Erva-mate: cinco casos de trabalho escravo em 20 dias

Ao todo, 33 pessoas foram libertadas, incluindo quatro jovens com menos de 18 anos de idade. Todas as propriedades flagradas são de cultivo de erva-mate. Uma das ervateiras (Anzolin) inclusive já fez parte da “lista suja”

Por Bianca Pyl

Em apenas 20 dias, a equipe de fiscalização da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Santa Catarina (SRTE/SC), acompanhada do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Polícia Federal (PF), encontrou cinco situações de trabalho escravo contemporâneo em propriedades de erva-mate.

Foram libertadas, ao todo, 33 pessoas, incluindo quatro adolescentes com menos de 18 anos de idade. Uma das ações contou com a participação da Justiça do Trabalho. Os escravizados encaravam quadros desumanos como: “alojamento” instalado em paiol, com banho sendo tomado em cubículo com fezes expostas e alimento roído por ratos, além de barracas de lona e colchões colocados diretamente no chão, mesmo com temperaturas a -1° C, sem água potável para beber, depois de já ter dormido em chiqueiro.

“Trabalhadores são expostos a condições indignas e degradantes. São condições as quais nenhuma pessoa deveria ser exposta. Menos ainda quando o motivo dessa exposição é tão somente aumentar as margens de lucro das indústrias da erva-mate”, avalia Lilian Rezende, que coordenou as fiscalizações. “Esses trabalhadores não estão nesses locais por opção ou escolha. Eles não gostam disso. Pessoa alguma gostaria, por opção própria, de tomar água de fonte duvidosa que também é consumida pelo gado”.

De acordo com ela, os flagrantes ocorridos entre 28 de junho a 18 de julho têm em comum a utilização, por parte das ervateiras, de “empresas” intermediárias de fachada para tentar driblar a fiscalização.

“Orientações dadas aos empresários do ramo durante palestras são usadas para dificultar a fiscalização. As ervateiras passaram a constituir empresas comerciais para contratar mão de obra, mas os proprietários dessas empresas não passam de funcionários das ervateiras”, lamenta a auditora fiscal.

Paiol


Ocorrida em 18 de julho, a última ação libertou pai e filho de condições análogas à escravidão de propriedade no município de Erval Velho (SC). Os dois trabalhavam para a Ervateira Catanduva. “No momento da ação, apenas dois empregados ainda estavam alojados. Havia indícios, porém, de que outras pessoas também viveram no local”, relata Lilian.

O alojamento era um paiol com chão de terra batida e “paredes” com frestas enormes. Os espaço era dividido com galões de óleo para motor e outros materiais armazenados. Os alimentos estavam roídos pelos ratos. Quando chovia, entrava muita água no ambiente e, com os ventos, muita sujeira caía do teto, inclusive sobre a comida a ser preparada.

Fios elétricos e encanamentos foram improvisados para a instalação de um chuveiro em um “banheiro” químico. O “vaso” era apenas um buraco no chão. Tomava-se banho nesse mesmo espaço em que as fezes estavam expostas. “Além disso, o risco de algum acidente elétrico era enorme, pois toda a estrutura era metálica. Havia roupas penduradas sobre o fio elétrico”, detalha a auditora Lilian. Nas frentes de trabalho, não havia banheiro.

As vítimas contaram, em depoimentos, que os recibos de salários e de entrega de equipamentos de proteção individual (EPIs) e ferramentas de trabalho não condiziam com a realidade. O pagamento real era inferior ao que aparecia na documentação e os próprios empregados compravam EPIs e ferramentas por conta própria. A fiscalização solicitou as notas fiscais de compra dos materiais declarados para averiguações complementares.

A Ervateira Catanduva já tinha sido orientada – em mais de uma oportunidade, tanto pela SRTE/SC quanto pelo MPT – com relação aos padrões regulares de trabalho, explica a auditora fiscal. Em 2007, a empresa assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) em que se comprometeu a manter condições dignas aos empregados da extração da erva-mate.

Um agente intermediário que “contratava” a mão de obra não evitou a responsabilização direta da Ervateira Catanduva. A “empresa comercial” em questão era de “fachada” – supostamente dedicada à compra e venda do produto, tinha como “dono” um funcionário da autuada.

Um representante da Ervateira Catanduva chegou a alegar inicialmente que “é muito difícil manter as condições boas porque ´esse pessoal´ [trabalhadores que colhem erva-mate] é muito ´difícil´”. “Esse costuma ser um discurso comum, o de que o empregado da erva-mate é ´difícil´ e não ajuda a manter as condições adequadas. Não é o que se vê nas situações constatadas pela fiscalização: nem o mínimo é assegurado pela empresa”, responde a coordenadora Lilian. Os autos de infração ainda não foram lavrados e os valores das multas e verbas rescisórias estão sendo calculadas.

Justiça


A primeira ação da série de fiscalizações ocorreu em Concórdia (SC) e foi motivada por um pedido do Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (TRT-12). O juiz titular da Vara do Trabalho de Concórdia (SC), Adilton José Detoni, responsável pelo pedido, acompanhou a ação.

A denúncia foi motivada por uma ação trabalhista movida pelos próprios trabalhadores, por meio de um advogado, enquanto ainda realizavam a colheita para a Ervateira Tiecher. Diante diddo, o juiz determinou que fosse realizada uma fiscalização in loco para verificar as condições de trabalho. Na ocasião, foram libertados 10 trabalhadores de condições análogas à escravidão, incluindo um adolescente com menos de 18 anos de idade.

Não havia restrição de liberdade e nem retenção salarial ou de documentos, mas as condições eram degradantes. A temperatura local, no momento da fiscalização, era de – 1° C. Mesmo assim, os empregados dormiam em barracas de lona, abertas. Os colchões eram colocados diretamente no chão. Na parte da frente da barraca, aberta e sem lona, funcionava uma espécie de cozinha improvisada. Uma fogueira era utilizada para cozinhar os alimentos, que eram armazenados de modo totalmente inadequado.

O empregador não disponibilizou água potável ou instalações sanitárias. O mato era usado pelos trabalhadores e a água vinha de um riacho. Um “gato” aliciou os trabalhadores, em Ponte Serrada (SC), e procurava pequenos produtores para comprar a erva-mate no pé e colher. Em depoimento, os trabalhadores disseram que estavam há 50 dias prestando serviços para a ervateira e que chegaram a dormir em um chiqueiro, em outra propriedade.

De acordo com a fiscalização, os empregados trabalhavam por um período de 14 dias e descansavam um final de semana. Recebiam R$ 3 a cada 15kg de erva-mate colhidos. Após a fiscalização, os empregados receberam as verbas rescisórias e dano moral individual da Ervateira Tiecher, totalizando mais de R$ 18 mil. A ervateira também pagou R$ 15 mil referente à dano moral coletivo. A empresa assinou também um TAC, se comprometendo a cumprir a legislação trabalhista e não permitir maus-tratos aos empregados ou ex-empregados, especialmente os resgatados, bem como a não fazer qualquer tipo de ameaça e coação sobre eles. Foram lavrados 20 autos de infração.

Reincidente


No dia 5 de julho, a fiscalização encontrou mais 11 empregados da Ervateira Anzolin – que já figurou na “lista suja” do trabalho escravo – em condições de escravidão no município de Monte Castelo (SC).

As vítimas realizavam o trabalho sem EPIs. A água consumida vinha de um córrego. Os trabalhadores estavam alojados em barracos de madeiras, pequenos e muito sujos, montados em cima de chão de terra batida. Não havia camas e os colchões eram colocados diretamente no chão.

A fiscalização constatou que a Anzolin também se valia de uma empresa comercial de compra e venda de erva-mate criada para mascarar a verdadeira relação de emprego. “A situação ficou clara tanto pela falta de estrutura financeira do suposto empresário quanto pelo fato de que toda a produção ia para a ervateira e mesmo o caminhão de transporte ainda se encontrava no nome da mesma”, explica a coordenadora Lilian.

A SRTE/SC lavrou 25 autos de infração contra a Anzolin. A empresa pagou as verbas rescisórias aos trabalhores, no valor total de R$ 11,4 mil. A Ervateira Anzolin figurou no cadastro de empregadores que exploraram mão de obra escrava, mantido por portaria conjunta do MTE e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), de julho de 2008 a julho de 2010. A inserção na “lista suja” foi motivada pela libertação de 13 trabalhadores que foram escravizados pela empresa.

Galpões


A fiscalização seguiu para Canoinhas (SC) e encontrou dois novos focos de trabalho escravo. No primeiro deles, o sócio da Ervateira Baldo, Paulo Davit Baldo, mantinha cinco trabalhadores, incluindo dois adolescentes (um deles com 15 anos) alojados em um galpão da propriedade rural.

Nenhuma norma trabalhista era cumprida, de acordo com a procuradora do trabalho Geny Helena Fernandes Barroso, que acompanhou a ação. “O ambiente era absolutamente desumano”, acrescenta.

Os empregados declararam que pegavam água no riacho e esquentavam no fogareiro improvisado para tomar banho, devido ao frio. As temperaturas médias na região na semana da libertação variavam entre 3 e 13° C. Os colchões eram colocados diretamente no chão do galpão. A fiscalização lavrou 24 autos de infração contra o empregador, que pagou mais de R$ 12 mil em verbas rescisórias e dano moral individual aos trabalhadores.

Na quinta propriedade, em 7 de julho, a fiscalização retirou mais cinco pessoas (incluindo um adolescente) de condições semelhantes que também estavam alojados em um galpão onde eram armazenados os agrotóxicos. Não havia fornecimento de água potável nem instalações sanitárias. As vítimas prestavam serviços para Antônio Roberto Garretti.

O empregador mantinha, ao todo, 26 trabalhadores na extração da erva-mate sem registro na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e sem EPIs. Após a fiscalização foram lavrados 23 autos de infração e o empregador responsável pagou mais de R$ 19 mil em verbas rescisórias e dano moral individual aos trabalhadores escravizados.

A Repórter Brasil tentou contato com os empregadores envolvidos, mas não conseguiu registrar as posições dos mesmos.

Mudança


A coordenadora Lilian acredita que é preciso uma mudança de atitude por parte dos empresários do setor. “É preciso entender que há necessidade de se profissionalizar; mudar a mentalidade empresarial para conciliar a busca pelo lucro com o respeito à dignidade do trabalhador”.

São poucas as oportunidades de trabalho para os moradores da zona rural da região. “Pela falta de melhores condições de vida nessas cidades, alguns poucos ditam as regras. E a indústria da erva-mate está ditando a regra de que os empregados da extração estão condenados às piores condições de trabalho presenciadas pela fiscalização nas últimas décadas”.

A auditora fiscal do trabalho realça ainda que o trabalho escravo “não está necessariamente vinculado ao direito de ir e vir”. A escravidão contemporânea, completa, “é resultado do descumprimento dos direitos mínimos trabalhistas assegurados pela legislação, e em uma escala tal que torna sua condição, como pessoa e como trabalhador, indigna de ser vivida”.

http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=1916

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