O avanço de obras de transporte e de energia nas regiões Norte e Centro-Oeste do país transformou o chamado “componente indígena” em peça chave do processo de licenciamento ambiental. Essa influência progressiva, que tem determinado a viabilidade, o custo e, principalmente, o prazo de grandes projetos de logística e de expansão hidrelétrica do país, foi captada por um levantamento inédito encomendado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O estudo, ao qual o Valor teve acesso, reuniu dados sobre terras indígenas disponibilizados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e confrontou essas informações com um grande conjunto de obras de transporte e de geração de energia que fazem parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC 2). A reportagem é de André Borges e publicada pelo jornal Valor, 28-09-2012.
O cruzamento dos dados revela que, de um total de 82 obras de transporte previstas para estradas e hidrovias entre 2011 e 2014, ao menos 43 afetam uma ou mais terra indígena, direta ou indiretamente, seja seu território ou sua população. Em termos práticos, isso significa que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), órgão responsável pelas obras federais, tem que elaborar um plano básico ambiental (PBA) sobre o componente indígena para cada empreendimento que pretenda licitar. No Amazonas está concentrado o maior número de projetos com interferência indígena. De 37 obras previstas para o Estado – a maior parte em hidrovias – 24 cruzam comunidades de índios. No Pará, a lista de dez empreendimentos tem sete obras nessa mesma situação. No Mato Grosso, três projetos de rodovias – de um total de nove obras planejadas – passam pelo caminho das aldeias.
Procurado pelo Valor, o Dnit informou que, atualmente, tem sete PBAs indígenas em execução. Outros nove estudos, de acordo com um balanço da autarquia realizado até maio, estariam no cronograma. A Funai não respondeu ao pedido de entrevista.
Segundo o consultor Ricardo Verdum, responsável pelo levantamento do Inesc, a pavimentação da BR-319, que liga a cidades de Manaus (AM) e Porto Velho (RO) está entre as obras mais problemáticas. “Além de afetar áreas habitadas por povos indígenas, essa obra vai conectar o chamado arco do desmatamento com a Amazônia Central, a área de floresta contínua mais preservada na Amazônia brasileira”, diz.
A relação com os índios também tende a ficar mais complicada conforme empreendimentos hidrelétricos avancem pela Amazônia. Os dados do Plano Decenal de Energia, estudo da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) que apresenta um cronograma do setor para os próximos dez anos, apontam que a expansão da oferta de energia elétrica vai se apoiar na construção de 34 usinas até 2021. Dessas, pelo menos oito teriam algum tipo de impacto em comunidade indígena, segundo informações detalhadas no relatório do Inesc. Apesar do número menor de usinas em relação ao total de empreendimentos, o fato é que essas oito usinas, quando somadas, representam 74% de toda a produção de energia que sairá das turbinas dos 34 empreendimentos. Dos 42.040 megawatts (MW) de potência adicional de energia hidrelétrica prevista para os próximos dez anos, 31.282 MW terão que passar, necessariamente, pelo filtro do componente indígena.
As primeiras experiências já começaram. Das 15 hidrelétricas que já estão em fase de implantação e que têm previsão de entrar em operação até 2016, duas já não são alvo de polêmicas indígenas: Jirau e Santo Antônio, erguidas no rio Madeira, em Porto Velho (RO). A situação não é a mesma, porém, no dia a dia enfrentado pelos empreendedores de Belo Monte, em construção no rio Xingu, no Pará, e de Teles Pires, em andamento nas margens do rio de mesmo nome, entre o Mato Grosso e o Pará. Depois de um ano de início de suas obras, essas duas usinas ainda são alvos constantes de desentendimentos sobre ações compensatórias e impacto a comunidades.
O cenário tende a ficar ainda mais complexo quando observada a segunda fase de projetos, que envolve a operação de 19 hidrelétricas entre os anos de 2017 e 2021. Quatro desses empreendimentos – as usinas de São Manoel, São Luiz do Tapajós, Jatobá e Marabá – estão em áreas que, segundo o relatório, impactam comunidades indígenas.
Hoje, por lei, é proibido erguer barragens em casos onde haja supressão direta de território indígena. Quando uma aldeia está numa área de influência indireta, entram em cena as ações compensatórias para mitigar os danos. Por conta de dificuldades com o licenciamento ambiental, a EPE retirou, pela segunda vez, o projeto de São Manoel do leilão para contratação de energia marcado para 14 de dezembro. As regras do setor de energia exigem que só empreendimentos que tenham licença ambiental prévia concedida pelo Ibama podem ser objeto de leilões de concessão.
Nesta semana, foi a vez de o Ministério Público Federal (MPF) pedir à Justiça Federal de Santarém que suspenda o licenciamento da usina de São Luiz do Tapajós. O licenciamento, segundo o MPF, é irregular porque foi iniciado sem a consulta prévia aos povos indígenas e ribeirinhos afetados pela obra e sem as avaliações ambientais obrigatórias. Poucos quilômetros acima de São Luiz, está prevista a construção da barragem de Jatobá.
O governo mantém uma agenda de discussão interministerial para elaborar novas regras sobre o licenciamento de empreendimentos de infraestrutura afetados pelo componente indígena. Não há, porém, uma previsão sobre quando o assunto será objeto de debate público.
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http://www.ihu.unisinos.br/noticias/514067-terra-indigena-e-peca-chave-de-licenciamento-mostra-estudo
Enviada por Ricardo Verdum.