por Francisco Kulikolelwa Edmundo
A linguagem é a capacidade específica da espécie humana de comunicar ideias ou sentimentos (só a espécie humana é que possui ideias e sentimentos) através de um sistema de signos convencionais (se não fossem convencionais esses signos, cada indivíduo – imagine-se – falaria e escreveria como bem entendesse, constituindo, deste modo, uma autêntica ambiguidade linguística e correndo o risco de não ser apreendida a mensagem que pretendesse transmitir, não se operando, deste modo, o comunicar que é “transmitir uma mensagem através da utilização de um código e dentro de um certo quadro situacional” – FIGUEREIREDO s/d.: 10). Esse sistema, quando utilizado por um grupo singular ou por uma comunidade determinada, constitui aquilo a que chamamos de língua, entendida, então, como um sistema de signos vocais utilizados por um determinado grupo social para operar a comunicação ou o “conjunto de palavras e de expressões próprias de um povo (…)(SOBRINHO, 2000, 55). É através da língua que as ideias, os conceitos, as emoções, os sentimentos se coisificam.
A língua é um veículo de transmissão da cultura. É, e arrisquemos mesmo, a própria cultura, entendida como a totalidade dos valores (padrões) aprendidos, desenvolvidos e transmitidos pelo homem de geração em geração, ou seja, a essência (quid) que faz com que um povo seja esse e não outro povo. É a língua que revela os costumes e o carácter de um povo (cfr. SOBRINHO, 2000: 63). Em outras palavras, a cultura é aquilo que faz com que o povo angolano seja ele mesmo e não o moçambicano, o namibiano, o congolês, o português, etc., etc. Por isso é que se diz, e com a devida razão, que aprender uma língua é assumir uma cultura. Quem quiser aprender português terá que conhecer a cultura portuguesa.
A Língua Portuguesa (LP), tal como a conhecemos hoje, é o resultado da convivência secular entre o latim1 e as diferentes línguas com as quais esteve em contacto na Península Ibérica. Ela possui uma história, talvez, a mais fascinante das histórias das línguas indo-europeias. Por causa dos descobrimentos em que embarcaram os lusíadas (seus ilustres falantes) no século XV, tornou-se uma das línguas faladas por mais de centenas de milhares de pessoas espalhadas pela África, Ásia, América, Europa e Oceânia. Em alguns espaços geográficos a LP encontrou um tecido sociolinguístico em contacto com o qual resultou uma língua (franca? Pidigin?), segunda língua, para alguns, e materna, para outros (crioulo) relativamente diferente daquela que lhe deu origem e que, pouco a pouco, foi sendo utilizada por um grande número de falantes, vindo mesmo a tornar-se bastante veiculada, mesmo em situações formais e oficiais (escola, administração pública, política, imprensa, literatura, etc.).
Um exemplo elucidativo disso é Cabo Verde ( cuja língua tem a singularidade de servir de suporte a uma literatura emergente, o que faz com que não se restrinja apenas ao âmbito oral), Guiné Bissau, S.Tomé e Príncipe, etc. Em outros lugares, ainda, a LP foi permeável, flexível o suficiente ao ponto de absorver no seu seio palavras, expressões e falares indígenas que a enriqueceram mais e tornaram mais vasto o seu léxico. Tomemos, exempli gratia, o português falado no Brasil2, tão rico graças à contribuição, sobretudo, de línguas indígenas e africanas, resultando numa renovação e inovação lexicais do LP.
Em outras regiões porém, a LP não se misturou. Manteve-se intacta, insolúvel, inflexível, virgem, não admitindo intromissões, relacionando-se de uma maneira reticente com as línguas locais. Aí, a LP correu o risco de extinguir-se, ou mesmo, morrer (não vamos aqui fazer referência ao Latim, que julgamos apenas adormecido e que acorda sempre que o evocamos, pelo facto de, de vez em quando, o sentirmos a invadir nossos ouvidos com expressões sobejamente conhecidas no âmbito do Direito, Medicina, Política, Psicologia, Religião, Relações Internacionais, Linguística, Diplomacia, Literatura, História, etc.), à semelhança de línguas como o Grego Arcaico e o Osco, o Piceno, o Umbro, o Falisco – estas últimas conhecidas como línguas itálicas.
Em Angola porém, a LP pode ser analisada a partir de dois pontos de vista: sincrônico – onde, em uma dada altura, manteve-se intacta, alta, culta, padronizada, regrada, formal, fiel a Luís de Camões, procurando manter e conservar a sua originalidade e pureza (um “indígena” angolano que quisesse ascender à categoria de cidadão luso deveria assimilar-se, o que implicava, inter alia, utilizar a LP nesses moldes). É o período do bilinguismo, em que a LP viveu ao lado das línguas locais angolanas. Outro ponto a partir do qual pode-se ver a LP em Angola é o Diacrónico – como nenhuma língua permanece uniforme por muito tempo quando falada em vastos territórios como Angola, ou seja, não existe, e nem existiu, uma língua viva imutável, que chegada a uma espécie de perfeição modelar, cesse de modificar-se e de absorver elementos estranhos ao seu passado, a LP começou a contactar com as línguas locais (Aliás, o português também, como já o dissemos, é fruto, na sua maior parte, do contacto histórico do Latim popular (sermo plebeius), raras vezes erudito, com as línguas locais.
Sendo o Português uma língua vinda do exterior, falada por uma franja da população, pode-se dizer que começou a construir-se, desde então, uma variante propriamente nacional, diferente do português de Portugal. Sendo a população angolana maioritariamente iletrada e pouco influenciada ou não influenciada pelo ensino escolar e pelos modelos literários (todos os literatos juntos foram e continuam a ser sempre poucos), ao longo do tempo a LP foi sendo “adulterada”, falsificada, moldada, adaptada às situações locais, até vir a se tornar flexível, maleável, permeável, aceitável, informal, simples, fiel às circunstâncias dos musseques onde vivia e se movia a maior parte dos seus utentes – pois “uma língua viva não é homogênea, perfeitamente normalizada e regulada por prescrições. Uma língua viva é, pelo contrário, heterogênea e ativa que dá testemunho da própria diversidade dos grupos sociais que a falam” (FIGUEREIREDO, s/d.:76). Aliás, poucas línguas no mundo foram-se mostrando, por sua maleabilidade, tão ajustáveis a diferentes culturas, como a LP. Começa assim, a LP, a receber os primeiros empréstimos de adstrato em solo angolano, acomodando-se ao sistema da LP tais empréstimos tanto em termos fonológicos, quanto morfológicos. É perfeitamente compreensível, pois, “todo sistema admite variações regionais e nacionais” (BARBOSA, 2000:10). Talvez as mudanças não se situem no âmbito do sistema, que continua o mesmo conservando intocáveis as suas formas linguísticas ou morfemas gramaticais, embora admitindo variações regionais e nacionais, variações de normas e usos, pois, “na língua comum falada (…) é natural que haja variação de norma e de usos linguísticos, mas isso não significa que a língua tenha mudado ou seja outra”(BARBOSA, 2000:13).
No Nível fonológico:
(1) Angolês faz a monotongação dos ditongos ei e ou em ê e ô::
- Ex.: Fereira (Ferê´ra); Feira(Fê´ra); Maneira (Manê´ra); Beira(Bê´ra); Bandeira(Bandê´ra); Madeira(Madê´ra);
- ouro(ô´ru); mouro(mô´ru): pelouro(pelô´ro)
(2) O (l) e (r) funcionam como alofones do mesmo fonema:
- Ex.: Nelson(Nelson/nerson);malvado(marvado/malvado); Alfândega(Alfândega/arfêndega)
No Nível Morfológico:
(1) O Angolês dá função de relativo geral ao que, fazendo desaparecer o cujo, onde, quem…
- Ex.: o senhor que o filho morreu…;
(2) No sintagma nominal (SN) nem sempre existe concordância entre os elementos do plural:
- Ex.: os meus irmão; as pessoa daqueles bairro; as nossas mãe…3
(3) Queda do (r) final nos verbos no infinitivo:
- Ex.: mandar(mandâ);falar(fala);amar(amâ);correr(currê);mexer(mexê);morrer(murrê); ir(î); vir(vî); dormir(durmî)
(4) Utilização desviada e limitada de preposições e inexistência do conjuntivo:
- Ex.: Vou em Luanda; dá esse livro no João; lhe morderam no cão; se eu não vir amanhã na escola; era possível que ele tinha dinheiro; embora você fala inglês; deste o dinheiro no quem?…
No Nível Sintáctico:
(1) Repetição do verbo na primeira pessoa do plural:
- Ex.: É sou eu que vou falar; neste lugar só sobrou sou eu; o pai dele é sou eu; aquele senhor de ontem era sou eu;
(2) Preferência da utilização do pronome proclítico nas frases afirmativas:
- Ex.: me dá um beijo; me deste este livro; vou te levar ao cinema amanhã: lhe falei de ti; nos mandaram ir lá depois; vou vos dizer o que sinto;
(3) Rigidez na ordem SVO nas afirmativas bem como nas interrogativas:
- Ex.: A tua casa fica aonde?; fizeste o que?; Comemos para que? Deste o livro a quem?
No Nível Semântico e Lexical:
(1) O Angolês possui também neologismos e empréstimos para designar realidades novas:
- Ex.: kilapi, funge, calulu, mufete, mabelé, kota, kanuka, ndegue, puto, nguvulu, maka
(2) Anglicismos: breda, pipol, pólice, ticha, broda,
- ou em e fonológico e até mesmo morfológico, mas sim no âmbito do léxico e da semântica. Os novos vocábulos incorporados vêem responder à necessidade dos seus falantes chamarem realidades e noções para os quais a LP não tem palavras equivalentes, ou seja, realidades culturais marcadamente angolanas como funge, kilapi, kota, etc.
O panorama linguístico angolano foi sendo assim caracterizado ao ponto de, hoje em dia, algumas expressões próprias da região de Angola, em geral, e de algumas das suas partes em particular, passarem a ser utilizadas mesmo por indivíduos considerados como donos da língua (eruditos, estudiosos, escritores, jornalistas, médicos, religiosos, ministros, etc). É algo natural, em termos sociolinguísticos, pois o emissor tem que ser sensível à variação linguística e social dos vários receptores. É aquilo a que chamamos de registo da língua, cujo emprego apropriado a cada circunstância constitui um fator essencial para uma comunicação eficaz.
Não quererá um político que, na sua campanha eleitoral, se desloque a Calomboloca, Kifangondo, Nambuangongo, Zenza do Etombe, Matala, Capelongo, etc, que sua mensagem seja apreendida pelo público-alvo, tendo, para o efeito, que utilizar um discurso erudito, formal, estereotipado, altamente elaborado, com termos dicionados e livrescos e expressões idiomáticas elaborados a partir de textos escritos, obras literárias, revistas e discursos de homens históricos. Pelo contrário, terá alcançado seu objectivo aquele que se adaptar ao quadro situacional do público-alvo, quando for transmitir uma mensagem, como mostra Santo Agostinho (Sec.IV) ao dizer que “melius est reprehendant nos gramatici quam non intelligant populi”4. Pois, em termos linguísticos, não se fala do correto ou do incorreto, do certo ou do errado, mas sim da norma e do desvio (e o que é a norma senão um dialeto de prestígio característico de um grupo social e de um centro cultural considerado modelo por razões sócio-política e culturais?), de línguas e suas variações (dialetos), de diferentes maneiras de usar uma mesma língua. Por isso é que hoje o leitor atento encontrará, entre outros, africanismos (umbundismos, kimbundismos, nhanekismos, ngangelismos, cokwismos, kwanhamismos, fiotismos, etc.), no seio da LP e, no seu léxico, palavras como batuque, soba, musseque, fuba, ananás, funge, e outras oriundas das línguas das pessoas que as falam a partir da região chamada Angola,constituindo um autêntico exemplo da permeabilidade, maleabilidade e dinamismo de uma língua que se quer viva e activa.
O tempo virá em que o falar do povo angolano (sermo plebeius angolanus ) há de quebrar os ditames e esmagar todos os formalismos impostos pelos gramáticos na LP e, então, expressões como “é sou eu que estou aqui; vou trazer este livro no João; aquele senhor que você viste ontem era sou eu; o único que sobrou só sou eu; estão a te chamar no papá; vão te apanhar na polícia; a bebe lhe morderam na casumuna; me dá lá só dinheiro; te encontrei não estavas em casa; bati a tua porta na janela; me faz só um kilapi; me dá só dez kwanza, etc.”, entrarão e alojar-se-ão para sempre no seio da LP e que com muita dificuldade conseguirão os puristas extirpá-los. Pois, o centro de gravidade de uma língua encontra-se sempre lá onde houver maior número de falantes, e o maior número de falantes do LP em Angola está do lado dos iletrados (todos os literatos angolanos juntos são sempre poucos). Estaremos então, sem dúvida, na iminência de presenciar e testemunhar o nascimento do Angolês – uma maneira angolana de falar o Português – que precisará apenas de determinadas condições sociais para se impor, enquanto que os linguistas fazem o esforço de dotá-lo de normalização ortográfica e gramatical para a sua afirmação como língua escrita, conferindo-lhe, assim, uma vitalidade jamais esperada.
O Angolês será assim uma língua coerente, clara, um veículo de transmissão da cultura angolana, um instrumento perfeito para a expressão do pensamento angolano. Enfim, será a própria cultura angolana, ao mesmo tempo que será uma contribuição na protecção do LP do perigo da glotofagia ou da morte extinção ou asfixia por outras mais fortes e ferozes. O Angolês será o enriquecimento da LP.
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Referências:
- CASTRO, Ivo, Introdução à História do Português, Edições Colibri, 2ªEd., Lisboa, 2006.
- DE FIGUEREIREDO, E. Barbieri e FIGUEIREDO, O. Maria, Itinerário Gramatical (A gramática na língua e a língua no discurso), Porto Editora, S/d.
- Dicionário Universal da Língua Portuguêsa, Texto Editora, Ltd, 1ª Ed., Lisboa.
- FERREIRA, A. Gomes e DE FIGUEIREDO, J. Nunes, Gramática Elementar da Língua Portuguesa, 5º e 6º anos, Porto Editora, s/d.
- PIEL, Joseph-Maria, Origens e estrutura histórica do léxico português, in Estudos de Linguística Histórica Galego-Portuguesa, Lisboa, IN-CM, 1989.
- SOBRINHO, B. Lima, A Língua Portuguesa e a Unidade do Brasil, Editora Nova Fronteira S.A., 2ª Ed. Rio de Janeiro, 2000.
- AA.VV. , Uma Política de Língua para o Português, Edições Colibri, Instituto de Linguística Teórica e Computacional, Lisboa, 2002
Notas:
- 1.PIEL diz que, dentre as línguas românicas, a LP é a que maior rendimento tirou e continua a tirar do inesgotável manancial das línguas clássicas.
- 2.Há pensadores que sustentam que existe uma língua brasileira diferenciada da portuguesa. Outros dizem que existe um dialecto brasileiro. Outros ainda preferem advogar a existência de um co-dialecto, que desse ao idioma do Brasil uma posição equivalente ao de Portugal.
- 3.Há aqui muita influência das línguas bantu, em que o plural não é determinado por morfemas sufixais, mas sim prefixais diferentes. Ex.: ngombe (boi) /nongombe (bois); tyimbwa (cão) /vimbwa (cães); mukai (mulher) /vakai (mulheres); munthu (pessoa) /vanthu (pessoas).
- 4.Mais vale que nos repreendam os gramáticos que não nos entendam os povos.
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http://www.buala.org/pt/a-ler/o-angoles-uma-maneira-angolana-de-falar-portugues, Via Raiz Africana.
Olá Ilustre Carlos,
Com certeza que podemos falar sobre o assunto. Escreva-me em [email protected]
Boa noite ilustre,
gostaria de falar consigo sobre um levantamento que estou a fazer sobre as palavras da língua portuguesa criada e falada em Angola, Luanda em particular.
Espero que esteja tudo bem consigo, aguardo V/resposta.
Continuação de bom dia.