Perseguida pela ditadura no Brasil, alfabetizadora morre na Holanda

José Ribamar Bessa Freire*

Eram quatro mulheres: Dorinha, Lígia, Heloísa e Iveline. Eram quatro professoras irmanadas pelo mesmo sonho: abrir os olhos de camponeses e operários iletrados para o mundo da escrita. As quatro alfabetizavam adultos com o método Paulo Freire, em João Pessoa(PB), nos anos 1960, quando o Brasil apresentava um índice escandalosamente alto de analfabetos. Elas trabalhavam na  Campanha de Educação Popular (CEPLAR), dentro do Plano Nacional de Alfabetização do governo Jango, eleito democraticamente através do voto.

Embora todas as atividades fossem absolutamente legais e oficiais, as quatro alfabetizadoras foram presas, demitidas, processadas e humilhadas depois do golpe militar de 1° de abril de 1964, que derrubou o governo legal e se instalou no poder através das armas e da violência. O crime que teriam cometido: subversão. Três delas se exilaram e permaneceram fora do Brasil: uma na Venezuela, outra em Paris, a terceira na Holanda. Desta última, Iveline Lucena da Costa Lage, nós nos despedimos na semana passada num adeus definitivo na cidade de Bilthoven.

Noites de Moscou

As quatro alfabetizadoras responderam a dois inquéritos. Um deles, de ordem administrativa, estava vinculado ao Processo de Subversão Geral da Paraíba (Processo 70/64). O outro, CCG 1469/64, começou no início da segunda quinzena de abril de 1964, quando foram presas e levadas para o 15° Regimento de Infantaria, onde ficaram incomunicáveis. Os militares, que deram o golpe apoiados por uma potência estrangeira – os Estados Unidos – queriam estabelecer ligações inexistentes das quatro com Cuba e Rússia.

Sem encontrar provas, usaram “peças de acusação” que desafiavam o ridículo. Uma delas foi a letra da canção “Noites de Moscou” encontrada numa gaveta da casa de Iveline, o que foi considerado uma clara indicação da “existência de ligações com o comunismo russo, ateu e totalitário”. Até o teste para selecionar alfabetizadores também foi considerado “subversivo”. No interrogatório, as presas esclareceram que o salário de cada uma era pago pelo governo e que o financiamento da Campanha de Educação Popular era feito com recursos federais. De nada adiantou.

A Comissão Estadual de Investigação, num processo sumário, concluiu que as quatro professores eram culpadas e determinou a demissão delas do quadro oficial do Estado por atividades subversivas. As demissões foram assinadas pelo governador Pedro Gondim e publicadas no Diário Oficial no segundo semestre de 1964. O outro processo, também com cartas marcadas, terminou sua primeira fase de levantamento da culpa das suspeitas. Durou um pouco mais de um ano, foi presidido pelo então major Ney de Oliveira Aquino, que concluiu pela “inconsistência das acusações”. Por isso, de castigo, ele foi enviado para servir em Rondônia, sendo substituído pelo major José Benedito Cordeiro, o famigerado Cordeirão, que passou a presidir o Inquérito Policial Militar.

O novo presidente mudou a conclusão, remetendo, em maio de 1965, os autos para a Auditoria da 7ª Região Militar do Recife, com um enorme carimbo, onde se lê “Secreto”, conforme extrato da cópia do 23° volume do IPM da Paraíba, arquivado hoje no Supremo Tribunal Militar, em Brasília. Iveline Lucena, Maria das Dores de Oliveira, Ligia Macedo e Heloísa Albuquerque foram denunciadas e tiveram que comparecer várias vezes à Auditoria para interrogatório.

Luar do sertão

Quatro anos depois, em 1968, as provas de subversão não haviam sido encontradas, nem vínculos com potências estrangeiras, o que era uma tremenda bobagem. As acusações coletadas foram tão vagas que a Procuradoria Militar pediu a absolvição das implicadas, justificando: “Todas as testemunhas de acusação, além das outras, não fizeram acusações e quando disseram qualquer fato, o fizeram de modo vago, sem precisar ato subversivo capaz de autorizar uma condenação”. (vol. 23° do IPM da Paraíba).

O processo foi finalmente arquivado, em 1968. As acusadas foram defendidas pelo advogado paraibano Nizi Marinheiro e, no Rio de Janeiro, por Modesto da Silveira. Sobre essa experiência, Iveline e Dorinha escreveram um livro: “Ceplar – História de um sonho coletivo”, editado pelo Conselho Estadual de Educação da Paraíba, em 1995. O prefácio é de Paulo Freire, que chama a atenção “para os níveis de irracionalidade, de fanatismo e de malvadez do golpe de 1° de abril de 1964”.

O fichamento das quatro professoras, tratadas como “elementos”, está registrado no volume 20° do IPM da Paraíba. Na ficha de uma delas consta:

“Iveline Lucena da Costa (filiação) Histórico. Pertencia ao Departamento de Educação Fundamental da CEPLAR. Comparecia à concentração camponesa no interior (Itapororoca-Sapé). Ideias extremistas da esquerda. Integrava a equipe de alfabetização, responsável pela elaboração de 18 lições de conscientização de conteúdo subversivo, esta denunciada atuava no meio escolar. Referido elemento foi punido de acordo com os arts. 7° e 10° do Ato Institucional, conforme relação anexa ao Ofício Secreto”.

Iveline, nascida em Bananeiras(PB), em 1939, era uma pessoa doce, afável, carinhosa. Formada em Letras Neolatinas, concluiu o curso de Orientação Educacional. Demitida no Brasil, viajou em 1970 para o Chile e trabalhou na Universidade de Concepción, depois de casar, em Santiago, com Tarcísio Lage, um jornalista mineiro, também exilado. De lá, foi para a Inglaterra, onde obteve o diploma de educação na Universidade de Londres. Passou ainda uma pequena temporada na Suíça e se radicou definitivamente na Holanda, trabalhando como tradutora e locutora na Rádio Nederland.

No início de setembro, Iveline se despediu da vida. Na cerimônia de cremação, a qual compareci, falaram seus dois filhos, seu marido, o fotógrafo Sebastião Salgado e vários alunos holandeses que aprenderam o português com Iveline.

– Ela se integrou na sociedade holandesa, falava um holandês perfeito, mas manteve suas raízes brasileiras – disse Américo. Para o outro filho, Gustavo, sua mãe detestava preconceitos e era um exemplo de tolerância. Tarcisio destacou que, embora tivessem concepções diferentes sobre Deus – Iveline vivia sua religiosidade intensamente – numa coisa estavam de acordo: Deus é uma das criações mais interessantes do homem.

Iveline nunca deixou de ser, ao longo de toda sua vida, uma alfabetizadora. Janalívia Carneiro, que mora na Holanda e acompanhou de perto, nos últimos anos, as atividades da amiga, disse:

– Ela era uma espécie de embaixatriz da cultura brasileira na Holanda, organizou mostras de filmes brasileiros, deu aulas de português na Universidade do Povo (Volsksuniversiteit), fazendo seus alunos conhecerem a poesia, a literatura e a música brasileira.

Eram quatro mulheres, quatro alfabetizadoras: Dorinha, Lígia, Heloísa e Iveline. No final da semana passada, uma delas, Iveline (1939-2012) nos deu seu último adeus, ao som de “Luar do Sertão” cantado por Maria Bethânia. Saudades da amiga. Fica aqui o registro de sua passagem pelo planeta.

*José Ribamar Bessa Freire é professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).

Enviada por José Carlos para Combate ao Racismo Ambiental.

http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2012/09/17/perseguida-pela-ditadura-no-brasil-alfabetizadora-morre-na-holanda/

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