Nem todos os somalis dos 1.300 que chegam todos os dias ao campo de Dadaab, no Quênia, encontram a desejada ajuda para sobreviver que eles precisam. Depois de caminhar durante semanas do sul da Somália, fugindo da fome e da guerra, depois de fazer o grande esforço físico exigido pela viagem por paragens desérticas e às vezes para evitar os leões e outros animais selvagens, muitos se encontram com um obstáculo inesperado: a burocracia e o transbordamento dos campos de refugiados. A reportagem é de José Miguel Calatayud, publicada no jornal El País, 23-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Nos inscrevemos há 20 dias e voltamos aqui todos os dias, mas ainda não nos deram comida”, conta, com resignação, Mohamed Hassan, de 82 anos, enquanto segura firmemente a sua neta.
Hassan aguarda sob o sol junto com cerca de 150 pessoas para que abram as portas do ponto de recepção de Dagahaley, um dos assentamentos de Dadaab. Até que não se inscrevem neste ou em um dos outros pontos, os refugiados não recebem a sua primeira ração de comida, que é projetada para durar 15 dias, embora o estado de esgotamento e de desnutrição em que chegam faz com que dure muito menos. A lentidão do processo faz com que cada vez mais haja refugiados esperando ou se instalando diretamente nos arredores dos campos em uma paisagem desértica.
Depois de serem recebidos nesses pontos, eles ainda precisam se registrar oficialmente em outro centro para serem considerados refugiados e receber o cartão que lhes dá o direito de receber comida duas vezes por mês.
Hassan e sua neta, que comem graças à caridade de outros refugiados, demoraram um mês para chegar em Dadaab, partindo de Berbera, na Somália, e realizaram a viagem a pé e às vezes em carroças puxadas por burros. Hassan diz que o maior perigo eram os animais selvagens e que viu dois leões. “Eu queria vir sozinho, mas minha neta começou a chorar e a dizer que não queria ficar lá sem mim, então eu tive que trazê-la”.
Construído em 1991 para acomodar 90 mil pessoas, hoje vivem em Dadaab cerca de 390 mil refugiados, quase todos somalis. É o maior campo de refugiados no mundo. A cada dia chegam cerca de 1.300 pessoas a mais que fogem de um país em guerra desde 1991 e que agora também sofre a pior seca nos últimos 60 anos na região.
Mohamed Omar põe com delicadamente o seu filho mais novo na bacia que serve de balança. O pequeno, de um ano e meio, pesa só seis quilos e parece ter poucos meses de idade.
O filho de Omar é uma das mais de 10 mil crianças que sofrem de desnutrição em Dadaab. “Faz três anos desde a última vez que pudemos colher alguma coisa, e este ano as nossas vacas foram morrendo. Ainda tínhamos um pouco de milho que a minha mãe tinha colhido, mas, quando acabou, decidimos ir embora”, disse Omar, lentamente e com a voz baixa no hospital que os Médicos Sem Fronteiras administra em Dadaab.
Omar, sua esposa e seus seis filhos, dois dos quais estão desnutridos, vêm da cidade somali de Sakow, que está sob o controle de Al Shabab. Essa milícia islamista, que se declarou como um ramo da Al Qaeda no leste da África, quer impor um regime radical naSomália.
“Em maio, pediram-me para pegar em armas e me unir a eles, mas eu me opus. Me deram uma surra”, conta Omar. “Al Shabab não nos deixa levar as crianças à escola ou ao médico, não sei por quê. Em Sakow, não se pode viver”.
Na sexta-feira, Al Shabab declarou que é “100% falso” o fato de haver fome nas áreas sob o seu controle e voltou a proibir a entrada das agências internacionais, apesar de ter levantado essa mesma proibição no último dia 6 de julho, tendo sido imposta há dois anos.
No entanto, as imagens da ala do hospital destinada a casos de desnutrição aguda, que não eram vistas há quase 20 anos, contam uma história diferente. Crianças esqueléticas e nuas jazem nas camas junto a suas mães, vestidas em trajes tradicionais somalis, de cores brilhantes e decorados com flores.
Ahad Ali, de 25 anos, é um delas. Está com seu filho Nasabo Ibrahim, de dois anos. “Eu fui embora por causa da fome, não tínhamos nada para comer. Além disso, Al Shabab tornava a nossa vida impossível, nos espancavam se não aceitávamos nos vestir como eles diziam,” diz Ali sem desviar o olhar do minúsculo corpo do seu filho.
Quando chegou a Dadaab, não lhe deram nem comida nem uma tenda, e por isso ela se instalou nos arredores do campo. “Eu fiz uma cabana com papelões e panos”. Isso há 20 dias. Para muitos, como Ali, o caminho para a ajuda ainda não acabou.
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