Mortos no Peru: Uma zona de resistência

Na Região de Cajamarca, onde os dois brasileiros morreram, camponeses lutam para evitar hidrelétricas. Em 2009, tentativa de retirada de nativos terminou com 22 policiais mortos

Paulo Henrique Lobato (Enviado especial)

Lima, Jaén e Bellavista (Peru) – A tensão envolvendo camponeses contrários às construções de hidrelétricas no Norte do Peru parece brotar da terra como as vastas plantações de arroz que dominam paisagens de cidades da província de Cajamarca, onde o engenheiro Mário Augusto Soares Bittencourt e o geólogo Mário Gramani Guedes morreram, durante trabalho de topografia em projeto para construção de uma hidrelétrica. Moradores se sentem ameaçados pelas hidrelétricas por acreditar que as usinas vão alagar suas terras, forçando-os a sair da área. Eles avaliam que boa parte da energia a ser produzida não beneficiará a população local. Pelo contrário: será vendida ao Brasil – o Palácio do Planalto tem interesse na construção de seis empreendimentos no país vizinho.

O projeto em que os brasileiros trabalhavam não faz parte desse conjunto de empreendimentos, mas poderá mudar a vida de agricultores que dependem do Rio Marañon, considerado a veia que alimenta grandes faixas de terra daquele Norte. Para se ter ideia da importância e da imensidão do leito, basta dizer que ele é um dos cursos d’água que dá origem ao Rio Amazonas. Quem percorre a região nota que os recursos hídricos garantem o sustento de milhares de famílias que sobrevivem da agricultura, basicamente do plantio de arroz e cacau. O calor é marca registrada da região, o que leva quem conhece o local a desconfiar da tese de que os brasileiros teriam sido vítimas de hipotermia. A altitude é de 800 metros, acima do nível do mar.

Ventilar a possibilidade de cobrir áreas com água de represas parece ser o mesmo que mexer em vespeiro, segundo moradores da região. Em junho de 2009, uma disputa entre camponeses e policiais terminou com dezenas de mortos em Bagua Grande, a uma hora e meia de Jaén, por onde os brasileiros chegaram ao Norte peruano. Aquela tragédia chocou o país. Oficialmente, o governo fala em 22 policiais – alguns teriam sido degolados – e 10 nativos.

Já os nativos afirmam que mais de 100 moradores foram exterminados. A posse de terras causou a batalha: o governo, alegando que os camponeses haviam invadido área pública, decidiu retirá-los. “(O Norte peruano) é uma área de conflitos”, disse Orlando Garcia, ex-agricultor que hoje ganha a vida como taxista de triciclo. Contratado pelo Estado de Minas, ele percorreu estradas de terra da região até o cobiçado Rio Marañon.

‘Não é vantagem’ Dezenas de famílias ao longo do percurso aproveitam o leito para irrigar plantações, como faz Manoel Guachachino, de 33 anos. Contrário às hidrelétricas, ele torce o nariz quando ouve algo sobre o assunto: “Não pode haver (usinas). Não será vantagem para nós”. Mesma opinião tem o agricultor Dario Irene, de 40: “Criei dois filhos plantando arroz. Não vão nos tirar daqui”. O grupo em que os dois brasileiros estavam – dois engenheiros, um motorista e um responsável por logística, todos peruanos – sabia do risco de trabalhar em projetos deste tipo no Norte do Peru.

Tanto que o geólogo Fausto Edurino Liñan contou à polícia que já havia se sentido ameaçado no Norte do Peru e que chegou a trabalhar sob escolta policial. De acordo com ele, em visitas anteriores lá, moradores de povoados próximos ao Rio Marañon passaram de carro e gritaram frases contrárias ao projeto da hidrelétrica. Procurado pelo EM em Lima, onde mora, Liñan elogiou a experiência de Bittencourt e Guedes: “Eram pessoas inteligentes e humildes, como deu para perceber na viagem que fizemos de carro (de Chiclayo a Jaén)”.

Quando questionado sobre suas declarações à polícia, demorou para responder que “só a investigação revelará a causa das mortes deles” e que deveria encerrar a entrevista. “Qualquer informação precisa ser por meio da Companhia Vera Cruz”. Já a empresa, consultada, não permitiu que seus funcionários dessem entrevistas. Fernando Huapaia, do Departamento de Comunicação da Energética, frisou, porém, que “o projeto da hidrelétrica prosseguirá normalmente”. Mesmo depois da morte dos brasileiros, a firma não pediu – pelo menos até ontem – proteção policial aos trabalhadores que continuarão tocando o projeto. “Nada nos foi pedido”, afirmou Cesar Terrones, uma das autoridades responsáveis pela investigação.

ONGs são contra

Organizações não governamentais peruanas ligadas ao meio ambiente criticam as futuras hidrelétricas por avaliar que a maior parte da energia a ser produzida vai atender aos interesses de grandes empresas brasileiras. Na época do acordo, a ONG International Rivers avaliou que uma das seis usinas, a ser erguida no Rio Ene, afluente do Amazonas, ameaçaria mais de 10 mil índios da tribo Ashaninka. A oposição, contudo, questiona a necessidade de hidrelétricas num país rico em gás. Na mesma toada, em entrevista à imprensa peruana, o fundador da ONG Pro-Naturaleza, Alfredo Novoa Pena, considerou que “o acordo irá beneficiar apenas o Brasil”.

LINHA DO TEMPO

Peru tem histórico de protestos contra construção de hidrelétricas:

Junho de 2009 – Revolta indígena na selva peruana contra a lei aprovada em 2008 que permitia a desapropriação de suas terras se fosse de interesse nacional. Na região de Bagua, 32 pessoas morreram em confronto, sendo 10 índios e 23 policiais, alguns degolados. Os protestos começaram em abril daquele ano e os camponeses chegaram a bloquear a passagem de uma estrada. A tensão durou 58 dias.

Junho 2010 – Os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Alan García assinam acordo para fornecimento de energia elétrica ao Peru e exportação de excedentes ao Brasil. O convênio prevê a instalação de seis usinas hidrelétricas com investimento brasileiro na floresta amazônica peruana em 20 anos. As porcentagens não foram definidas e o acordo prevê que a prioridade é atender o mercado interno peruano, mas define que o Peru manteria uma reserva de 30% com relação à sua capacidade de geração.

Setembro de 2010 – Cinco funcionários da empresa Vera Cruz e um integrante do Ministério de Minas e Energia são expulsos do povoado de Campo Redondo, durante manifestação de cerca de 5 mil moradores contra a construção da hidrelétrica. A população do povoado de Cococho também participou do protesto, o terceiro contra a Vera Cruz. Os funcionários precisaram se refugiar em um centro educativo e foram resgatados pela polícia.

Junho 2011 – Peru suspende licença provisória de um consórcio brasileiro para a construção da usina hidrelétrica de Inambari, na área de floresta ao Sul do país, a primeira e a maior prevista no acordo assinado em 2010. A cassação da licença ocorreu em meio a protestos no estado de Puno, que receberia a usina. Pelo menos cinco pessoas morreram nos confrontos. Os manifestantes exigiram a suspensão de todas as concessões e o governo os atendeu em relação ao projeto de Inambari.

http://impresso.new.em.com.br/app/noticia/cadernos/gerais/2011/08/07/interna_gerais,1794/uma-zona-de-resistencia.shtml. Enviada por José Carlos.

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