João Paulo, editor de Cultura
De uns tempos para cá, todo dia nos deparamos com deprimidos. Não se trata de tristeza, desânimo, infelicidade ou fossa, mas depressão. As palavras não são neutras. A força que o termo depressão assume entre os estados de ânimo contemporâneos tem muitos sentidos. Em primeiro lugar, aponta para um contínuo que tem na outra ponta a ideia de felicidade como euforia e prazer. Assim, aquele que de alguma forma não se reconhece no padrão, quase sempre marcado pela possibilidade do consumo conspícuo e pelo exercício do poder sobre o outro, sente-se diminuído. A depressão é o lugar dos fracassados.
Outra dimensão que dá substância à palavra é sua pretensa origem orgânica. O deprimido é um doente, alguém a quem falta algo (serotonina, neurotransmissores e outros ingredientes que deveriam estar sendo fabricados por nosso cérebro e glândulas) que deve ser reposto. A cura para a depressão é a dosagem ideal de medicamentos que realizem com eficiência o que falta em nosso organismo. A depressão é o lugar da falta e da incompetência do corpo.
Por fim, a doença nervosa que infelicita tanta gente tem marcas típicas de nosso tempo. Numa sociedade que não é apenas competitiva, mas excludente, vive-se com a ameaça constante de que podemos ser, amanhã, a bola da vez. Se todos são descartáveis em algum momento da sua trajetória, a proximidade desse destino, pior que a morte, nos solapa a dignidade humana de ser apenas gente. A depressão é o lugar dos que ocupam um lugar que não é mais deles.
Essa situação tem desafiado os psicólogos e psicanalistas, além dos médicos que substituem o sujeito triste pelo corpo imperfeito, mas, talvez, ninguém tenha ido mais no ponto que Freud, num texto que está perto de completar 100 anos, Luto e melancolia, que acaba de ganhar nova edição, em tradução diretamente do alemão feita por Marilene Carone.
A tradutora, que morreu em 1987, foi das primeiras a se propor a tarefa de retraduzir Freud, em razão da problemática edição brasileira feita a partir da tradução inglesa. Hoje, com a obra de Freud em domínio público, são várias as iniciativas nesse setor, entre elas a de Paulo César de Souza (Companhia das Letras) e Luis Hans (Imago). A versão de Luto e melancolia de Marilene Carone havia circulado apenas em revistas especializadas.
O livro, que sai em volume elegante pela Editora Cosac Naify, traz apresentação de Maria Rita Kehl, prefácio de Modesto Carone e posfácio de Urania Tourinho Tavares. A tradução em si de Marilene Carone é um trabalho notável, cuidadosamente anotada, e que traz como apêndice um quadro com a discussão conceitual de linguística de algumas divergências em relação a outras traduções em português e inglês.
Perdas
Luto e melancolia foi escrito em 1915 e, de acordo com o projeto de Freud, integraria um conjunto de artigos que comporiam o que ele chamava de metapsicologia. Os outros textos eram A pulsão e seus destinos, O recalque, O inconsciente e Complemento metapsicológico à teoria dos sonhos. Com esse grupo impressionante de artigos, escritos em pouco tempo, Freud pretendia oferecer uma descrição dos processos mentais a partir das elaborações da psicanálise àquela altura. Uma síntese que ao mesmo tempo avançasse para permitir novos passos.
Mesmo tendo origem técnica, Luto e melancolia é livro para ser lido com interesse e prazer por qualquer pessoa inteligente. Freud é um estilista, desenvolve seu texto com cuidado, vai apresentando novos conceitos de forma cuidadosa, faz referências pessoais e envolve o leitor com a aura cultural de seu tempo e de sua formação. É texto curto – cerca de 50 páginas – de pura sabedoria e humildade. Sente-se a ciência nascendo à medida que a leitura avança.
Em Luto e melancolia, como o nome já indica, ele descreve os dois estados de alma que afetam a vida de todas as pessoas em algum momento de sua existência. Todos já viveram a experiência do luto e sabem como ela é dolorosa e, também, como o trabalho do luto leva à superação desse estado, permitindo o enlutado retomar sua vida, mesmo que à custa de muito esforço e lágrimas. O melancólico, por sua vez, parece emparedado numa situação mais dolorosa e indefinida, como se o luto se tornasse um estado crônico.
Se os estados de sofrimento têm semelhança, também apresentam singularidades. Tanto quem vive o luto como o melancólico sentem diminuição de interesse pelo mundo. No entanto, no estado de melancolia, o desinteresse pelo mundo externo é acompanhado de uma queda na autoestima, que pode levar até mesmo a uma vontade de punição. O que não ocorre no luto. Quem perdeu alguém que ama sabe o que perdeu. O melancólico não tem perda identificável e “a sombra do objeto se abate sobre o eu”. Ele se culpa acerca de algo que ele não sabe o que é. E acha que merece sofrer por isso.
No texto, além da descrição dos dois estados de alma e de sua explicação pela teoria psicanalítica – inclusive com o conceito de instância crítica, que aparece no artigo pela primeira vez e depois vai ser elaborado até a descrição do superego e da pulsão de morte –, Freud conduz o leitor a um autoconhecimento profundo.
Em determinada passagem, ao descrever como os melancólicos detestam a si próprios, chega a dizer que os homens talvez precisem adoecer para chegar a verdades inconvenientes como essa. Freud, como se percebe, não era lá muito otimista. “Dê a cada homem o que merece e quem escapará do açoite?”, questionava-se, citando o príncipe Hamlet.
Sem sentido
Quem se der ao trabalho e prazer de ler ou reler Freud vai ficar tentado em trazer Luto e melancolia para os nossos dias. Quem nunca ouviu um amigo se queixar da falta de sentido da vida? Ou escutou outros que preferiram trocar a análise pelo remédio em nome da rapidez e pretensa eficiência do “tratamento”? Ou ainda ouvir as pessoas insistirem na autopunição em razão daquilo que julgam fazer falta à felicidade, do corpo impossível à vontade de ser admirado pelo simples fato de ser admirado? Nosso tempo parece ter escolhido a melancolia como forma de expressão. E deu a ela o nome de depressão.
Alguns autores têm procurado dar às ideias de Freud uma tradução social. A sociedade contemporânea parece ter mirado no que temos de mais frágil e apertado esse ponto para nos fazer sofrer ainda mais. É o caso do narcisismo, por exemplo. O melancólico, além de sofrer por suas infelicidades reais, precisa dar conta de projetos inviáveis em termos físicos, psíquicos e sociais. A mesma sociedade que infla nosso narcisismo ao extremo, no minuto seguinte, nos mostra que jamais chegaremos lá. A própria expressão “sonho de consumo” sintetiza essa contradição. Queremos exatamente o que não podemos ter.
Outra característica do nosso tempo que se afigura uma tortura para o desejo é o projeto de uma felicidade que se compra e se consome pronta. O homem e a mulher de hoje trocaram o trabalho da construção pelo gozo imediato do resultado. É a lógica do crack, uma droga rápida e barata, que promete cortar caminho até a felicidade. Nas mesmas proporções, é o que fazem jovens que trocam a política pela alienação orgulhosa, a construção do conhecimento pela escultura do corpo, a busca do salário no lugar da realização dos talentos. Ou, em outro registro, o cenário urbano fundado no medo do outro, que empareda casas, muda rotinas para pior e dissolve laços de pertencimento.
Somos feitos de falta e podemos aprender com o luto o difícil e necessário trabalho interno de recompor nossas parcas certezas. A perda ensina, educa e amadurece. Um tempo que não admite tristeza vai certamente se afundar em depressão. O desejo não perdoa.
http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/02/25/interna_pensar,25930/a-tristeza-e-senhora.shtml. Enviada por José Carlos.