sentença, confirmada pelo tribunal regional, em que o “status quo” deveria ter o sentido jurídico de manutenção da ordem jurídica, e não da ordem dos fatos opostos ao Direito, isto é, a invasão.
Nesse mesmo ano, Paridzané voltou ao Rio de Janeiro, agora para a Rio+20, e circulou tanto pelo espaço oficial da ONU, quanto pela Cúpula dos Povos. Era auxiliado pela Operação Amazônica, uma organização de apoio aos povos indígenas. Encontrou personalidades, políticos, apareceu novamente na mídia, e expos o drama e a angústia do exílio, da pressão e das ameaças. Em um dos discursos, mencionou algumas vezes a palavra morte. Terminando por dizer que queria morrer em Marãiwatséde.
O segundo semestre foi intenso. O governo preparou um plano de desintrusão, reunindo 12 órgãos e coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência. “O Estado, no caso governo federal, atuando para dar suporte para essa decisão da Justiça. É isso o que está acontecendo. Da parte do governo, da presidenta, essa é uma decisão irreversível”, afirmou Paulo Maldos, coordenador geral do grupo de trabalho em (Clique AQUI para ler).
Os mesmos atores políticos que deliberaram a invasão em 1992 reapareceram. O prefeito Filemon, os posseiros e produtores reunidos em uma associação, grandes fazendeiros, políticos, deputados, senadores. Ao contrário de advogados locais, a Associação dos Produtores Rurais de Suiá Missú (Aprosum), contratou o irmão da influente senadora Kátia Abreu, presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) – Luis Alfredo Ferezin de Abreu. A principal estratégia de defesa passou a ser a vitimização dos posseiros – uma tentativa de apresentar um “status quo” de inocência, e glorificar uma “reforma agrária” feita “pelo povo”. Em oposição às “vítimas pobres”, vinha o ataque aos índios, caracterizado por mensagens racistas e tentativas de desumanizar e desindigenizar a comunidade.
Nas redes sociais, jovens de São Felix do Araguaia passaram a expor um sentimento muito parecido com aquele exaltado por seus pais em 1992. NO entanto, camuflados pela impessoalidade das redes sociais, se mostraram mais agressivos: “VAMOS FUDE COM ESSES FILHOS DA PUTA”, escreveu um no Facebook. “Eu entro com armas e munição”, comentou outro. A foto em discussão apresentava o dizer: “Vão mesmo deixar 500 índios preguiçosos que só dorme e come as nossas custas tomar a área de 7 mil trabalhadores?” O pequeno jornal Bbnewsanunciou uma chamada: “Em pé de guerra: ONGs querem transformar o Araguaia em país indígena”.
A bandeira nacional foi queimada, e a violência passou a ser caracterizada pelo afrontamento, nas últimas semanas, às forças de segurança, ao “império da lei”. Uma rivalidade entre os irmãos Paridzané e Ruwa’wé foi acirrada. Ruwa’wé foi expulso da aldeia e a Funai foi inábil em tentar promover a paz para proteger a comunidade de pressões externas. Os invasores puseram em prática a “estratégia de Cortez”, e com dinheiro e promessa para alguns índios, trouxeram Ruwa’wé para o seu lado. De forma amarga, ele passou a se dizer contrário à terra pela qual lutou sua vida inteira. O governo do estado oferecia, mesmo sendo contrário à Constituição, uma outra terra, uma “permuta”. Ruwa’wé aceitou a oferta, uma sedutora área alagada que é o Parque Estadual do Araguaia. Um parque de conservação em troca de uma terra indígena é uma transação plausível na retórica de quem vê “terra” como “fazenda”, e “índio” como “espécie”, sendo ainda uma “espécie” possível de ser “transladada” para áreas sem qualquer sentido cultural com a sua existência.
Ameaças de morte quase foram às vias de fato com o bispo dom Pedro Casaldáliga e com o líder xavante Damião Paridzané – além também a pequenos produtores que queria retirar seus pertences e mudarem-se para um assentamento e ao prefeito de Alto Boa Vista, Wanderley Perin. Na tribuna do Senado, com um congresso bastante movimentado pelo lobby ruralista, o senador Cidinho Campos (PR), sugeriu a desumanização dos índios: “Hoje podemos dizer que, primeiramente, existem os direitos dos índios e, depois, vêm os direitos dos humanos”. A Comissão Pastoral da Terra considerou “a manifestação carregada de preconceito e ódio”. Em carta, afirmam: “Tudo isso vem trazendo um clima irrespirável e consequências graves não somente para o povo Xavante, mas para toda a sociedade. Provocam-se e acirram-se, a cada dia, ódios e chantagens vingativas e violentas.”
Na imprensa local e em sites falava-se em guerra, sangue, resistência e uma postura desafiadora e intimidadora. Realizaram bloqueios, que espalharam-se, em agrosolidariedade e agroaltruísmo, pelo estado. Uma equipe do jornal Folha de S. Paulo foi abordada em um destes bloqueios no interior do Mato Grosso, onde escutou: “gente de ONG a gente quebra”. O governo federal enviou um efetivo grande, e articulou toda a força do Estado, isolando a região, controlando a circulação. Aos poucos, a resistência foi minando. “Diarréia e dengue minam o ânimo dos moradores do Posto da Mata” anunciou um site local.
Primeiro, caíram os grandes fazendeiros. Em seguida, os médios. No último balanço da Funai, de 18 de dezembro, “41 fazendas vistoriadas desde o início da desintrusão até o fim do dia de ontem (17) e, destas, 18 estavam desocupadas.”
Com relação aos pequenos posseiros, a Funai, representando todo o grupo do governo, informa: “Até o momento, o Incra já cadastrou 183 famílias, 80 das quais se adequam ao perfil. As famílias reassentadas receberão um Contrato de Concessão de Uso da Terra, que se constitui no primeiro passo para o acesso à terra e aos créditos iniciais. Também serão integradas ao Cadastro Único do governo federal e, por meio dele, poderão acessar programas sociais como Bolsa Família, Brasil Sorridente, Brasil Carinhoso, entre outros. A partir de terça-feira (18), será realizada a mudança das primeiras cinco famílias que se cadastraram no programa de reforma agrária. Elas serão levadas ao assentamento Santa Rita, localizado em Ribeirão Cascalheira (MT).”
A primeira vez que eu estive em Marãiwatséde, no início de 2006, eu não imaginei que estava na Amazônia. Não por alguma imagem de cerrado, localizado próximo dali e presente originalmente em 10% da área. Mas pelo grande vazio. Era difícil encontrar a “mata alta”, a “mata perigosa”, a “mata fechada”, como Paridzané traduziu para mim a palavra marãiwatséde. Eu poderia estar no interior de São Paulo ou de Minas Gerais, as áreas hoje ocupadas por grandes empreendimentos do agronegócio, mas que foi toda dominada pelos extintos caiapós do sul no século XVIII e XIX (Hoje se imagina que o povo Panará, que vive no Mato Grosso, pode ser descendente de um grupo desses caiapó).
Havia uma angústia no ar. Um sentimento entre os índios de que a retomada estava prestes a acontecer, pois eles estavam dentro da terra e Paridzané descrevia as festas que já haviam realizado ali com grande alegria. Mas 17 crianças haviam morrido naquele ano – e quase todos os xavantes, em luto por perder um familiar, tinham os longos cabelos raspados. “Brígida”, como fui apresentado à mãe de Paridzané, tinha então mais de 90 anos, e contou palavras que havia dito a seu filho: “O espírito do seu pai está lá em Marãiwatséde. Quero morrer dentro da terra de Marãiwatséde.” Ela praticamente não falava, nem levanta de sua cadeira de rodas. Mesmo assim havia conseguido retornar, acompanhada do filho. Na época, Paridzané me disse: “Ela veio junto com a gente, resistiu, lutou, ficou acampada para entrar ao lado dos guerreiros. Era o sonho dela voltar. Desde que chegou, nunca quis ir para o hospital. Não quer mais sair.”
Não bastava a vontade dos índios, ou a vontade dos fazendeiros, para por fim as angústias, seja dos índios, seja dos posseiros inseguros da posse. Era preciso alguma força maior, um “império da lei” para dirimir os conflitos. E, principalmente, para reparar uma injustiça histórica. A operação de desintrusão ora em curso, representa uma nova relação do poder do Estado com os xavantes, e segundo classifica Paridzané em carta divulgada pelo Ministério Público Federal, ela é “ótima”.
“Agora a desintrusão já começou. Os anciões esperaram muito tempo para tirar os não-índios da terra. Sofreram muito. A vida inteira sofrendo, esperando tirar os fazendeiros grandes.
A lei federal, a constituição, as autoridades estão do nosso lado. As autoridades da Força Nacional, exército, polícia federal estão do nosso lado porque a presidente Dilma sabe que a terra é dos xavantes de Marãiwatsédé.
Agradecemos as autoridades e todas as entidades que nos apoiam nessa luta da verdade contra a mentira. A desintrusão é ótima.”
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http://www.cartacapital.com.br/sociedade/xavantes-invasores-e-o-imperio-da-lei/
Enviada por Janete Melo.