Diante da ameaça de despejo por causa das obras para as Olimpíadas de 2016, comunidade que possui títulos de posse da área apresentou a Eduardo Paes um plano urbanístico e ambiental que viabilizaria a permanência das cerca de 500 famílias no local e custaria bem menos aos cofres públicos. Enquanto a implementação do projeto está orçada em R$ 13,5 milhões, o reassentamento da comunidade pela prefeitura carioca custaria R$ 38 milhões
Rodrigo Otávio
Rio de Janeiro – Os moradores da comunidade Vila Autódromo cumpriram mais uma etapa da luta contra a remoção de suas casas nesta quinta-feira (16), ao entregarem ao prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes (PMDB) o Plano Popular da Vila Autódromo. A comunidade de cerca de 500 famílias localizada em uma área de aproximadamente 1,18 milhões de m2 às margens da lagoa de Jacarepaguá, entre os bairros da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade, vem sendo alvo de novos ataques – que partem, segundo moradores e seus defensores, de uma aliança entre poderes municipal e estadual com o setor imobiliário – desde que a cidade foi eleita para sediar as Olimpíadas de 2016.
De acordo com seus elaboradores, o plano urbanístico mostra que a permanência da comunidade na área é técnica e socialmente viável e, inclusive, economicamente mais vantajosa do que o despejo. Enquanto a implementação do projeto está orçada em R$ 13,5 milhões, o reassentamento total da comunidade pela prefeitura carioca custaria R$ 38 milhões. Segundo Jane Nascimento, diretora-social da Associação dos Moradores e Pescadores de Vila Autódromo (AMPVA), Eduardo Paes se comprometeu a estudar o plano juntamente com a Secretaria Municipal de Urbanismo e a de Habitação, e afirmou que dará uma resposta em 45 dias.
Nos planos oficiais, os tijolos e telhados que sempre faziam uma ponta nas transmissões de TV do GP Brasil de Fórmula 1, quando este era realizado no autódromo Nelson Piquet, seriam banidos. Em um primeiro rascunho seriam substituídos por um “puxadinho” do futuro Parque Olímpico, que serviria para estacionamentos ou lojas de conveniências do aparato esportivo-comercial mundial.
Contestada na Justiça, a prefeitura reformulou o projeto original do Parque Olímpico e apresentou novas maquetes para toda a região. A Vila Autódromo agora daria lugar a uma inexplicável curva no novo traçado da Transolímpica, a via expressa que ligará a Barra da Tijuca à Avenida Brasil. (Ver neste vídeo, em 1:19).
Os gabinetes só se esqueceram de dois detalhes. As raízes da comunidade estão ali há muitos anos, e os moradores possuem documentos que garantem sua permanência no local. “A região no entorno da lagoa de Jacarepaguá foi uma das primeiras colônias de pesca do Brasil, em 1906, com a criação da figura da profissão de pescador. A comunidade de moradores mesmo começou durante a construção, nos anos 1970, do [centro de convenções] Riocentro e do autódromo”, afirma Inalva Mendes, diretora da Associação de Moradores da Vila Autódromo.
Inalva lembra que o faroeste imobiliário ali é uma constante, agora com uma tentativa de xeque-mate nos moradores originais com a proximidade das Olimpíadas. “A partir do Riocentro e do autódromo a ocupação daquela região foi toda predatória. As pessoas de influência pegavam aquelas terras e iam construindo, com os pescadores ali, enquanto não incomodavam. Agora a pesca está acabando por causa da poluição e querem acabar de vez com a comunidade”.
Olímpicos
Nesse tabuleiro, disposição para defender os seus direitos e boa vontade para negociar a não remoção com a prefeitura são o que não faltam para a comunidade da Vila Autódromo. A prova dessa boa vontade é o Plano de Desenvolvimento Urbano, Econômico, Social e Cultural (o Plano Popular) a ser entregue ao prefeito Eduardo Paes.
“Na Grécia Antiga, onde nasceram as Olimpíadas, os cidadãos se reuniam na ágora, que era a praça pública, para decidir os destinos de sua cidade. Então, se queremos ter uma cidade olímpica, deveríamos fazer o mesmo. Esse plano da Vila Autódromo é exatamente isso. Os moradores foram à praça pública e lá elaboraram caminhos. Portanto, a verdadeira cidade olímpica não é aquela que se faz nas Parcerias Público-Privadas, nos corredores dos palácios, é aquela na qual o cidadão se encontra na praça pública para determinar objetivos e a forma de alcançá-los”, diz Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e que, assim como estudantes e professores da Universidade Federal Fluminense (UFF), assessorou a comunidade na construção do plano.
Vainer explica que tecnicamente foram definidos quatro grandes programas: habitação; saneamento e infraestrutura; transporte e serviços; e desenvolvimento comunitário e cultura. “Na questão habitacional, por exemplo, deveria ser deixada uma faixa marginal de 15 metros para a preservação da lagoa. Houve um acordo para aquelas casas que estivessem nessa faixa ou perdessem um pouco de seu terreno ou fossem realocadas para outra área, dentro da comunidade”, diz ele.
No processo de realocação dessas casas e em outras áreas onde ocorreriam substituições de moradias precárias, os formatos eleitos pelos moradores para as novas unidades foram sobrados de dois ou três quartos e prédios de dois ou três andares, também com dois ou três quartos cada apartamento. O projeto prevê ainda que cada família reassentada escolheria o tipo e a localização da moradia, com os interessados e a comunidade negociando a ocupação via aluguel, empréstimo ou cessão.
Os responsáveis pelo plano popular são categóricos ao afirmar que os custos para a prefeitura seriam infinitamente menores do que os do plano de reassentamento da comunidade defendido pelo poder municipal – segundo a associação de moradores, no último caso só o novo terreno custaria cerca de R$ 20 milhões. Além disso, a entidade aponta que toda a negociação está cercada de controvérsias, ora por falta de licenciamento ambiental definitivo, ora por suspeitas de que a proprietária do terreno, a Tibouchinha Empreendimentos, seja controlada por construtoras que fizeram doações a membros da atual prefeitura na campanha eleitoral de 2008.
Novela judicial
O caso Tibouchinha é mais uma das inúmeras batalhas judiciais que os moradores da Vila Autódromo estão acostumados a travar. Em 26 de julho lá estavam os representantes da comunidade “atrapalhando” o trânsito de engravatados na porta do Fórum Central do Rio de Janeiro, berrando pelo direito à residência original na Zona Oeste. Tinham acabado de ser mais uma vez “atropelados” pela “celeridade” da Justiça, que não havia apreciado a representação dos vereadores Eliomar Coelho e Paulo Pinheiro, ambos do Psol, pedindo esclarecimentos sobre a negociação.
A pressa da justiça é contestada por dona Inalva. “A juíza da 4ª Vara Cível não considerou as alegações e deu uma sentença encaminhando o processo. Queremos entender até que ponto a Justiça vê com clareza essas denúncias”, diz. “Queremos explicações sobre o risco de sair de um terreno que é legal, que não tem riscos, para um terreno que é ilegal e com riscos.”
A diretora da associação de moradores faz referência ao cerne da questão, a titulação da comunidade concedida pelo ex-governador Leonel Brizola em 1985 e reafirmada pelo também ex-governador Marcello Alencar em 1998, por 90 anos, com direito à renovação por mais 90 anos.
Um dos autores da representação no caso Tibouchinha, o vereador Eliomar Coelho esclarece a questão judicial original. “A pendenga jurídica é em relação ao título de Constituição de Direito Real de Uso [CDRU] que está nas mãos dos moradores da Vila Autódromo”, explica à Carta Maior. Ele é taxativo ao cobrar o judiciário. “Ali tem que ser garantida a permanência porque eles têm esse título, que equivale a um direito de propriedade. Ou se respeita a lei ou não.”
Uma primeira prova de respeito às leis foi dada em meados dos anos 2000, quando a então governadora Rosinha Garotinho transferiu a área ao município para obras para os Jogos Pan-Americanos de 2007. O termo de transferência dizia que era necessário respeitar todas as concessões dadas anteriormente –a medida visava as casas e condomínios da classe alta, mas acabou incluindo os títulos das famílias da Vila Autódromo. As obras para a competição tomaram outra direção e a comunidade foi respeitada. Agora, com as Olimpíadas na agenda, voltam as manobras para banir a Vila Autódromo do mapa, seja com o Parque Olímpico ou a Transolímpica.
Programa de (des) governo
Para a advogada Maria Lúcia Pontes, que atua junto à comunidade pelo Núcleo de Terras da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a questão jurídica é complexa, mas não esconde as reais intenções da prefeitura. “O município está sempre inventando uma motivação para a remoção da Vila Autódromo. Na verdade, o que existe é uma decisão política de retirada da comunidade”, afirma.
No tabuleiro urbano, o lance agora é da comunidade Vila Autódromo, através do Plano Popular. “Esse plano é mais do que suficiente para dizer não à remoção e sim à sobrevivência da Vila Autódromo. A comunidade quer continuar vivendo, trabalhando, morando, se divertindo naquele local. As condições para isso existem, a base legal, jurídica, existe, as condições urbanísticas existem e as condições ambientais viabilizam isso”, diz o professor Carlos Vainer.
“Esperamos que a prefeitura entenda que legado olímpico não é só para as grandes empresas, grandes proprietários de terra e hotéis, mas também para a população pobre dessa cidade. E que a Vila Autódromo tem direito a uma parte desse legado”, completa.
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