“Eu era talvez a primeira pessoa a pisar naquele castelo no ar. Há cinco milhões de anos talvez o último troglodita tivesse olhado deste mesmo ponto, onde outrora devia ter existido uma montanha. E que depois, erosada, se tornara uma área vazia onde depois de novo se tinham erguido as cidades que por sua vez se tinham erosado. Hoje o chão é amplamente povoado por diversas raças.
De pé à janela, às vezes meus olhos descansavam no lago azul que talvez não passasse de um pedaço de céu. Mas cansava-me logo, pois o azul era feito de muita intensidade de luz. Meus olhos ofuscados iam então repousar no deserto nu e ardente, que pelo menos não tinha a dureza de uma cor. Daí a três milênios o petróleo secreto jorraria daquelas areias: o presente abria gigantescas perspectivas para um novo presente.
Por enquanto, hoje, eu vivia no silêncio daquilo que daí a três milênios, depois de erosado e de novo erguido, seria de novo escadas, guindastes, homens e construções. Eu estava vivendo a pré-história de um futuro”.
(Clarice Lispector. A Paixão segundo G.H.. 18ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. p.110-1).