MG – “A Matriarca do Sertão”

Livro mostra o poder da sertanista, misteriosa mulher que liderou sangrenta rebelião em Minas

Historiadoras revelam a verdadeira face de Maria da Cruz, que se tornou uma lenda no Norte de Minas ao comandar sedição contra impostos. Presa pela coroa Portuguesa, se livrou de degredo na África

Tiago de Holanda

No sertão brasileiro do século 18, as leis eram escritas com pistolas, bacamartes e espingardas. Mandavam os grandes proprietários de terra, que mantinham bandos armados e pareciam ignorar o fato de serem vassalos do rei de Portugal. Ladrões e criminosos de toda sorte cometiam delitos sem qualquer punição. Nesse ambiente viril, no rude Norte de Minas, ergueu-se Maria da Cruz. Dona de patrimônio invejável, ela foi a única mulher entre os líderes de uma rebelião que atacava o governo e rejeitava a cobrança de um imposto. Um novo livro revela detalhes sobre a personagem, cuja misteriosa biografia continua a intrigar os historiadores.

Maria da Cruz Porto Carreiro sobreviveu ao tempo como uma figura ambígua. Por um lado, alguns memorialistas a descrevem como uma pessoa cruel, que recebeu a alcunha de Maria da Cruz da Perversidade. Maltratava seus escravos e, para não remunerar serviçais, chegava a matá-los e mandar que fossem jogados no rio. Por outro lado, a imagem que se tornou mais conhecida foi aquela traçada por Diogo de Vasconcellos. Na obra História média das Minas Gerais, publicada em 1918, a mulher aparece como inteligente e muito generosa. “Era ela quem sustentava os enfermos e os inválidos” e quem educava os pequenos, “pagando os mestres de leitura, de música e de ofícios”, narra Vasconcellos.

Não é nenhuma dessas duas personagens a que surge no recém-lançado livro D. Maria da Cruz e a sedição de 1736 (Autêntica Editora), escrito pelas historiadoras Angela Vianna Botelho e Carla Anastasia. Com base em exaustiva pesquisa em arquivos no Brasil e em Portugal, onde encontraram documentos inéditos, como o codicilo de Maria, as autoras conseguiram responder a algumas das inúmeras interrogações que cercam a protagonista. Também chegaram mais perto de descobrir qual o papel exercido por ela na sanguinolenta revolta desencadeada naquele ano, uma das mais importantes ocorridas em Minas durante o período colonial e talvez a mais violenta de todas. A obra defende a tese de que, embora inicialmente manobrado pelos senhores rurais, o levante acabou virando um vale-tudo de objetivos imprecisos

PODEROSA

A nebulosa Maria da Cruz fazia parte do grupo dos ricos e poderosos. Em data desconhecida, ela nasceu às margens do Rio São Francisco, na Vila do Penedo, atual cidade de Penedo, na então comarca de Alagoas, pertencente ao bispado de Pernambuco. Assim como a maior parte das mulheres do seu tempo, Maria nunca aprendeu a ler ou escrever, segundo declarou em seu testamento, publicado na íntegra pela primeira vez. A descoberta das historiadoras contradiz a versão de Vasconcellos, segundo o qual ela era culta e havia sido educada por irmãs carmelitas. “Não achamos nenhum documento que sustente essa descrição, que ele pode ter colhido de algum relato oral”, diz Angela.

Católica, a mulher se casou na igreja com o paulistano Salvador Cardoso de Oliveira, também de família abastada. Os caminhos entre Bahia e Minas aos poucos eram ocupados por roças, fazendas de gado e arraiais. No final do século 17, em uma partilha de terra para sertanistas, Salvador demarcou o quinhão que lhe havia cabido, às margens do São Francisco, no Sítio das Pedras, que atualmente se localiza no município de Pedra de Maria da Cruz, no Norte de Minas, a 600 quilômetros de Belo Horizonte. O casal, que morava nesse sítio, deixou prole numerosa: quatro varões e duas moças, Maria e Catarina. Dois filhos, Matias e Pedro, também viraram grandes proprietários de terras. Outros dois seguiram carreira eclesiástica, ordenados clérigos seculares na Bahia.

Antes dos acontecimentos de 1736, a trajetória de Maria da Cruz aparece nas entrelinhas de documentos oficiais ligados, quase sempre, aos homens de sua família ou à própria sedição. Depois de Salvador morrer, em 1734, a viúva, seguindo as leis do reino, passou a gerir todo o patrimônio do falecido. Sabe-se que no sítio construiu-se “opulenta fazenda”, que tinha engenhos e pastos, e abrigava viajantes. Nas Pedras, o casal ergueu a Capela de Nossa Senhora da Conceição, com altares devotados a Santo Cristo e a Santa Rita. Nas vizinhanças do lugar, não havia “criminosos que se punisse” e viajantes eram constantemente assaltados e mortos com crueldade, segundo documento oficial de autor desconhecido.

De acordo com o mesmo relatório, a família de Maria da Cruz tinha prática nada cristãs. A matriarca comprava por preços baixos, para lucrar com a revenda, “a maior parte dos ouros” que eram furtados “dos direito reais”. Antes de rezar uma missa, um dos filhos clérigos teria açoitado “com as suas próprias mãos” a mulher de um escravo doméstico. Outro filho, “por usar de uma mulher casada”, foi perseguido pelo marido traído, que acabou morrendo, “dizem que de veneno” dado pela própria mulher. O documento narra ainda que escravos pertencentes a Pedro teriam assassinado um comboeiro, que, para enterrá-lo, foi preciso “ajuntarem-se os pedaços de seu corpo”.

Levante agita o Vale do São Francisco

A principal motivação da sedição de 1736 foi uma medida impopular da Coroa portuguesa. Até então, os mineradores pagavam o quinto – imposto que consistia na quinta parte do ouro encontrado. Por não ser área mineradora, o sertão sempre havia sido isento do quinto. Os sertanejos recolhiam apenas os dízimos (10% sobre a produção da terra) e as contagens, pagas nas passagens, as alfândegas da época. O governo decidiu mudar esse sistema de tributação. O sertanejos também passariam a recolher uma certa quantidade de ouro. A taxação “incidia de forma mais contundente sobre os pobres do que sobre os ricos, já que os escravos pagavam a mesma quantia”, independentemente dos resultados da extração do ouro, explicam as historiadoras.

O primeiro motim eclodiu em março de 1736, no Arraial de Capela das Almas. O segundo movimento iniciou-se em princípios de maio no sítio de Montes Claros, junto ao Rio Verde. Em julho, os amotinados entraram no Arraial de São Romão em um total de cerca de 900 homens, uns a pé, outros a cavalo, com “mais de 500 arcos e flechas”, isso é, mais de 500 índios cativos prontos para a briga. O vale-tudo começou em uma segunda fase do conflito, segundo as historiadoras. Houve muitas disputas armadas e atos de vandalismo. Mulheres foram estupradas, fazendas incendiadas e seus proprietários assassinados. “O movimento tem duas faces: a dos potentados, que depois saem do movimento e fica o povo, formado por mestiços, mamelucos, escravos, vaqueiros, pescadores, gente sem profissão. Eles simplesmente resolvem instalar um governo do povo”, explica Carla.

Os tumultos foram controlados ainda em 1736. Maria da Cruz foi presa, primeiro na cadeia de Vila Rica, depois, como as autoridades temessem que fugisse, por ser influente e poderosa, foi transferida para uma carceragem no Rio de Janeiro. O que se conseguiu provar foi que a mulher teria dado a ordem para “quando havia de ir o primeiro levante”, ou seja, para o início da revolta. Condenada a pagar 100 mil réis e a seis anos de desterro na África, ela teve sua pena comutada em 1739. De volta à casa das Pedras, provavelmente assumiu a gerência de seus bens e da fazenda. Morreu em 23 de junho de 1760. Se seus dois filhos padres atenderam suas determinações, seu corpo amortalhado foi sepultado na mesma lápide de seu marido.

Um réquiem tardio foi criado por Diogo de Vasconcellos: “Na história de Minas, há mulheres que se imortalizaram, fosse pela sua beleza ou por seus talentos, fosse também por martírio sacrossanto. Mas diga-nos agora se alguma foi, mais do que esta, digna de memória em nossos fastos. O tranquilo esquecimento, a causa melhor da morte, apagou seu nome conservado apenas no velho e obscuro arraial, à beira do grande rio”.

Foi essa mulher pintada pelo historiador – cuja “têmpera varonil não lhe tirava a natural doçura, e as maneiras de seu trato, realçadas pela posição, atraíam-lhe o afeto dos parentes e o respeito de todos” – que atraiu a historiadora Angela. Na pesquisa, foram consultados os acervos da Torre do Tombo e do Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal, e de diversas instituições brasileiras, como o Arquivo Público Mineiro. As historiadoras não encontraram a heroína descrita por Vasconcellos, que chegou a dizer que Maria era “alta, compleição robusta, cabelo branqueando, olhos negros”. “Não achei uma única linha comprovando essas características. Mesmo assim, ela continua me fascinando. Era forte, lutava pelos interesses dela e de sua família”, diz. Angela. Ela espera que, um dia, a personalidade de Maria da Cruz seja desvendada.

Linha do tempo
– 1735: A coroa portuguesa cria novo imposto para os sertanejos, o que causa descontentamento popular
– 1736: Eclode a sedição, com conflitos armados, assassinatos, estupros e atos de vandalismo, como o incêndio de fazendas
– 1736: Maria da Cruz é presa e condenada a desterro na África, por ter dado a ordem para o início da revolta
– 1739: Maria dita seu testamento, onde afirma que não sabia ler nem escrever, contradizendo versão de historiador
– 1756: Ela dita seu codicilo, em que reitera o testamento. O documento, inédito, foi descoberto pelas autoras do livro recém-lançado
– 1760: Morre e é sepultada, provavelmente, na mesma lápide do marido

Enviada por José Carlos.

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