Luzes sobre o poder mais obscuro da República

Reações às investigações da corregedora Eliana Calmon reabrem as discussões sobre a necessidade de democratização do Judiciário

Supremo Tribunal Federal: cargo vitalício e nomeação política - Foto: Rodrigues Pozzebom/ABr

Vinicius Mansur

A constatação e divulgação de fluxo de dinheiro incompatível com o contracheque de alguns magistrados e servidores do poder Judiciário brasileiro, por parte da Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), levou as entidades representativas da magistratura e até mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF) a um embate com seus fiscalizadores.

Sob o argumento de quebra de sigilo bancário ilegal e tentativa de macular a imagem da Justiça, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação Nacional dos Juízes do Trabalho (Anamatra) travaram uma cruzada contra o CNJ, chegando a conseguir no STF, ainda no ano passado, a paralisação das investigações.

Entretanto, há vozes dissonantes dentro da magistratura. O desembargador Rui Portanova, presidente da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) e candidato a ministro do STF, considera corretas as investigações de Eliana Calmon: “Todos os anos o juiz é obrigado a entregar ao CNJ a declaração do imposto de renda. O que o CNJ vai fazer com isso, se não uma investigação? Nós estamos tratando da necessidade de transparência de um dos maiores poderes do Estado, que julga os outros poderes. Todo juiz tem que estar permanentemente com seu sigilo aberto, principalmente para um órgão que é de corregedoria do próprio sistema.”

Para o desembargador, é a postura refratária das associações que reforça o desprestígio do Judiciário, não as investigações do CNJ. “As associações deveriam ser as primeiras a quererem ter dentro do seu quadro de associados pessoas acima de qualquer suspeita”, afirma.

O presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), José Henrique Rodrigues Torres, também apoia o CNJ e aponta a resistência das associações como causa das especulações: “O que macula a imagem do Judiciário é o comportamento equivocado de seus próprios membros. A transparência é o que mais legitima o exercício do poder.”

Corporativismo

A luta para trazer o Judiciário para o universo público esbarra nas fortes associações de magistrados. Oriundos de uma carreira muito bem estruturada e com grande prestígio no Brasil, eles têm voz na mídia e nos poderes econômico e político. “Portanto, essas associações têm muito poder e o exercem de maneira bastante potente e, às vezes, até agressiva. Mas a sua ação política tem somente uma pauta e não é a eficácia da Justiça, mas a proteção e a expansão de suas prerrogativas e dos vencimentos da carreira”, destaca Antônio Sérgio Escrivão Filho, assessor jurídico da ONG Terra de Direitos e representante da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JUSDH).

Para ele, há na magistratura uma forte “cultura de gabinete”, em detrimento de uma postura pública, que leva ao uso intenso dos direitos da função, mas que deixa a desejar no cumprimento de deveres, sobretudo, no que tange à transparência e impessoalidade dos seus atos: “É contraditório ver a associação daqueles que cobram publicidade e princípios públicos da administração e também a postura da sociedade vir a público para atacar sua corregedoria, justamente a que vem desocultando-o para a sociedade.”

O jurista e procurador do estado do Paraná Carlos Marés explica que a ação das associações de magistrados seria comparável à ação de qualquer sindicato na defesa dos trabalhadores que representam se não fosse um “pequeno” detalhe: “Enquanto os sindicatos sempre têm um contraponto dentro da sociedade, o sindicato dos juízes, que não gosta de ser chamado de sindicato, não tem esse contraponto, eles têm o poder na mão, o que os faz muito mais poderosos”.

A corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon - Foto: José Cruz/ABr

Ação política

Para além da ação dos indivíduos e de suas associações representativas, Marés também aponta a própria estrutura de poder do Judiciário como grande obstáculo para democratizá-lo. De acordo com o jurista, a partir do século 20, o poder Judiciário, e no Brasil com mais intensidade, deixou de ser um órgão do Estado que dirime problemas individuais para se tornar o órgão que controla o Estado e também o responsável por dirimir conflitos de interesses coletivos.

“Assim ele deixa de ser um solucionador dos problemas de contrato e passa a ser um solucionador de problemas da sociedade, de conflitos que não são estabelecidos previamente na lei, exercendo uma ação política do Estado com mais poder de decisão que o próprio ente que decide as políticas públicas. Mas a sua democracia continua a mesma, ou seja, sem democracia interna. Portanto, se tornou um superpoder. Um superpoder não democrático todos nós sabemos no que dá: despotismo. E como todo poder despótico, não gosta de quem o controle.”

Natureza antidemocrática

Com a redemocratização do Brasil na década e 1980, a ideia do controle externo do Estado ganhou força em toda a sociedade, mas o poder Judiciário foi o menos permeável da República. Assim, a Lei Orgânica da Magistratura Nacional segue sendo aquela aprovada durante a ditadura militar; a escolha dos altos dirigentes da Justiça segue restrita às altas cúpulas do Judiciário ou da política – como a escolha dos ministros vitalícios do STF – sem qualquer participação social ou transparência; os magistrados seguem com direito a férias de 60 dias, mais o recesso forense; seguem com os salários mais altos do país no funcionalismo público; as possibilidades de fiscalização e correição (ofício exercido pelo corregedor) foram restringidas (até a criação do CNJ, em 2005) a corregedorias locais que só têm competência para julgar juízes de primeira instância; entre outros privilégios, mantidos sob a alegação de que controlar o Judiciário seria ferir a independência dos poderes e a própria democracia, uma vez que é ele quem garante as liberdades democráticas. Para Marés, isso é uma falácia, pois dentro do sistema a função do Judiciário nunca foi, essencialmente, defender a democracia.

“Sua função, idealmente, é a defesa da ordem. E a ordem não é exatamente a defesa da democracia e da liberdade. Ao contrário, temos visto que o Judiciário é de forma geral um acertador da ordem. Então, ele se presume não favorável às liberdades democráticas quando elas levam a transformações sociais.”

Controle democrático

Para o presidente da AJD José Henrique Rodrigues Torres, a resistência histórica a abrir-se democraticamente é a razão primeira da crise aberta agora no Judiciário, mas ele destaca a oportunidade de avanço neste momento.

“Uma das movimentações flagradas pelo Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras, vinculado ao Ministério da Fazenda] é de 2002 e nós estamos em 2012! Dez anos e ninguém viu nada? Todo ano a Receita Federal segura a minha declaração e vai lá verificar. Como alguém começa a movimentar R$ 200 milhões e ninguém percebe? As investigações deveriam ser normais, regulares, transparentes. Agora, discutimos se a Eliana Calmon agiu bem ou mal, se o tribunal pagou a mais ou não, se o juiz recebe salário bom ou ruim etc. Tudo com um sensacionalismo midiático que contribui muito para a generalização da imagem corrupta dos membros da Justiça e pouco para o real problema: como é que nós podemos democratizar efetivamente o Judiciário e seu próprio controle”, alerta.

http://www.brasildefato.com.br/node/8828

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