O abastecimento da população do Semiárido brasileiro: uma chance perdida

O montante de recursos financeiros previsto nesse processo foi o fiel da balança para tomada de decisões equivocadas.

João Suassuna*

Atualmente são em número de três as alternativas vigentes, que estão sendo consideradas pelo Governo Federal, para a solução dos problemas de abastecimento da população do Semiárido nordestino: a Transposição do rio São Francisco (do Ministério da Integração Nacional), o Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água (da Agência Nacional de Águas – ANA) e o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (do Ministério do Desenvolvimento Social – MDS e da Articulação do Semiárido-ASA Brasil).

Dimensionado para o atendimento do agronegócio, o projeto da Transposição encontra-se com suas atividades em ritmo lento, devido a problemas operacionais existentes e que estão sendo solucionados pelo Governo Federal; o Atlas Nordeste não saiu das gavetas governamentais, em razão de se ter dado prioridade, no Plano de Aceleração do Crescimento do País (PAC), ao projeto da Transposição e o Programa Um Milhão de Cisternas, é o único que vem cumprindo, satisfatoriamente, tudo aquilo que havia sido estabelecido em seu cronograma inicial de operação, ou seja, a instalação de cerca de 350 mil cisternas (em universo previsto de cerca de 1 milhão de unidades a serem construídas), visando o abastecimento da população residente de forma esparsa na região, com água de boa qualidade, para beber e cozinhar.

Estima-se que o Semiárido nordestino tenha mais de 20 milhões de pessoas. Desse contingente populacional, cerca de 10 milhões são residentes de forma difusa na região, as quais, no exacerbar de uma seca, passam dificuldades com a falta de água e, em conseqüência, com fome avassaladora, pois lhes faltam os meios necessários para produzir os alimentos de subsistência, principalmente o milho e o feijão. Para esse tipo de público, as cisternas rurais estão sendo implantadas, com êxito, pela ASA.

Há cerca de 25 anos, no governo do então presidente José Sarney, o projeto da Transposição do rio São Francisco voltou à baila, dessa feita com a proposta do abastecimento de 8 milhões de pessoas no Semiárido nordestino. Na ocasião, havia sido estabelecida, no projeto, a construção de um único eixo (eixo Norte?), com origem no município de Cabrobó (PE), para o abastecimento dos estados do Rio Grande do Norte e Ceará. Previa-se para esse trecho, uma retirada volumétrica, no rio, de cerca de 260 m³/s, a um custo estimado em cerca de R$ 2,5 bilhões.

Em 1995, na gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, o projeto da Transposição ganhou mais um eixo (eixo Leste), para possibilitar a chegada das águas do Velho Chico na Paraíba. Mesmo havendo previsão de redução volumétrica de retirada (passou-se a adotar uma média de retirada, no rio, de cerca de 70 m³/s), o orçamento do projeto saltou para cerca de R$ 4,5 bilhões.

Atualmente, no governo Dilma, o projeto continua com os dois eixos previstos anteriormente (Norte e Leste), mas com uma variante no eixo Leste (a Adutora do Agreste) para o atendimento de algumas regiões da bacia do rio Ipojuca, no Agreste pernambucano, com problemas de escassez hídrica.

Ações para a solução dos problemas operacionais da Transposição, aliadas ao novo traçado do eixo Leste, no Estado de Pernambuco, fizeram o orçamento geral do projeto da Transposição subir para cerca de R$ 7 bilhões, podendo esta cifra atingir, nos próximos 25 anos, a casa dos R$ 20 bilhões.

A oportunidade de acesso a essa enorme cifra (os R$ 7 bilhões) para investimentos numa região carente, como é o caso do Nordeste brasileiro, nunca havia ocorrido na história desse país.

Entretanto, em agosto de 2004, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) promoveu uma reunião internacional, no Recife, para tratar de transposição de águas entre grandes bacias hidrográficas.

Nessa reunião, a SBPC conseguiu reunir, além de alguns técnicos estrangeiros, cerca de quarenta, dos principais expoentes da hidrologia nacional, os quais trataram as questões do rio São Francisco em suas minúcias. Nela, os participantes identificaram limitações hidrológicas e ambientais importantes no rio (consta em relatório), as quais comprometiam as possibilidades de fornecimentos volumétricos futuros, a serem demandados pelo projeto da transposição de suas águas. Resultou dessa reunião, uma proposta para de construção de uma infraestrutura hídrica no Semiárido, baseada na busca das águas interiores localmente existentes, para solução definitiva do abastecimento das populações do Setentrional. A proposta visava, sobretudo, a realização de ações partindo-se de jusante (do Setentrional), para montante (para a bacia exportadora, no caso a bacia do Velho Chico), indo-se atrás das águas existentes na região, para serem fornecidas as populações. Os técnicos da SBPC avaliaram que, diante das atuais limitações verificadas no rio, suas águas deveriam ser utilizadas, no futuro, como alternativa complementar ao abastecimento, e que não implicassem no abandono ou subutilização de fontes locais de água existentes.

Para nossa surpresa, em dezembro de 2006, a Agência Nacional de Águas (ANA), lançou um abrangente programa de abastecimento do Nordeste, baseado nas propostas da SBPC, visando levar água para cerca de 34 milhões de pessoas residentes em municípios de até 5.000 habitantes, a um custo estimado em cerca da metade (R$ 3,3 bilhões) daquilo que havia sido previsto no projeto da Transposição do São Francisco. Evidentemente, diante da escolha entre um projeto significativamente mais caro (atualmente a transposição está orçada em cerca de R$ 7 bilhões), e o Atlas Nordeste (embora socialmente mais abrangente e custando a metade do orçado na transposição), a decisão, no PAC, recaiu sobre o projeto mais caro. A Transposição do rio São Francisco foi o projeto escolhido.

É lamentável, portanto, que decisões dessa magnitude recaiam na escolha de projetos de maior orçamento e não naqueles de maior importância social.

Mesmo sabedores de que o eixo Leste é voltado, prioritariamente, para fins de abastecimento das populações, entendemos que a forma de como as águas do São Francisco irão chegar às torneiras das populações no Agreste pernambucano e da Paraíba, é equivocada. Deveriam ser aduzidas (conduzidas através de tubulações) e não transportadas em canais a céu aberto, cuja evaporação e uso inadequado na irrigação, ficarão marcados, para sempre, nos anais da hidrologia nordestina, como ações insensatas.

A chance perdida na solução do abastecimento das populações do Setentrional nordestino, não se priorizando as ações do Atlas Nordeste, só vem a entristecer o país e, em particular, o povo do Semiárido, que passa, agora, a não ter mais perspectivas, pelo menos em curto prazo, de solução de seus problemas.

*João Suassuna – é engenheiro agrônomo e pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco.

http://www.asabrasil.org.br/portal/informacoes.asp?cod_clipping=1562

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