Economia tende a crescer sem escravidão, aponta especialista

A emancipação de vítimas submetidas à escravidão propiciará o que o norte-americano Kevin Bales chama de “dividendo da liberdade” – impulso para o crescimento econômico decorrente da dinamização de mercados locais

Por Maurício Hashizume

Para Kevin Bales, erradicação do trabalho escravo pode proporcionar benefícios econômicos (MH)

A erradicação do trabalho escravo não é apenas um desafio de caráter civilizatório, no sentido da garantia efetiva de direitos humanos fundamentais. A libertação e a emancipação das vítimas atualmente submetidas a esse tipo de crime poderá ter como reflexo, conforme prognostica o sociólogo norte-americano Kevin Bales, o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) – a soma de todas as riquezas geradas por um país.

É o que o próprio Kevin – que vem a ser um dos mais reconhecidos especialistas em trabalho escravo contemporâneo no mundo – denomina como “dividendo da liberdade”. A participação, interação e contribuição ativa de trabalhadores livres dessas formas criminosas de exploração tendem a dinamizar a economia, completa o sociólogo, um dos palestrantes do IV Seminário Internacional do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, realizado no último dia 19 na capital nacional.
Aos representantes de empresas presentes no evento, o recado dado por ele foi o de que esforços e investimentos direcionados para acabar com o trabalho escravo não devem ser encarados apenas como meros gastos na onda da responsabilidade social, mas como uma forma de fomentar o conjunto das atividades econômicas e, assim, consolidar um cenário propício a retornos maiores para os próprios empreendimentos.

O impulso gerado pela libertação de trabalhadores em condições análogas à escravidão seria particularmente importante, segundo a tese de Kevin, para dinamizar economias locais, que se beneficiariam com a ativação de um mercado consumidor são e permanente, formado por ex-vítimas da escravidão que conseguiram superar o jugo da vulnerabilidade.

Como parte dessa abordagem mais econômica, Kevin apresentou um gráfico comparando a queda do preço de um escravo ao longo do tempo e o crescimento da população global. De acordo com os cálculos dele, o preço médio de um escravo foi, por 4 mil anos, US$ 40 mil, em valores corrigidos para cada época. Hoje, o preço médio de um escravo é de US$ 90.

Empurrão
De acordo com estimativa da organização não-governamental (ONG)Free The Slaves, presidida pelo sociólogo norte-americano, o número total de pessoas submetidas à escravidão contemporânea no mundo chega a 27 milhões. Seguindo a linha de raciocínio de Kevin, essa quantidade de escravizadas e escravizados é relativamente pequena perto da somatória de 7 bilhões que vivem espalhados pelo mundo.

Tanto esse dado quanto as projeções das vantagens econômicas obtidas por meio da exploração de mão de obra escrava (que são irrisórias perto das cifras astronômicas em escala global) foram utilizadas como base para uma aposta ousada e otimista feita pelo especialista. “A escravidão está na iminência de acabar”, declarou aos participantes do seminário. “Se dermos um grande empurrão, o trabalho escravo pode ser erradicado”.

Um dos meios para tornar esse “empurrão” possível, na visão dele, seria por meio de um acordo transfronteiriço de que é preciso acabar de uma vez por todas com esse tipo de violação de direitos humanos. A conta básica a ser paga inicialmente, aponta Kevin, seria de pelo menos US$ 400 para cada pessoa escravizada, ou seja, algo em torno de US$ 10,8 bilhões. “Pode ser que seja preciso mais do que isso. Mas, se levarmos em conta que estamos tratando de uma medida em termos globais, é muito pouco”.

Em seu livro “Ending slavery” (Acabando com a escravidão), Kevin faz referências ao Brasil como um país que vem proporcionando exemplos práticos do que pode ser feito contra o trabalho escravo. “Iniciativas como o Pacto Nacional são um sinal de que o Brasil pode assumir o papel de liderança global”, avaliou. Trata-se, complementou, de um grande desafio em aberto.

“A escravidão existe desde o início da humanidade. Não houve até hoje nenhum dia sequer, em nenhum país da face da Terra, sem trabalho escravo. Se o Brasil disser ao mundo que não quer mais a escravidão, será um feito extraordinário que completará o que já vem sendo feito”, concluiu.

Política
No seminário, os signatários do Pacto Nacional também foram convocados a concentrar esforços com vistas à aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que prevê o confisco de propriedades em que houver exploração de trabalho escravo. Para aumentar a pressão em defesa da proposta, foram sugeridas campanhas que possam ser disseminadas por empresas e associações através de seus canais capilares.

“A aprovação [da chamada PEC do Trabalho Escravo] não é responsabilidade das empresas [porque depende dos parlamentares, uma vez que a matéria está parada à espera de votação no Plenário da Câmara dos Deputados desde agosto de 2004]. Mas a ampliação da visibilidade do tema, sim”, comentou Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil, que faz parte do Comitê de Coordenação e Monitoramento do Pacto Nacional. Todos os signatários serão chamados a contribuir para que a punição a quem pratica esse tipo de crime seja mais dura. Materiais serão disponibilizados e encontros temáticos internos se realizarão nos próximos meses para subsidiar as empresas interessadas.

Representantes do governo federal que compareceram ao seminário também reiteraram a importância da aprovação imediata da PEC do Trabalho Escravo. Ramaís de Castro Silveira, que está à frente da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, manifestou o “apoio explícito e enfático” à expropriação de terras de escravagistas.

O secretário enalteceu ainda a colaboração entre a sociedade civil e o poder público tanto no âmbito da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) como nas esferas mais regionais. Na esteira do processo de crescimento econômico com inclusão social experimentado pelo país nos últimos anos, não é possível aceitar que pessoas sejam exploradas em condições degradantes, sem os princípios de dignidade assegurados.

Vera Albuquerque, que assumiu o comando da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (SIT/MTE), também repisou a centralidade da aprovação da PEC 438/2001. Os resultados da firme atuação na área repressiva (por meio dos grupos especiais móveis e das equipes de fiscalização rural dos Estados) foram sublinhados pela secretária durante o encontro internacional, assim como o cadastro de empregadores flagrados, a chamada “lista suja” do trabalho escravo.

“Lista suja
Assinada em conjunto pelo MTE e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) e publicada no Diário oficial da União (DOU) no último dia 13 de maio, a Portaria Interministerial nº 2 de 2011 foi citada por diversos integrantes das mesas do seminário como mais um passo no sentido de fortalecimento da “lista suja”. A medida revoga a antiga Portaria MTE nº 540, de 19 de outubro de 2004 e estende a responsabilidade pelo acompanhamento da relação de escravagistas à SDH/PR.

A inclusão na “lista suja” é consequência da finalização de um processo administrativo com base em análise minuciosa, na qual os relatórios de fiscalização são revisados e avaliados quanto à sua sustentabilidade jurídica, explicou Marcelo Campos, que atuou nos últimos anos como coordenador das equipes do grupo móvel da SIT/MTE.

Não são poucas as contestações jurídicas à inserção de nomes de pessoas físicas e jurídicas à “lista suja”, mas Marcelo aponta que parte substantiva dos embates têm sido vencidos pelo governo federal, mantenedor do cadastro. Segundo ele, já existe um entendimento formado no Poder Judiciário, que tende a se consolidar cada vez mais, de que se trata de um instrumento de interesse público que cumpre a transparência exigida do Estado.

Mesmo assim, empregadores continuam questionando a relação divulgada pelo MTE até mesmo de forma preventiva, ainda com o processo administrativo em andamento. A Confederação de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) protocolou e mantém inclusive uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra a “lista suja” no Supremo Tribunal Federal (STF).

Além do risco de naufrágio dos negócios com companhias signatárias do Pacto Nacional, os empregadores que constam na “lista suja” passam a enfrentar restrições de crédito junto a bancos públicos e privados, por obra de portarias complementares e outras normativas adotadas pelo setor privado. “Nada mais eficaz do que uma sanção econômica”, completou Marcelo.

O cadastro cumpre dispositivos da Constituição Federal de 1988 como o respeito à dignidade humana, o valor social do trabalho e a função social da propriedade, conforme salientou o subprocurador-geral do Trabalho, Luis Antônio Camargo de Melo. Ele lamentou que ainda existam produtores rurais que não sejam completamente dispostos a atender à legislação e que ainda resistem em “separar o joio do trigo”, isto é, a punir de modo severo os criminosos e valorizar aqueles que não contribuem para o atraso.

A defesa enfática da “lista suja” foi uma resposta a recente Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a Advocacia-Geral da União (AGU) e a companhia sucroalcooleira Cosan – que acertou fusão com a Shell – na qual o órgão do governo federal se compromete a não recorrer mais para a inclusão da empresa na “lista suja” mediante adoção de providências e melhorias. O acordo aguarda por ratificação da Justiça do Trabalho.

Houve apelos diretos para que a AGU não faça mais acordos em cima de demandas, sem ouvir o conjunto de atores engajados no combate à escravidão. Marcelo, do MTE, reiterou que as articulações contrárias ao funcionamento do cadastro são muito fortes, pois envolvem interesses de grupos poderosos. “Não pode haver risco de recuo”, acrescentou.

“A portaria interministerial [da ´lista suja´] não prevê que possamos transigir com o cadastro”, completou o secretário Ramaís, da SEDH, que citou o risco de condenação de escravagistas por “dumping social”, que inclusive pode ameaçar a produção geral de um país, caso se opte pela negligência.

Durante o evento, também foi lançado o compromisso internacional para a adesão de empresas de fora do país ao Pacto Nacional. Luiz Machado, do Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, frisou que o custo da coerção retira anualmente US$ 21 bilhões que deveriam ser destinadas às vítimas de exploração laboral e sexual no mundo.

Há registros de alianças transnacionais em prol da abolição do século XVII, recordou Sílvio Albuquerque, chefe da Divisão de Direitos Sociais do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Nesse sentido, ele pincelou passos importantes dados pelo Brasil – especialmente quando assumiu oficialmente a existência do problema do trabalho escravo em 1995 – e cobrou o exercício do multilatealismo de países ricos como os da Europa e os Estados Unidos quanto a esse e outros temas correlatos como as migrações.

Para ele, contudo, não há como erradicar o trabalho escravo no Brasil sem enfrentar o problema da discriminação racial. O que se coloca, na visão do integrante do Itamaraty, é a necessidade premente do aprofundamento de políticas afirmativas. “Não entender que o escravo no Brasil é majoritariamente negro é fugir da realidade”, encerrou o diplomata.

 

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