Comissão Quilombola de Sapê do Norte envia carta contra roubo do Beiju pelo estado que é também uma belíssima aula de História

Tania Pacheco

A Comissão Quilombola do Sapê do Norte (São Mateus e Conceição da Barra/ES) enviou carta a Alexandro Reis, Diretor da Fundação Cultural Palmares, denunciando e pedindo providências contra o Governo do Espírito Santo, que está tentando se apropriar do Beiju – “maior simbolo de referência quilombola, sobrevivência e luta -, transformando num produto industrial.

A Comissão foi surpreendida com o anúncio da comercialização da marca “Beiju do Sapê do Norte” em hotéis e outros estabelecimentos comerciais exatamente durante o VIII Festival do Beiju, realizado de 18 a 20 de novembro. Como se não bastasse a apropriação indevida da tradição quilombola, o anúncio ainda foi feito como do projeto “Edital Secult 006/2011: valorização da diversidade cultural capixaba”, coordenado por Maria Angélica Fonseca, Maria Aparecida Barbiellini Petroni e Fabien Denoël.

Considerando que não foram consultados sobre o projeto; que ele fere o direito à propriedade intelectual, à autonomia econômica, ao desenvolvimento social e cultural das comunidades quilombolas do Sapê do Norte, assim como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e os Artigos 215 e 216 da Constituição Federal, a Comissão solicita a “imediata suspensão do referido projeto e seus efeitos econômicos e culturais” e a “imediata criação de um Fórum composto pelas comunidades quilombolas do Sapê do Norte, assessores jurídicos e agências de governo, que tenha com objetivo a adequada comercialização da marca “Beiju do Sapê do Norte”.

Caberá ao Fórum garatir a propriedade intelectual dos quilombolas;  a distribuição adequada dos resultados da comercialização do Beiju; o controle do processo de comercialização e distribuição adequada dos recursos;  a sustentabilidade do processo produtivo do Beiju; e o controle sobre os resultados do processo produtivo para as presentes e futuras gerações.

Abaixo, a íntegra da carta, que merece e deve ser lida pelos dados extremamente ricos que oferece sobre as tradições ligadas às “casa de farinha” e, acima de tudo, o tratamento do aos negros em geral e à escravas e seus filhos, principalmente, na região.

Da Comissão Quilombola do Sapê do Norte

Para Alexandro Reis
Departamento de Proteção do Patrimônio Afro-Brasileiro
Fundação Cultural Palmares

Senhor Diretor,

1. O Beiju do Sapê do Norte é fabricado desde tempos ancestrais nas mais de trinta comunidades quilombolas da região dos municípios de Conceição da Barra e São Mateus. Este produto é o resultado da cultura e história negra quilombola responsável por parte significativa da economia das famílias e a manutenção dos laços sociais e organização do trabalho. O Beiju é o resultado da inventividade da cultura quilombola que combina elemento sociais, a manutenção dos territórios e ambientes naturais e faz parte da sabedoria ancestral quilombola.

O Instituto nacional do patrimônio Histórico foi o responsável pelo “INRC – INVENTÁRIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS CULTURAIS COMUNIDADES QUILOMBOLAS NOS MUNICÍPIOS DE SÃO MATEUS E CONCEIÇÃO DA BARRA.”

Neste relatório podemos ler no Capítulo “A MEMÓRIA SOBRE O BEM” a importância do Beiju na economia e na produção simbólica dos quilombolas do sapé do norte. No sub-item 1.1. “REFERÊNCIAS HISTORIOFRÁFICAS E MEMÓRIA DA FARINHA E DO BEIJU NO  NORTE DO ESPÍRITO SANTO” podemos acompanhar a relevância da relação entre o beiju e a cultura dos quilombolas:

“Muito difundida entre os nativos da região, a mandioca, junto à farinha e outros derivados, foi incorporada aos hábitos alimentares de colonos europeus e africanos escravizados que aqui chegaram. Substituta da farinha real (farinha de trigo) quando na escassez desta, a farinha de mandioca ou farinha da terra, como era conhecida, logo se tornou um dos principais alimentos dos habitantes do Brasil colonial e imperial, sobretudo da população negra que a consumia tanto nas fazendas quanto nos quilombos disseminados por todo o país.

No Espírito Santo, a farinha de mandioca, durante a primeira metade do século XIX, constituiu um dos principais produtos de exportação. Cultivada em praticamente toda a extensão foi, porém, na região norte, mais precisamente em São Mateus, que esta cultura conheceu maior destaque, pois no restante da província era produzida apenas para o consumo próprio.

Estima-se que o incremento da produção de farinha de mandioca no norte capixaba seja oriundo dos incentivos da Coroa Portuguesa, na figura do primeiro ministro, Marquês de Pombal, ainda em meados do século XVIII, que, temendo contrabando de ouro e incursões à região das minas através do rio Cricaré – cuja cabeceira encontrava-se próxima  – se empenha para que na região desenvolvesse uma agricultura voltada para o abastecimento do mercado interno colonial, sobretudo o do Rio de Janeiro e o da Bahia.

Os esforços da Coroa não foram em vão. Já no início do século XIX, viajantes sinalizavam a prosperidade da região, cujos habitantes cultivavam grande quantidade de farinha de mandioca. Segundo o príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, a economia girava em torno dessa cultura e se exportava anualmente 60 mil alqueires de farinha (1989: 55). Outro contemporâneo, o bispo José Caetano da Silva Coutinho, apresenta testemunho parecido. Em visita a vila de São Mateus nos idos de 1819/1820, nos relata que toda a economia da freguesia parecia girar em torno da cultura da mandioca, a única coisa de que se trata, plantada, segundo o religioso, em todos os cantos (2002: 40).

A produção de farinha da terra deu tão certo em São Mateus que ela se tornou famosa, sendo exportada para outras partes do Brasil, especialmente Minas Gerais, Rio de Janeiro e Salvador. De fato, a procura nos mercados do Rio de Janeiro era tamanha que o produto mateense contava com uma cotação própria, tendo um preço mais elevado que a farinha do resto do país (TALLON, 1999: 67).

Toda essa prosperidade, todavia, não seria possível sem a presença do negro escravizado, alicerce de todo o desenvolvimento econômico da região e da sociedade, visto que a produção mateense estava organizada em grandes latifúndios e tinha como principal mão-de-obra o negro cativo, que trabalhava em todas as etapas do processo de produção da farinha de mandioca, desde a preparação do terreno para o plantio até a torrefação, realizada, principalmente, pelas mulheres escravizadas. Os saberes envolvidos na produção de farinha de mandioca e do beiju se perpetuaram por meio dos seus descendentes e dos quilombos presentes em todo o sítio Sapê do Norte:

 

Desde o tempo da escravatura, o povo descia de lá, vinha aqui, fazia farinha e hoje a gente continua, não perdeu ainda a pré-história da cultura de fazer farinha. Então a gente faz a farinha e o beiju aqui, que é a grande cultura do povo da região (Vermindo dos Santos. Linharinho. 02/01/2009).

 

Na memória social dos quilombolas atuais, a farinha e o beiju sempre foram  alimentos essenciais da dieta dos seus antepassados que, nos dias atuais, eles fazem questão de lembrar e não esquecer.

 

Que é, por exemplo, o beiju era uma coisa que era usada assim, segundo os historiadores e as pessoas dos quilombos mais velhos que era usado para alimentação, né? Por que o beiju é uma alimentação básica: café da manhã, café da tarde, então sempre usavam os beijus, né? Beiju de coco, beiju de massa, beiju de goma, beiju de fate, beiju molhado, entendeu? A gastronomia, é uma culinária que realmente vem dos quilombos, representa assim (…) é um alimento histórico, né? Um alimento que faz parte de toda a história da cultura, entendeu? Do povo afro-remanescente do Sapê do Norte (Domingos Firminiano dos Santos. Angelim do Meio, 20/01/2009).

 

A produção de farinha e beiju foi incorporada, assim, à cultura dos africanos e seus descendentes que (re) inventaram a mandioca ao enriquecer seus derivados com outros produtos tais como coco, amendoim e azeite de dendê.

No universo cultural das casas de farinha estão associadas várias narrativas de atrocidades cometidas contra os escravizados. Vale ressaltar que o grande número de negros em São Mateus, ainda hoje bastante expressivo, suscitava receio nos senhores e sinhás, proprietários de escravos, que se valiam dos mais diversos mecanismos coercitivos a fim de que a relação de dominação fosse mantida. Violências físicas ou psíquicas que deixaram marcas indeléveis na memória dos descendentes africanos do sítio estudado. Crueldades que fizeram com que São Mateus fosse considerado um dos núcleos escravocratas mais perversos do país (AGUIAR, 2001: 23).

Agora, em Sapê do Norte quem mandava em Sapê do Norte era o pessoal dessa região era o pessoal do Barbosa e o pessoal dos Almeidas (…) esses homens o maior perigo. (…) O maior carrasco que já existiu. (…) Eram ruins. (…) Eu ouvi muitas histórias sobre eles aqui. (…) Era o pessoal mais valente que tinha aqui. Não era valente, aquilo não era valentia, era ignorância. Não tinha valentia, era ignorância (Antônio Ventura Júnior, 72 anos. Chiado, 21/01/2009).

Dentre os relatos destaca-se, sobretudo, os que envolvem o assassinato de crianças negras – lançadas nas fornalhas sob os fornos das casas de farinha pelas sinhás – tanto pela sua ampla ocorrência ao longo da nossa pesquisa de campo quanto pela iniquidade que sugere. Um caso ilustrativo dessas atrocidades que ocorreu na segunda metade do século XIX está presente na literatura da região e foi narrado por Aguiar (2001). Trata-se de Constância de Angola, escrava do Coronel Matheus Gomes da Silva, irmão do Barão de Aymorés, que teve o filho arrancado dos seus braços enquanto trabalhava na torrefação da farinha de mandioca e atirado na fornalha pela sinhá, incomodada com o choro da criança.

Segundo os entrevistados, as crianças eram lançadas na fogueira para que os serviços das fazendas não fossem prejudicados e as mães nada podiam fazer, pois trabalhavam acorrentadas para não fugirem rumo aos quilombos:

Antigamente era o tempo do cativeiro. Então aí as empregadas, as cativeiras que trabalhava, trabalhava acorrentada na casa de farinha. Aí ela chegava a dona mesmo pegava o bebezinho que chorava aí ela pegava e jogava dentro do forno, embaixo da fornalha. E a mãe não tinha direito a nada, né? Que era escrava, trabalhava. Aí só via a lágrima descer. Era triste, muito triste. Aqui, antigamente, meus avôs, bisavós, eles contavam pra gente, aí a gente gravou isso mesmo. Meu avô falava, minha mãe também. Era muito triste. (…) Torrava a farinha acorrentada, não tinha direito de sair não. (…) Homens no mato trabalhando e as mulheres torrando farinha (Rosa da Conceição. Roda d’Água, 17/01/2009).

Os praticantes das barbaridades contra seus ancestrais vêm sendo imaginados a partir de uma memória social herdada dos pais, avós e tios de nossos entrevistados como seres destituídos da sensibilidade humana, pois no período da escravidão teriam praticado maldades que só seres denominados pelos nossos entrevistados como monstros, bichos e seres não humanos poderiam cometer.

O pessoal diz também que quando eles, os escravos, iam torrar farinha, usavam aquelas tornozeleiras neles… tudo grampeado também nas pernas. Amarrava o correntão nas pernas, só do forno ao coxo, do coxo ao forno. (…) Era assim os mais velhos só andava do forno ao coxo na beira do forno. Não podia sair. (…) Ficava preso ali, não dava mama aos filhos, nem nada, não. (…) Quantos não matavam, quantos morreram, enfrentaram uma morte dessa. Coisa que todos era cristãos e tinha… (…) …mamãe contava muito essa história. (…) Lá aquelas forneiras, aquelas escravas quando estavam fazendo farinha, aquelas crianças… se as crianças estivessem chorando, porque elas torravam farinha tinha aquela correntona no pé. (…) Então ali, se tivesse pior quem já tivesse filhos. Mamãe disse que teve uma tal de Placidina que jogava muitos filhos das escravas debaixo do forno. (…) …essa mulher, quando ela morreu (…) … foi carregada num carro de boi. (…) ela foi sepultada aqui perto na Serra (…): Perto de Nova Venécia. (…) Então, ela foi sepultada, disse que ela virou bicho, assim me falaram. (…) Quando ela sepultou, estava com os fiapos do cabelo assim ó, pra fora da terra. (…) Ela queimou muito filho (de escravas). (…) Ela virou, disse que virou uma serpente, quando enterraram ela, aí subia aqueles pião de cabelo assim em cima da terra. Ela foi carregada num carro de boi. (…) porque ninguém pôde, ela exagerou demais, ela deve ter engordado muito e ela tinha pecado demais… pesou muito. A mulher pegar crianças, pegava um montezinho novinho e jogava lá debaixo do forno. (Antônio Ventura Júnior, 72 anos. Chiado, 21/01/2009).

Outras narrativas que versam sobre a transformação das sinhás em serpentes fornecem detalhes variados e a intervenção religiosa para acalmá-las.

Odorico: Esse foi um ditado que me contaram. Quando a criança tava enjoando muito, enjoando, enjoando, aí ela chegava de lá pra cá e jogava a criança debaixo do forno. Tinha uma inté que era tão malvada que virou serpente. (…) Virou serpente. Desceu nesse rio aí, ó… (apontando para o rio Cricaré) pro mar… conta o pessoal que desceu nesse rio. O rio deu uma enchente, enchente forte que foi lá em Nova Venécia. Aí foi logo que, foi o pessoal antigo que contava, aí o bispo foi lá, chegou lá, puxou ela pro rio. Ela caiu no rio. O pessoal fala que desceu “dando cada um urro”…

Osvaldo: Então ela estava lá em Nova Venécia?

Odorico: Apareceu num cemitério em Nova Venécia. A sepultura dela rachou e apareceu as unha. Você sabe disso também, já, né? Aí apareceu as unha e cabelo. Pocou e ficou aparecendo as unha.

Osvaldo: Na sepultura?

Odorico: Na sepultura dela. Aí foram lá e chamaram o bispo, naquele tempo veio, aí expulsou pro rio. O rio tava cheio. Aí desceu nesse rio aí. O pessoal fala que desceu nesse rio aí dando cada um “urro” danado. Aí desceu. (…) Essa coisa era antiga. O pessoal é que falava isso.

Fernanda: Era de uns cem anos pra trás?

Odorico: Ah, tem mais… mas hoje em dia se a gente perguntar pros parentes se a mãe deles virou serpente, é capaz de mostrar! (…) É o que vem sendo contado pelos outros, virou serpente.

(Odorico Nascimento Filho. Dilô Barbosa, 22/01/2009).

As maldades e as humilhações, mesmo após o fim da escravidão, adentraram ao século XX e eram cometidas pelas senhoras pertencentes às tradicionais famílias do norte capixaba contra crianças negras, reproduzindo as mesmas relações de poder de outrora:

Tinha uma tal de… eu ainda conheci ainda uma tal de Esmeralda. Era uma baixinha e tinha uma tal de Dona Celina, a Celina também… esse pessoal… essa terra daqui das Contendas pra baixo, parte de lá, o pessoal chamava tudo de dono. Tudo era deles. (…) Aí, tinha a velha Celina, quando morria uma pessoa aquela mulher chorava, chorava, devia de ser de malvadeza. (…) Ê que mulher malvada, também. (…) A Esmeralda, nós fazia farinha na casa do velho Titio do Seu Abel, irmão dela, né? Aí papai nesse tempo trabalhava, pessoal pobre rapaz, trabalhava pra qualquer um. Fazia farinha lá… ela cozinhava num (…) parece uma coisa que to vendo. Cozinhava o aipim, botava sal, sal, sal pra caramba no aipim. Depois, tirava o aipim e botava sal naquele caldo. Pegava aquele caldo do aipim, pegava caldo da carne de porco, botava ali dentro. Mais sal, sal, sal purinho, se botar na boca… e dava pra nós beber, ela dava pra beber. (…) Maldade mesmo a velha Esmeralda fazia. Era só encontrar um monte de crianças. Ela pegava aquilo lá e dava pra beber (…) Era o bicho. (Antônio Ventura Júnior, 72 anos. Chiado, 21/01/2009).

Todavia, o universo das casas de farinha não é restrito apenas às tristes recordações. Memórias das resistências e afrontas ao status quo também povoam o imaginário coletivo. São exemplos de resistência dos africanos e seus descendentes escravizados, individuais ou coletivas, sutis ou violentas, que manifestavam todo o descontentamento diante de um sistema que os subjugava pela força das armas que eles não tinham acesso. Seu Antônio Ventura Júnior recorda-se de inúmeras histórias que envolvem seu avô, Mateus Reinaldo, um homem negro escravizado, cuja coragem ainda suscita admiração e orgulho em seus netos, pois se recusava a reconhecer a autoridade e a propriedade de seu senhor sobre seu corpo, negando-lhe reverência e vingando-se dos castigos a ele impostos, destruindo os instrumentos de trabalho e de escoamento da produção, como, por exemplo, matando a tropa de animais do senhor com veneno de cobra.

Antônio: Quando ele morreu, eu já era nascido. (…) Aquele era valente. Apanhava, mas não chamava nunca (…) amarrado num tronco, mas não chamava de senhor de jeito nenhum, só chamava pelo nome.

Osvaldo: E eles batiam nele pra ele chamar de senhor?

Antônio: É, mas não chamava de jeito nenhum. Aí, quando tirava ele, mandava ele pra roça. Ele ia pra roça, tirava aqueles burros bons deles (dos proprietários) pra arrancar mandioca, aí caçava ele debaixo daqueles paus, tinha aquelas cobras. Achava uma cobra, uma preguiçosa ele quebrava ela no meio e chegava na cara do animal e pegava pra matar.

Osvaldo: Eles queriam que ele chamasse de senhor.

Antônio: É, mas ele não chamava.

(…)

Antônio Ventura: Agora, (…) tinha a Terra do Meio, terra do tal do Manduca Andrade. (…) Esse daí também era senhor, também. (…) Muitos escravos, o meu avô (…) foi vendido pra ele, também. Vendeu pra ele, foi vendido lá na Serra, também. (…) Compraram ele lá, o Manduca Andrade comprou na mão do Abé (Abel de Almeida), vendeu pra eles. Eles não pôde com ele, vendeu na Serra e depois tornaram a comprar outra vez pra baixo. (…) Pessoal dos Abé. (…) Abé, o pai do Gugu Abé.

Osvaldo: O Gugu Abé era o mesmo pessoal dos Almeidas ou  não?

ANTÔNIO VENTURA: É o mesmo pessoal dos Almeidas. É o mesmo pessoal.

(Antônio Ventura Júnior, 72 anos. Chiado, 21/01/2009).

Outro exemplo notório de resistência envolve ao integrantes do quilombo do Negro Rugério, escravo de D. Rita Cunha, que aquilombado nas terras da proprietária, com ela estabelece um acordo para continuar produzindo farinha de mandioca em troca de proteção contra as forças policiais e capitães-do-mato e, em meados do século XIX, se torna o maior produtor da região:

Nas comunidades quilombolas era assim, desde o tempo dos nossos antepassados. Falavam muito dos escravos, né? Algumas histórias contavam da farinha de mandioca do tempo do Negro Rugério, que tinha vários outros companheiros, irmãos, cunhado…(…) Aí esse nosso povo, desde o tempo do quilombo de Negro Rugério, tinha grande história de torrar farinha nesse Engenho. Tinha várias casas de farinha. Rita Cunha fez um acordo com Negro Rugério pra produzir mais farinha porque entregava muita farinha para o Rio de Janeiro e Bahia. Porque os negros tinha, era liberto aqui nessa região, não vinha mais capitão-do-mato pra prendê, mas tinha a necessidade de fazer muita, muita farinha, e os negros tinha que fazer muita farinha pra podê sair essa farinha pro Porto de São Mateus. (…) Só que essa matriz é do tempo dos escravos, trabalho desde a infância. E essa foi dada como prioridade da produção da farinha, fazendo farinha em todo lugar aqui continuou fazendo e nós continuemos também. Vendia farinha pra fora… (Miúda. Linharinho, 03/01/2009).

As casas de farinha, na memória social, configuram-se, também, como um lugar de encontros e de festas. Era sob as palhas do indaiá, uma espécie de coco do mato que revestia o teto das casas de farinha, que as pessoas das famílias e vizinhos se encontravam para conversar, namorar, tirar versos e marchas de brincadeiras, dentre outros.

No passado, era comum que as atividades de produção de farinha de mandioca e do beiju reunissem várias famílias num grande mutirão denominado ajuntamento. Assim, segundo os entrevistados, todas as etapas do trabalho era realizado de forma coletiva e envolvia homens, mulheres e crianças. Depois de os homens roçarem e queimarem as capoeiras, as mulheres se juntavam a eles para o plantio da mandioca. Enquanto homens e mulheres estavam trabalhando nos roçados, outras mulheres formavam uma equipe na cozinha preparando os alimentos para o ajuntamento.

(…) E de primeiro a gente trabalhava em mutirão. De primeiro tratava era juntamento. (…) Meu pai aqui de primeiro com nós aí, oh minha filha vou tratar essa roça aqui. Aí a gente arava um pedaço de terra. Aí juntava todo mundo. Aí vinha matava um porco, matava assim um bicho grande, um porco, senão comprava, matava quatro quilos de galinha. Aí fazia aquele juntamento e dava o almoço todo mundo. Aí chamava nóis: Oh amanhã, Rosinha, Zilda, Tereza, Maria Rosa, vem tudo amanhã pra cá pra casa. As filhas deles. Aí nóis ia. Aí chegava lá ajudava mamãe fazer almoço. Aí de manhã até meio-dia nós fazia o almoço. Aí de meio-dia pra cá a gente ia pra roça plantar. Aí os homens iam cavando e a gente ia plantando. Aí plantava tudo, um pedação assim, plantava tudo num dia. Mas quando a pessoa tá sozinho custa, né, ir cavando… Aí ele fazia aquele juntamento, aí plantava, aí quando tava bom de limpar, tava grande assim, tornava a fazer juntamento pra limpar. Aí limpava tudo, ficava tudo limpinho (D. Rosa da Conceição. Roda d’Água. 17/01/2009).

As recordações sobre os ajuntamentos e festas que ocorriam nas casas de farinha são evocadas de forma nostálgica pelos entrevistados do sítio Sapê do Norte. Era um tempo, segundo os mesmos, de fartura, solidariedade e coletividade – valores aprendidos com os antepassados:

Era uma comunidade inteira (…) Coisas de um era de outro, num tinha diferença não, chega trabalha na casa de um, outro chega trabalha, outro chega ajuda, depois tudo é dividido entre as famílias, a gente, todo mundo come, é aquela coisa, num tem esse negócio, não (Miúda. Linharinho, 03/01/2009).

É, meu pai. Aí era assim, todo mundo fazia assim. Um de lá vinha ajudar, outro já ia pra lá com outra pessoa. Agora que cabou. Eu falo pros meus filhos tudo aí: Ah, meus filhos, antigamente os homens não trabalhava pra si sozinho, não. Era ajudando, um ajudava o outro. Quando um tava fazendo todo mundo ia lá. Ajudar a fazer assim em mutirão. Todo mundo ia lá trabalhar. Meu pai ensinou mais assim, né? (Rosa da Conceição. Roda d’Água. 17/01/2009).

Não raro, os ajuntamentos podiam ser animados com uma festa ao som do forró. Seu Sebastião Nascimento relembra a época em que moças da localidade se uniam para torrar farinha – atividade eminentemente feminina – enquanto os homens tocavam sanfona:

Mais era bom elas torrar farinha porque chegava alguém e dizia que tinha um forró na casa de fulano de tal, aí de repente aquela farinha era torrada… {Risos}...  Elas já gostavam de torrar farinha (…) Trabalho e diversão vinham os velhos nossos pais, nossos tios, eles não torravam farinha… vinha muitas moças torrar farinhas, e para ninguém cochilar eles tocavam sanfona (Seu Sebastião Nascimento. São Cristóvão, 15/01/2009).

A mesma ideia que associa trabalho e diversão está presente nas lembranças de outros entrevistados. O encontro das pessoas e o término dos trabalhos eram motivos para festejos:

Por que antigamente quando falava em fazer farinhada, farinhada pra nós era um divertimento e era um trabalho que era um meio de ganhar farinhada se relasse vamo supor doze ou vinte carga de mandioca, quando terminava de ralar ai era festa, era Jongo, era Folia de Reis que ali terminou aquela farinhada, demo conta.  Era um trabalho que pra eles tinha vencido e é igual pra gente. Aí fazia festa, aí era Jongo, era a noite toda, era reis, era todo mundo animado cantando, a relação que nós temo com a Folia de Reis e com o Jongo é essa (Gessy. Linharinho, 03/01/2009).

A memória das atividades comunitárias mostra que a produção material está associada à dimensão imaterial, pois os ajuntamentos relacionados ao trabalho nas lavouras de mandioca e com a farinha e o beiju se prolongavam nas noites com festas de jongos, reis, bailes e canções regadas a comidas fartas. O ajuntamento consiste em uma visão de mundo e em um conjunto de valores sobre a produção material e imaterial herdado dos antepassados. As festas atuais para Santos Reis e São Benedito realizadas pelos grupos de reis-de-boi e pelos bailes dos congos estão mescladas por esses valores e visões de mundo criadas nas experiências comunitárias dos ajuntamentos.” (IPHAN, 2009; pg. 5-12)

2. Durante o VIII Festival do Beiju, realizado entre os dias 18 a 20 de novembro, as comunidades quilombolas do Sapê do Norte tomaram conhecimento e foram surpreendidas pelo anúncio do projeto “Edital Secult 006/2011: valorização da diversidade cultural capixaba” coordenado por Maria Angélica Fonseca, Maria Aparecida Barbiellini Petroni e Fabien Denoël.

Realizados com o apoio do Governo do estado, FUNCULTURA e outros atores este projeto anunciou a comercialização da marca “Beiju do Sapê do Norte” nos hotéis e outros estabelecimentos, sem o consentimento dos quilombolas do Sapê do Norte, portadores dos saberes tradicionais ligados à fabricação do Beiju.

3. Tendo em vista que:

a. os quilombolas, titulares dos saberes tradicionais ligados à fabricação do Beiju no Sapê do Norte, não foram consultados sobre o referido projeto;

b. que o projeto fere o direito à propriedade intelectual das comunidades quilombolas do Sapê do Norte;

c. que o projeto fere o direito à autonomia econômica das comunidades quilombolas do Sapê do Norte;

d. que o projeto fere o direito ao desenvolvimento social e cultural das comunidades quilombolas do Sapê do Norte;

e. que o referido projeto fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho;

f. que o referido projeto fere os Artigos 215 e 216 da Constituição Federal,

4. Solicitamos a imediata suspensão do referido projeto e seus efeitos econômicos e culturais;

5. Solicitamos a imediata criação de um fórum composto pelas comunidades quilombolas do Sapê do Norte, assessores jurídicos e agências de governo que tenha com objetivo a adequada comercialização da marca “Beiju do Sapê do Norte” que venha atender:

a. a propriedade intelectual dos quilombolas;

b. a distribuição adequada dos resultados da comercialização do Beiju;

c. o controle do processo de comercialização e distribuição adequada dos recursos;

d. a sustentabilidade do processo produtivo do Beiju;

d. o controle sobre os resultados do processo produtivo para as presentes e futuras gerações.

Aguardamos sua manifestação.

Atenciosamente,

Comissão Quilombola do Sapê do Norte.

Enviada por Selma Dealdina.

Comments (1)

  1. A inventividade brasileira não tem limite. Enquanto muitos europeus vem ao Brasil praticar a biopirataria, nós inovamos através de novas formas de sociopirataria. Como se não bastassem privatizar a terra, agora resolveram levar também a cultura. Se nada for feito, logo os quilombolas vão estar pagando copyright por usarem a marca “Sapê do Norte”.

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