Destaque deste Blog: “Indagada por seus pares do porque em Madureira e subúrbios pode haver ‘pagodes’ e na Lagoa não, a desembargadora respondeu ‘que é para lá mesmo que os Quilombolas deveriam ir, pois lá as pessoas já estariam acostumadas'”. TP.
Um relato de um leigo em jurisprudência “cultural carioca”
Marcos Romão
Como já dizia minha avó Georgina, negro quando está feliz não devia nem dormir, para não acordar e ver a cruel realidade em volta.
Nem completara uma semana da aprovação da lei, em 7 de agosto, que considerava a localização do Quilombo do Sacopã, como “Área Especial de Interesse Cultural”, pela Câmara de Vereadores do Município do Rio de Janeiro, quando nesta segunda feira à noite, Luiz Sacopã telefonou-me para comparecer à 18ª Vara de Justiça do Rio de Janeiro.
A Desembargadoria iria votar o RECURSO DE AGRAVO INTERNO impetrado pelo INCRA, órgão responsável pela demarcação dos quilombos no Brasil, contra a decisão de PROIBIÇÃO TOTAL DE EXPRESSÃO MUSICAL NO QUILOMBO SACOPÃ.
Às 9 horas da manhã de uma terça-feira 14, lá estávamos, Luiz, eu, Dr Tito Mineiro da OAB e o procurador do INCRA, Dr Diogo Tristão, para assistirmos à Sessão da Desembargadoria que iria julgar o mérito da participação do INCRA como parte interessada no caso, e a remessa do processo para a Justiça Federal.
O que pude assistir foi uma peça digna de Kafka, ou melhor dizendo, um ato de expressão judicial próprio do banido da humanidade, digno do regime do Apartheid na África do Sul.
O desembargador Jorge Luiz Habib, relator do processo e que votara contra a participação do INCRA e pela manutenção do Veto Total às Expressões Culturais do Quilombo do Sacopã, iniciou a sessão e passou a palavra à desmbargadora Helena de Albuquerque, que havia pedido vistas do processo anteriomente.
A desembargadora Leila Albuquerque daria seu voto. Em meia hora de exposição de argumentos, demonstrou que teve tempo suficiente para ler o processo e provou a seus pares, e à pequena e tensa plateia, que esmiuçara com zelo toda a documentação que acompanhava o processo iniciado em 1989.
Ao pedir ao desembargador que reconsiderasse seu voto, alegou entre outros motivos:
- Que a sentença anteriormente proferida estava desde o início incorreta, pois ia além do pedido inicial, que era o de cessar as atividades de uma provável oficina de carros que funcionaria no estacionamento do Quilombo e regular as atividades culturais lá desenvolvidas.
- Que a sentença anteriomente proferida feria os direitos constitucionais dos moradores do Quilombo do Sacopã, e os discriminava ao impedi-los de exercerem suas atividades culturais básicas, não os reconhecendo como parte integrante do bairro e com direitos iguais.
Neste momento, pude perceber que o desembargador relator Jorge Habib ficou em dúvida, pois passou a procurar diante de nós o seu próprio voto, já que a argumentação da desembargadora Leila Albuquerque era clara e fundamentada ao relatar que a sentença contra o Quilombo do Sacopã era despropositada e fora dos preceitos jurídicos e constitucionais.
Entra então em cena a desembargadora Helena Candida Gaede. Demonstrando desconhecimento dos autos, pergunta aos seus pares: “onde é esse lugar?”, e folheando os autos lembra-se do local, “que era um terreno em que se realizavam pagodes que infernizavam os vizinhos” e “que ali não era local para tipo de gente”, pois “tempos atrás haviam mais duas outras famílias que foram removidas de área vizinha” e que próximo já funcionou uma boca de fumo e etc. Demonstrando que os autos não a interessavam muito naquele momento, e sim o que já ouvira falar a respeito.
Os contra-argumentos da desembargadora Leila Albuquerque e do desembargador Heleno Ribeiro (sem direito a voto) foram, ironicamente, que com estas medidas discriminatórias a Desembargadoria iria acabar mandando fechar as escolas de samba da cidade, pois ele mesmo mora ao lado da Escola de Samba Salgueiro, que faz barulho até as 3 da manhã. Isto sem contar os clubes e as festas de rock da zona sul. A desembargadora Gaede não encontrou argumentos que justificassem sua objeção à existência do Quilombo do Sacopã na Lagoa além do seu gosto pessoal e repulsa ao samba. Indagada por seus pares do porque em Madureira e subúrbios pode haver “pagodes” e na Lagoa não, a desembargadora respondeu “que é para lá mesmo que os Quilombolas deveriam ir, pois lá as pessoas já estariam acostumadas”.
Nem a argumentação da desembargadora Leila Albuquerque, de que a Constituição garantiria os direitos de expressão por parte dos Quilombolas, conseguiu demover a irredutibilidade da juíza desembargadora.
A experiência com a discriminação racial dos Quilombolas da Sacopã na Justiça do Estado do Rio de Janeiro se comprovava. Eles já haviam ouvido desta mesma desembargadora o recado dado a um advogado, após uma sessão anterior: “Está na hora dos negros ajustarem-se à cultura branca”. Resta apenas recorrer à justiça federal.
Diante do ‘EMPATE TÉCNICO” e do desconforto causado pelas palavras ferinas da desembargadora Helena Gaede, que falava e olhava com desprezo para a pequena plateia, o desembargador relator propôs que ela votasse “em desconhecimento” com o voto do relator.
Assim terminou uma manhã “clara” nos tribunais do Rio de Janeiro.
Saímos como sonâmbulos daquela sessão. Uma advogada e um advogado que lá estavam por outra causa, nos acompanharam e demonstraram solidariedade a Luiz Sacopã. Nos disseram nunca terem presenciado nada igual.
–
Quilombo no Sacopã que é “Zona Nobre” não pode! Desembargadora embarga Cultura Negra.