Paisagem típica da Amazônia, o local onde os rios Negro e Solimões se encontram pode ser em breve modificado. Atraída pela demanda ocasionada pela expansão da Zona Franca de Manaus, a operadora logística de capital aberto Log-In (cujo maior acionista é a Vale, com 31% da participação total) pretende investir cerca de R$ 200 milhões na construção de um porto na área do chamado Encontro das Águas – onde os dois rios, um claro e outro escuro, “brigam” por espaço. O projeto do terminal deflagrou na região um conflito entre a necessidade de infraestrutura e a de preservação ambiental e acabou parando na Justiça. Se do ponto de vista logístico a localização do Terminal Portuário das Lajes é perfeita, por estar ao lado de grandes indústrias da capital manauara, para ambientalistas e moradores não poderia ser pior.
Quando o espelho do rio Negro desce da copa das árvores da mata fechada e se recolhe em época de seca, é revelada parte da importância histórica da região das Lajes – tão defendida nos discursos de pesquisadores. Antes ocultas sob as águas turvas, ficam à mostra as chamadas “oficinas”, onde povos antigos afiavam seus instrumentos de caça e de gravura. Outros elementos do sítio arqueológico só foram descobertos em 2010. No ano de uma das mais fortes secas da história da Amazônia, arqueólogos descobriram nas pedras mais distantes das margens desenhos rupestres de rostos humanos e outras gravuras que lembram o redemoinho causado pelo encontro dos dois rios. Segundo os pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Elena Franzinelli e Hailton Igreja, as inscrições têm idade entre dois mil e sete mil anos.
Na visão dos pesquisadores, a região integra um conjunto de cenários que podem servir de revisão geral sobre a história da ocupação da Amazônia. Pesquisadores defendem que em toda a bacia, incluindo as áreas adjacentes aos grandes rios, há sinais de que a região foi densamente ocupada nos milênios que antecederam a chegada dos europeus ao novo mundo. A ideia se contrapõe ao que antes era considerado quase um consenso dentre os acadêmicos – de que a Amazônia era pouco habitada por seres humanos e não tinha civilizações organizadas com grande número de integrantes.
Eduardo Góes Neves, presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira que elaborou parecer técnico favorável ao tombamento do local, diz que dentre os sinais que dão outra concepção à história está a construção de grandes figuras geométricas no chão, conhecidas como geoglifos, nos Estados do Acre, do Amazonas e de Rondônia. “Em muitos desses contextos, além do mais, as estruturas são acompanhadas por objetos de cerâmica e pedra de alta qualidade estética”, diz.
Graças aos sítios arqueológicos e a outros aspectos – o local é um dos principais atrativos paisagísticos e turísticos da região -, o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan, órgão vinculado ao Ministério da Cultura) aprovou em novembro de 2010 o tombamento da região do Encontro das Águas, por unanimidade de seus conselheiros. Com isso, ficaria impedida a construção de uma obra como a do porto das Lajes no perímetro protegido.
Quase um ano depois, entretanto, a Justiça Federal no Amazonas tomou uma decisão inusitada: “derrubou” o tombamento feito pelo governo federal. A decisão foi tomada em caráter liminar pelo juiz Dimis da Costa Braga, titular da 7ª Vara da Seção Judiciária do Amazonas, que acolheu um pedido do governo do Estado do Amazonas. A justificativa foi que o processo não teve audiências públicas.
O Iphan se defende dizendo que o processo de tombamento não precisa passar por esse processo. Em setembro de 2011, o órgão impetrou ação de suspensão de liminar contra a decisão no Tribunal Federal da 1ª Região em Brasília, por meio da Procuradoria-Geral Federal e da Advocacia Geral da União.
Paralelamente, o Ministério Público Federal tenta impedir a construção do porto por meio de uma ação civil pública. O mesmo juiz que havia derrubado o tombamento acolheu o pedido em outubro do ano passado, em caráter liminar, e impediu intervenções no local – como construção, terraplanagem e desmatamento – até posterior autorização judicial. Braga determinou a proibição por considerar necessária a realização de mais estudos e considerar que o eventual início das obras traria “alterações irreversíveis”.
Mesmo causando certo alívio, a decisão ainda é alvo de preocupação entre os que são contrários ao projeto. Isso porque foi designada uma comissão de peritos para delimitar a área que pode ser definida como monumento natural – e, dependendo do que for decidido, o porto poderia ficar na área externa ao perímetro tombado. A comissão é composta por um geógrafo, um geólogo, um arquiteto, um antropólogo, um arqueólogo e um paisagista. Segundo o juiz, os integrantes foram escolhidos por ele – sendo um deles participante da equipe que elaborou o Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (o chamado EIA/Rima, necessário para solicitar licenças ambientais) do projeto. “Esse integrante foi trocado posteriormente. São todos estudiosos respeitados”, diz ele.
A superintendência do Iphan comentou o empreendimento por meio de nota enviada à reportagem, se dizendo contrária ao empreendimento. “A operação portuária impactará diretamente o bem tombado, considerando o porte das embarcações envolvidas, a quantidade de carga prevista para ser transportada e as movimentações necessárias à atividade, no justo ponto do ápice de ocorrência do encontro dos rios Negro e Solimões”, diz o texto.
Além de estar paralisado pela Justiça, o porto está com sua solicitação parada na Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) porque a Log-In não apresentou todos os documentos necessários à solicitação de implantação do empreendimento. Para a implantação de terminais de uso privativo, as empresas devem fazer o requerimento à Antaq e apresentar uma lista de documentos – dentre os quais informações sobre impacto ambiental.
Procurada repetidas vezes pelo Valor, a Log-In preferiu não comentar o assunto. O EIA/Rima elaborado pela empresa Liga Consultores defende que outras quatro localizações foram cogitadas para a implantação do porto. “A localização proposta para o empreendimento é estratégica, uma vez que se insere na porção mais oriental da cidade de Manaus, com baixa interferência no tráfego urbano de veículos, possibilitando que os navios de carga que atracarão no terminal evitem passar por toda a orla da cidade”, diz o texto.
Enquanto a questão corre na Justiça, movimentos da sociedade civil organizada discutem o projeto e avaliam os impactos que o empreendimento pode ter. Moradores, ambientalistas, além de professores e estudantes da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) criaram o movimento SOS Encontro das Águas – que luta pela preservação do local e tem como uma de suas principais bandeiras a posição contrária à instalação do porto da Log-In.
Um de seus coordenadores, José Ademir Gomes Ramos, professor da UFAM, ataca o projeto baseado no argumento de que, além da importância história e paisagística, a fauna aquática será prejudicada na região. O chamado Lago do Aleixo, alagado em época de cheia, é um refúgio para peixes se procriarem e se alimentarem. O local de entrada de água do lago, que nutre toda a comunidade do chamado Bairro Colônia Antonio Aleixo, fica justamente na região do empreendimento.
A defesa do local também tem o apoio de um grupo de antigos internados no centro de tratamento de portadores de hanseníase da região, criado na década de 1930. Na chamada Colônia Antônio Aleixo, batizada assim como homenagem a um dos primeiros médicos a trabalhar no local – e posteriormente o nome do bairro -, foram internados pelo governo os portadores da doença. Com o fim do chamado leprosário, em 1978, a vida recomeçou do zero para a maioria. Sem dinheiro, sem comida e sem ter para onde ir, muitos resolveram ficar por ali mesmo. Hoje, eles defendem a preservação da região do bairro onde cresceram e atualmente vivem. Assustada com o novo porto no Aleixo, Maria do Carmo Amorim, 78 anos, elenca uma série de argumentos, sempre intercalados por comentários religiosos: “Se Deus quiser, não vai sair”.