Uma alma assassinada

A renúncia à lei humana mais fundamental, que justifica a tortura, destitui seus atores do título de homens para o de executores anônimos. O mal tem força para contaminar a sociedade e submeter o Estado de direito

Jean-Claude Rolland*

A estranheza onde se mantinha Tito por conta de sua identificação forçada com o delegado Fleury o cortava radicalmente de sua comunidade de acolhida, o isolava absolutamente. Os cuidados, a atenção a ele prestados vinham acompanhados, inevitavelmente, por uma espécie de suspeição de que haveria no seu “delírio” algo de simulacro, uma má vontade, uma recusa de viver; tal suspeição não era infundada, mesmo se lhe faltava lucidez. Pois, de fato, Tito não era mais Tito. Ele era (também) Fleury, e isso não era um fingimento, mas o efeito mecânico de uma intrusão do outro, por meio de suas palavras, reduzidas ao seu poder de penetração. A tortura, que abole a capacidade da linguagem de sublimar o real, abole ao mesmo tempo o poder do eu para lidar com o real e sua violência.

Além de seus efeitos destrutivos sobre os indivíduos – que imperativa e incansavelmente devemos denunciar –, o fato da tortura nos coloca necessariamente perante o seguinte pensamento: existe na língua, em qualquer língua, uma virtualidade de violência, geralmente superada, normalmente apagada, mas que o torturador pode exumar e, no caso de Fleury, sabe exumar, pois com ela – e mostrar isso resume todo o talento deste filme – estamos lidando com uma vontade ardente, metódica, de exterminação do outro e de sua diferença. A tortura é parte de uma ideologia sofisticada e perfeitamente controlada, em relação às pulsões fundamentais com as quais pode vir a trabalhar. A violência mostrada por alguns estados arcaicos da língua – me refiro em primeiro lugar ao que Freud escreveu em 1920, em relação à situação do conflito psíquico ordinário, culminando com a crueldade verbal que o superego pode exercer sobre o eu –, penso ainda no terror que pacientes delirantes experimentam ao ouvirem “suas vozes”, se torna carne na voz do Fleury, instrumentalizando, longe das sevícias, a mente de Tito. Esses estados regressivos do aparelho da linguagem nos deixam acreditar que um longo trabalho de cultura foi necessário para que, de instrumento de dominação em favor do mais forte – e tal deve ter sido em tempos originários –, a língua se tornasse esse instrumento tão precioso para a inteligência e o próprio cimento da solidariedade entre os homens. E, claro, é este progresso que vem arruinar a prática da tortura.

Falar, falar de novo, sem fim, da tortura, para restaurar a língua na sua dignidade e plenitude de ferramenta cultural, esta é a tarefa que nos é exigida – eu deveria dizer: sem querer – e que nos reúne hoje. Batismo de sangue traz para essa questão uma contribuição essencial e nova, a contribuição própria da escritura cinematográfica que devolve à imagem, à semiótica do visual, um lugar que a palavra, por sua própria abstração, não sabe mais preservar. Apraz-me que a nossa reflexão sobre a tortura se enriqueça com esse novo dado. E quando descobri este filme e entendida qual a nova força de testemunho ele representava, pensei que era precisamente isso que havia nos motivado, tão logo perdemos Tito, quando experimentamos o terror de que fosse se perder no esquecimento e na indiferença aquilo que o próprio Tito testemunhara: que na própria continuidade do “curar”, embora nos deparássemos com o irremediável da destruição psíquica, era imprescindível testemunhar, fazer falar tudo o que Tito havia deixado de marcas indiretas daquilo que havia vivido: as notas espalhadas em seus cadernos, as palavras trocadas aqui e ali com quem ele andava. Mas também seus sintomas tais como a observação clínica os revelara, sintomas pelos quais nos convencemos sempre mais de que eram um reflexo da história trágica atravessada pelo sujeito, e não apenas o efeito negativo de uma desestruturação psíquica. Compreender e decifrar todos os detalhes contidos no delírio da vítima como a marca, o rastro das violências sofridas, e reconstruir o conjunto da mesma maneira que se compõe um relato para cobrir um acontecido, tal foi a tarefa que nos cabia para salvar a sua memória, na falta de termos sido capazes de salvar o homem. Daí o título que escolhi para esta apresentação: “Tratar, testemunhar”.

O testemunho como revanche da palavra sobre a impotência imposta pela prova da tortura.

Melancolia aguda

No serviço de emergência, onde na época eu era chefe da clínica, me ligaram um dia para perguntar se aceitaria ver em emergência um residente do convento de La Tourette, um padre estrangeiro que se recusava havia dias a voltar para seu quarto e vagava na floresta adjacente sem beber, comer ou dormir. Chegaram então os três dominicanos acima citados, acompanhando um homem com a roupa de sua ordem, rosto lívido, olhos fixos no chão e perdidos, o corpo desabitado de qualquer vida. O diagnóstico de um estado melancólico hiperagudo era evidente, não era necessário recorrer a uma entrevista que o mutismo absoluto do paciente tornava impensável. Então decidi interná-lo. Nunca desaparecerá da minha memória a imagem estarrecedora que ora se apresentou a nós: o levamos até seu quarto, ele nos seguiu com a resignação de um condenado à morte. Mal tinha entrado, apertou-se contra a parede, mãos no ar como se fôssemos seus assassinos. O assentamos na cama, uma enfermeira entregou-lhe os neurolépticos destinados a atenuar seu terror, ele os recebeu como um veneno que iria pôr fim aos seus dias …

A cena, com sua gestualidade trágica, repetia uma cena vivida anteriormente, a denunciava, dela prestava testemunho? Que o delírio, aqui, falava o que o homem, pela sua voz, calava? Que cuidados que íamos prestar-lhe e cujo resultado já parecia improvável, dada a gravidade da situação, não poderiam, em hipótese alguma, ser dissociados do testemunho do qual, pela exposição rudimentar que ele nos dirigia, nos tornava o depositário?

Observo a esse respeito que a desconfiança ilimitada que Tito tinha logicamente construído contra seus torturadores vinha sendo reproduzida literalmente em relação aos seus amigos e aos atendentes no hospital. Tito nunca mais foi capaz de eliminá-la. Daí sua impossibilidade de ser acessível ao tratamento. A ruptura definitiva do vínculo que liga o ser com a sua comunidade é o que, in fine, é alvo do torturador.

A cada retomada dessas manifestações relacionadas à memória de Tito (será que podemos falar em comemorações?), como esta que nos reúne hoje, algo se aprofunda ou se autentica. Mencionei anteriormente o deslocamento temporal exigido para que a compreensão teórica dos efeitos psicológicos da tortura se encarne em verdadeira empatia com a vítima; do mesmo modo cada retomada traz à tona um aspecto que anteriormente, aspectos provavelmente então mais urgentes relegavam para segundo plano. Por exemplo, nos pareceu essencial, inicialmente, concentrar a exclusividade de nossa pesquisa sobre a psicologia da vítima, por exigência epistemológica. O artigo “Um homem torturado”, publicado na Nova Revista de Psicanálise, atentou-se à descrição pormenorizada – o quanto possível – dos danos psíquicos deixados em Tito pela prova da tortura, danos duradouros evoluindo independentemente das suas causas, tais como a identificação ao agressor, a dissolução da identidade, a despersonalização. Certo, o contexto histórico, sociológico da tortura foi levado em conta, mas somente dentro dos exatos limites em que esse contexto iluminava a violência das sevícias: por exemplo, a degradação do sistema da língua, corroída pela prática da tortura; ou, ainda, na medida em que sintomas subjetivos podiam especificamente explicar alguns aspectos latentes desta situação, penso à maneira como a cena no quarto do hospital revelou o controle absoluto que o torturador tinha conquistado sobre sua vítima.

Ao assistir ao filme, que traz presente essa problemática subjetiva, uma coisa me tocou, mexeu comigo: é a luz quase ofuscante que lança sobre a psicologia do torturador. Digo “psicologia”, mas a palavra não tem lugar aqui: deveríamos dizer imediatamente, por causa do excesso desmedido em que isso funciona, a “loucura” do torturador. De fato, na época dos primeiros testemunhos, esta pergunta foi logo a de todos os observadores da situação. A personalidade do delegado Fleury espantou a todos nós. Uma associação de cristãos tentou comunicar-se com ele e um dossiê foi produzido. Nele podemos descobrir as réplicas insolentes, humilhantes, megalomaníacas deste ideólogo convencido da sua superioridade moral, da grandeza da sua missão e da… degenerescência de suas vítimas.

Sem nenhuma concessão, o filme mostra a energia implacável que move Fleury e sua equipe, uma obstinação que se desenvolve sem parar desde o assassinato de Marighella, na caça infernal aos seus partidários e no assassinato de alma de Tito. Nisso, a imagem do filme revela a ligação de tal atitude para com a racionalidade política e também a sua estranheza: parece que esses homens se inebriaram do poder que tinham, a si mesmos outorgado, ao se autorizar o uso da tortura; parece que, igual ao aprendiz de feiticeiro da fábula, a ferramenta que eles forjaram para cumprir sua missão, longe de ficar ao seu serviço, tornou-se instrumento de sua própria subjugação. Eu não falaria tão logo de um “sadismo” que os ultrapassaria, não recorreria com demasiada facilidade à interpretação psicológica, pois insisto: não estamos mais na psicologia. Mas diria que a renúncia à lei humana mais fundamental – que preside a tortura – destitui seus atores do seu título de homens para o de executores anônimos e sem alma. Intelectuais franceses, a começar por Pierre Vidal-Naquet, identificaram no uso da tortura, durante os acontecimentos da Argélia, o fim do Estado de direito e, com toda a razão, alertando contra a contaminação cancerígena de tal transgressão e o risco de sua expansão ao país inteiro.

Pensar que o torturador é instrumentalizado por aquilo que ele cria não é o suficiente para tirar dele a culpa. Mas, talvez, surja agora interesse científico para abordar a questão da tortura desta forma. Seria enfrentar este mal, que afeta em primeiro lugar a comunidade humana.

*Jean-Claude Rolland é psicanalista e cuidou de frei Tito na França. Integra a Associação Psicanalítica da França e é autor de Curar do mal de amor, entre outros livros.

http://impresso.em.com.br/
ESTADO DE MINAS, Caderno Pensar, 18-6-2011. Enviada por José Carlos.

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