Raquel Júnia*
Adital – De um lado, grandes empreendimentos como a TKCSA, no Rio de Janeiro e Belo Monte, no Pará. De outro, a população afetada e movimentos sociais que criticam os impactos socioambientais das obras, com sérios riscos à saúde e ao meio ambiente. E o poder público, de que lado está ?
Antes que se sinta o cheiro da fumaça dos altos fornos de uma siderúrgica ou se veja as turbinas funcionando de uma usina hidrelétrica, um caminho deve ser percorrido pelas empresas ou governos para conseguirem a autorização para os empreendimentos funcionarem. Pelo menos é assim que deveria ser de acordo com a legislação ambiental brasileira, para que se garanta que atividades e empreendimentos impactem negativamente o mínimo possível a população e o meio ambiente. Entretanto, no caso de obras como a da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, e a ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), no Rio de Janeiro, moradores, movimentos sociais e pesquisadores denunciam que as empresas responsáveis pelos empreendimentos pressionam os governos para pegarem “um atalho”, o que, antes mesmo do pleno funcionamento e instalação das empresas, já vem prejudicando as populações locais e o meio ambiente.
No ultimo dia 7 de fevereiro, um seminário em Brasília reuniu cerca de 300 participantes, entre eles povos indígenas, ribeirinhos, pesquisadores e movimentos sociais contrários à construção de Belo Monte. Os manifestantes entregaram à Presidência da República um abaixo assinado com mais de 500 mil assinaturas contra a obra. Recentemente, a empresa Eletronorte, responsável pela construção de Belo Monte, recebeu uma licença parcial do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para começar a instalar o canteiro de obras do empreendimento, ação questionada inclusive pelo Ministério Público Federal no Pará. “Não existe em lugar nenhum na legislação, a possibilidade de se criarem parcelas da licença de instalação. Como a legislação não prevê essa licença parcial, o Ibama fica sem uma base para dizer o que ele pode ou não exigir. Ele [o Ibama] não exige tudo porque diz que não está dando licença completa. E não há uma regra interna do Conama [Conselho Nacional de Meio Ambiente], ou seja de quem for, que diz quais são os elementos necessários para que ele dê essa parcial. Por isso, ele fica com um grau de arbítrio muito grande e nós não temos como controlar”, critica o procurador do Ministério Público Federal no Pará, Ubiratan Cazetta.
No Rio de Janeiro, no final do ano passado, a TKCSA, com a autorização da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEA) e o governo do estado do Rio de Janeiro, descumpriu um acordo firmado entre o Ministério Público Estadual e o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) que condicionava o funcionamento do segundo alto forno da siderúrgica à realização de uma auditoria. A auditoria foi determinada diante do fato de já terem ocorrido problemas de poluição ambiental em Santa Cruz, provenientes da entrada em operação do primeiro alto forno do complexo siderúrgico. No dia 26 de dezembro, uma forte poluição atingiu as casas da região. “A TKCSA tem um discurso de que só houve poluição no dia 26 de dezembro, mas quando você vai lá, você vê que todos os dias há poeira no ar, partículas prateadas. No dia 26 houve mais, mas a poluição lá é constante”, denuncia Karina Kato, pesquisadora do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), instituição que vem acompanhando os impactos do empreendimento.
Para o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz) e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental Marcelo Firpo, pressões econômicas e políticas têm apressado o licenciamento de obras de grande porte, como a TKCSA e Belo Monte, com sérios impactos para a saúde da população e o meio ambiente. “Existe uma série de grandes empreendimentos no setor hidrelétrico, siderúrgico, de mineração, de infraestrutura – como a transposição do Rio São Francisco e a construção de rodovias – extremamente complexos e que podem gerar vários impactos à saúde da população, dos trabalhadores e dos ecossistemas. A velocidade com que o licenciamento vem sendo dado em função das pressões econômicas e políticas tem passado por cima da seriedade e do aprofundamento da análise desses impactos à saúde e também outros impactos socio-ambientais, que também terão repercussões sobre a saúde”, analisa.
O pesquisador considera também que as instituições responsáveis por licenciar e fiscalizar as obras muitas vezes se mostram vulneráveis. “Em várias situações existe uma vulnerabilidade institucional e um déficit de aplicação de políticas públicas que vem permitindo que principalmente grandes empreendimentos estejam numa velocidade de licenciamento que é inadequada em relação aos possíveis impactos sobre as gerações atuais e futuras”, reforça.
Como funciona o licenciamento
A resolução 001 do Conama cita 18 atividades que são consideradas “modificadoras” do meio ambiente, e que, portanto, precisam de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (Rima) para que tenham uma licença prévia de funcionamento. Entre as 18 atividades estão estradas, ferrovias, portos, aeroportos, linhas de transmissão de energia, hidrelétricas, complexos e unidades industriais e agroindústriais, como as siderúrgicas. O Conama foi instituído pela Lei 6.938/1981 , que também implantou a política nacional de meio ambiente. “Essa lei foi um marco histórico e divisor de águas na política ambiental do Brasil. É a partir dela que se constitui, além dos estudos (de impacto ambiental), o próprio Conama, e o sistema de regulamentação no nível federal e as suas implicações nos níveis estadual e municipal”, explica o pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Alexandre Pessoa.
Estão previstas na legislação três fases de licenciamento para obras consideradas de impacto – a licença prévia, a licença de instalação e a licença de operação. Em cada uma dessas etapas, o responsável pelo empreendimento pode ser obrigado a cumprir uma série de exigências – as chamadas condicionantes – que são ações do empreendedor para minimizar os impactos da obra na região. Colocar em prática um plano de qualificação da mão de obra local ou ampliar a capacidade da rede coletora de esgoto são exemplos de duas ações que podem fazer parte das condicionantes que a empresa responsável pela obra precisa cumprir. A resolução 001 do Conama prevê também que sejam realizadas audiências públicas para informações sobre o projeto, seus impactos ambientais e discussão do Rima. E, de acordo com a resolução 009 , também do Conselho, as audiências devem ser realizadas sempre que o órgão ambiental julgar necessário, ou quando for solicitado por entidade civil, pelo Ministério Público, ou por 50 ou mais cidadãos. A mesma resolução afirma ainda que, caso a audiência pública seja solicitada e o órgão ambiental não a realize, a licença concedida não terá validade.
Apesar dos avanços na legislação, o pesquisador Alexandre Pessoa considera que as audiências públicas são usadas, muitas vezes, apenas para referendar os grandes empreendimentos. Ele alerta sobre a importância do controle social da população afetada nos passos do licenciamento. “O papel do controle social, que é uma prerrogativa legal, que diversas legislações colocam como um elemento necessário, deve ser viabilizado e o estado tem que ser permeável a isso, exatamente para que o detalhamento e as alternativas a determinados empreendimentos sejam consideradas nos estudos. Essa situação já faz parte da história dos grandes empreendimentos no Brasil e dos interesses do capital internacional e o cenário atual ratifica essa tendência histórica de dificultar o controle social. E isso coloca em relação direta o interesse público que deveria ser pauta do Estado e os interesses privados de uma burguesia nacional que é extremamente patrimonialista e que requer grande acúmulo de capital em detrimento da saúde ambiental”, analisa.
No caso de Belo Monte, há uma forte reclamação dos indígenas da região justamente com relação à participação no processo de decisão sobre a viabilidade da hidrelétrica. De acordo com a pesquisadora da Universidade Federal do Pará e antropóloga Sônia Magalhães, os direitos dos povos indígenas previstos na Constituição Brasileira estão sendo desrespeitados. “Os indígenas tem uma legislação específica nacional e internacional que não foi respeitada e isso inclusive é objeto de ação do Ministério Público, já que não houve as oitivas indígenas conforme está recomendado na legislação. É uma violação clara de direitos”, denuncia.
De acordo com a professora, também houve irregularidades nos processos das audiências públicas realizadas para a população em geral. Sônia critica o fato de apenas quatro audiências terem sido feitas, ambas em núcleos urbanos e sem que a população estivesse esclarecida sobre o assunto em discussão. “Até 48 horas antes de começar a audiência havia estudos referentes a Belo Monte sendo disponibilizados na página eletrônica do Ibama. Mas na página do Ibama não quer dizer que está disponível, especialmente para essa população que não tem acesso a esse meio de informação”, questiona.
A pesquisadora explica que parte da população que será atingida por Belo Monte não está nos núcleos urbanos e que a dificuldade de locomoção na região é grande, como ocorre em toda a Amazônia. Ela conta que houve uma iniciativa de se divulgar um documento impresso sobre Belo Monte nos núcleos urbanos onde foram realizadas as audiências, entretanto, a medida não foi suficiente para garantir que a população estivesse informada. “Foi feita uma brochura que eu qualifico de midiática, que foi mais para fazer a divulgação do empreendimento e menos para fazer o esclarecimento dos estudos de impacto. Além disso, essa brochura foi distribuída apenas nos núcleos urbanos e mesmo essa população não tem uma tradição de interpretar os acontecimentos a partir de documentos escritos. Em geral a forma de ela ter acesso à informação sobre os acontecimentos e discuti-los é pela forma oral”, relata.
A pesquisadora faz parte de um painel de especialistas vinculados a diversas instituições de ensino e pesquisa que analisaram o Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte e identificaram “graves problemas e sérias lacunas” no estudo. Entre as constatações, está a inadequação do conceito de ‘atingido’ utilizado no EIA. Sônia explica: “Essa barragem tem uma singularidade: além de inundar, ela seca um trecho importante do rio, de mais de 100 quilômetros e essa população que está à beira do leito do rio, não apenas do rio Xingu, mas também de um dos seus mais importantes afluentes, não foi considerada como afetada pelo empreendimento. Só foi considerada como afetada a população que está na área que será inundada. E esse conceito não responde às especificidades da barragem de Belo Monte. Esse é um grande problema porque no momento em que se utilizam conceitos inadequados para dar conta da realidade, a realidade foge da perspectiva analítica”, critica. Para a pesquisadora, as conseqüências dessa desvirtuação de conceitos são muito graves. “Num caso como este, isso significa não considerar uma parcela muito grande da população entre os atingidos. E as consequências são muito amplas porque dizem respeito à violação de direitos, à subestimativa de impactos e também à potencialidade de conflitos sociais que essa não consideração oportuniza”, alerta.
Falta controle social também na TKCSA
A falta de participação da população nas decisões sobre os empreendimentos de impactos ambientais se repete no caso da ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico, em Santa Cruz, no Rio de Janeiro. A TKCSA possui a licença provisória e também a licença de instalação, mas não a licença de operação, que é a ultima fase no processo de licenciamento. Moradores da região criaram um movimento para tentar impedir que a empresa continue a funcionar. “As audiências públicas foram esvaziadas e principalmente a empresa trazia pessoas de fora da região para apoiar. Há denúncias inclusive de que a empresa pagava essas pessoas para estarem na audiência pública. As perguntas dos participantes deveriam ser enviadas para a mesa por escrito e eles escolhiam quais seriam respondidas. Quando os moradores questionavam alguma coisa, eles enrolavam, usavam uma linguagem científica que não era acessível aos pescadores e moradores e não respondiam”, conta Karina Kato.
Questionado sobre as críticas a respeito do funcionamento das audiências públicas para grandes empreendimentos, o Inea respondeu, por e-mail, que de fato esse instrumento tem apresentado problemas. “Infelizmente, nos últimos anos, as audiências públicas realizadas em nosso estado não têm cumprido o seu relevante papel que é de esclarecimento, transparência e participação social, já que muitas vezes tem sido interpelada por grupos de interesses distintos que não permitem que as audiências transcorram de forma civilizada, o que não significa dizer que elas ‘serviriam apenas para referendar a implementação já definida da obra’, respondeu a diretora da Diretoria de Licenciamento Ambiental (Dilam) do Inea, Ana Cristina Henney. De acordo com ela, o Inea está reformulando os procedimentos de realização das audiências públicas. “Tais reformulações têm contado com a participação da Ceca [Comissão Estadual de Controle Ambiental], do Ibama, do Crea [Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia], do Ministério Público Estadual, além do Inea, cujo resultado final será a edição de uma Resolução do Conama, que, a propósito, está em vias de conclusão”.
De acordo com os pesquisadores consultados, o estudo e o relatório de impacto ambiental da TKCSA também apresentam uma série de inconsistências. “O Rima é altamente deficiente, e essa deficiência é de tal gravidade que considero que somente após a apresentação de um novo estudo de impacto ambiental a licença eventualmente poderia ter sido dada e não nas condições inicialmente colocadas”, afirma Marcelo Firpo. Alexandre Pessoa lembra ainda que a própria Fiocruz realizou um estudo que mostra que há graves lacunas no relatório de impacto ambiental da TKCSA no que se refere à saúde das populações localizadas no território, em especial das comunidades de baixa renda situadas próximas ao complexo siderúrgico. “As últimas ocorrências em termos de poluição atmosférica no território de Santa Cruz não podem ser consideradas como acidente e sim como consequência de um licenciamento que não levou em consideração a consecução de estudos ambientais consistentes, situação que passa a ser nociva para a saúde pública e ambiental”.
Agilidade X Consistência na Avaliação dos Impactos Ambientais
Caso o projeto de Belo Monte se concretize, a usina será instalada no rio Xingu, a 40 quilômetros da cidade de Altamira, no Pará. Os dois reservatórios da usina contabilizarão no total 516 Km2. A licença parcial que o consórcio Norte Energia recebeu do Ibama autoriza a empresa a instalar canteiro de obras e alojamentos com a autorização de desmatamento de 238 hectares para construir as instalações. O Ministério Público Federal questionou a emissão da licença e há um processo em curso para que a instalação do canteiro seja suspensa. Para o promotor Ubiratan Cazetta, o processo de licenciamento da usina apresenta vários problemas, já que a empresa não cumpriu as condicionantes apontadas pelo Ibama para que a obra desse prosseguimento. “Algumas das coisas que deveriam ter sido estudadas desde o início para a concessão da licença prévia o Ibama entendeu que não eram necessárias, que daria para conceder a licença prévia e os estudos seriam feitos antes da licença de operação. Mas o correto seria cumprir todas as condicionantes que foram exigidas, demonstrar que já tinham sido preenchidos todos os pré-requisitos para, aí sim, obter a licença de instalação, fazer o canteiro e já ir para a obra”, explica.
Questionado sobre o fato de o órgão ter emitido uma licença parcial, o Ibama respondeu que o procedimento já foi considerado legal em outras situações. “O Ibama analisa processos de licenciamento por solicitação dos empreendedores. Nesse caso o pedido de licença era para os canteiros e instalações afins. A Licença de Instalação da Usina ainda está sob avaliação. Em outras ocasiões a emissão de licença para atividades associadas foi contestada, mas a justiça considerou legal o procedimento”, respondeu o órgão, por e-mail, via assessoria de imprensa.
O instituto alega ainda que 24 das 40 condicionantes – ou seja, ações que a empresa deveria colocar em prática para dar prosseguimento à obra – já foram cumpridas. “Foram cumpridas 24 condicionantes que tinham relação com essa etapa do licenciamento, entre elas, ações antecipatórias nas áreas de saúde, educação e saneamento a fim de preparar a região para receber o empreendimento e o correspondente afluxo migratório que deverá envolver cerca de mil pessoas nesta etapa. Foi avaliado que as demais 16 condicionantes não eram pertinentes ao presente pedido de Licença de Instalação por não estarem associadas aos impactos previstos para essas instalações específicas. Mas o empreendedor terá que cumprir as condicionantes previstas na Licença Prévia para que o Ibama autorize a construção da hidrelétrica”, afirmou o órgão.
Ubiratan critica, no entanto, a forma como as condicionantes foram elaboradas. “O que impressiona, e impressiona mal, é que essas condicionantes foram feitas na licença prévia de tal forma genéricas que permite que o Ibama mude essas condicionantes cada vez que as analisa. Então, por exemplo, está escrito lá: resolver a questão do saneamento no município de Altamira. Como é uma condicionante muito genérica, na hora em que vamos discutir , o Ibama fala: ‘mas isso tem que ser feito em dez anos’. Só que não se colocou na condicionante claramente quais eram os prazos e resoluções. Então, da forma como isso foi utilizado em Belo Monte e em outros casos de grandes empreendimentos, a redação das condicionantes permite leituras diferentes”, observa. De acordo com o promotor, a cidade de Altamira, no Pará, que sofrerá grandes impactos já com a instalação do canteiro de obras, não está preparada para o empreendimento. O Ibama diz que nessa fase cerca de mil trabalhadores serão atraídos para a região, mas, de acordo com o promotor, cerca de 8 mil pessoas já se deslocaram para a cidade desde que o empreendimento conseguiu uma licença prévia, em fevereiro de 2010. “Com o início do canteiro e com o começo da ideia de que irá contratar alguém, obviamente esse volume de pessoas irá aumentar significativamente. Qual é o problema disso? É uma cidade que, independentemente da obra, já tem problemas crônicos e seríssimos na área hospitalar, tem um péssimo serviço de saúde pública, problemas sérios de habitação, de saneamento básico”, afirma.
A resolução 001 do Conama descreve também quais são as atividades técnicas que minimamente devem ser desenvolvidas pelo Estudo de Impacto Ambiental: “Análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos potenciais impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais”. Para Alexandre Pessoa, tem havido, no entanto, uma flexibilização na legislação ou para que o estudos e relatórios de impacto ambiental não abranjam de forma detalhada todas essas atividades ou então para que sejam realizados apenas relatórios ambientais simplificados. O pesquisador afirma que existe um discurso muito forte por parte da mídia comercial e também por parte dos governos da necessidade de agilidade nos processos de licenciamento de grandes empreendimentos considerados essenciais para o desenvolvimento do país. E isso em detrimento da consistência dos estudos e exigências ambientais. “A agilidade do licenciamento de fato é necessária e se dá a partir do momento em que os órgãos de controle ambiental, enquanto instituições públicas, nas esferas federal, estadual e municipal tenham um quantitativo adequado de profissionais capacitados para que possam avaliar todas as etapas de licenciamento e realizar as atividades permanentes de fiscalização. No caso do Rio de Janeiro, a própria criação do INEA, a partir da união da FEEMA [Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente] com outros órgãos estaduais trouxe a promessa do fortalecimento do controle ambiental, enquanto política pública. O fato é que o discurso de agilização e flexibilização da legislação ambiental não pode em hipótese nenhuma ferir os critérios que esses estudos ambientais precisam ter em termos de abrangência e profundidade. Essa flexibilização está sendo exemplificada inclusive com novas legislações casuísticas, que tendem a acelerar através dos estudos ambientais simplificados obras que pela sua magnitude causam riscos potenciais ao ambiente e à saúde da população, comprometendo a sustentabilidade socioambiental”, problematiza.
A pressa no licenciamento ambiental também parece existir no caso da TKCSA. A Secretaria de Estado do Ambiente (SEA) usou como justificativa para permitir o funcionamento do segundo alto forno da siderúrgica um laudo emitido por uma empresa de auditoria que, de acordo com reportagem publicada no próprio Inea no dia 21 de dezembro de 2010 “atestou como seguras as condições de funcionamento do equipamento”. Dessa forma, a Secretaria contrariou o acordo firmado entre Ministério Público Estadual e o Inea, que condicionava a continuidade dos trabalhos na siderúrgica a uma auditoria plena que concluiria os trabalhos em até 60 dias. “Esse acordo entre o Inea o Ministério Público foi desconsiderado pela Secretaria do Ambiente, em razão de recurso interposto pela TKCSA em que ela apontava que a partilha do alto forno 2 não traria nenhum tipo de problema”, explica o promotor de Justiça Marcus Leal, titular da 3ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva do Meio Ambiente do Rio de Janeiro. Entretanto, no dia 26 de dezembro, pouco tempo depois, a população de Santa Cruz novamente se deparou com uma poluição além do habitual no meio ambiente. De acordo com Marcus Leal, o episódio é grave e está sendo apurado.
O Inea informou “que não descumpriu qualquer acordo com o Ministério Público, já que não autorizou a operação do forno 2”. De acordo com a diretora do órgão, Ana Cristina Henney, “esta decisão foi tomada, à época, pela SEA baseada na auditoria realizada”. Para Ana Cristina, é possível dar celeridade aos procedimentos de licenciamento ambiental sem que, com isso, se comprometa a qualidade das exigências ambientais. “Obviamente que qualquer que seja o empreendimento, com ou sem impactos ambientais relevantes, espera-se que os órgãos ambientais sejam ágeis em suas avaliações, o que é perfeitamente legítimo. Porém isso não significa dizer que tenhamos que prejudicar não só a consistência das exigências ambientais, como a qualidade de nossas avaliações”, afirma. “Não pode ser admissível que um empreendimento ou atividade que pretenda se implantar em um estado precise aguardar, muitas vezes, anos para ter o seu pedido deferido ou indeferido”, complementa.
Entretanto, para pesquisadores e movimentos críticos à atuação da TKCSA e ao processo de licenciamento da empresa a consistência das exigências ambientais tem sido sim prejudicada. Karina Kato critica o processo de auditoria em curso na empresa, realizada por uma empresa concorrente, a Usiminas, cuja independência necessária para gerir o processo tem sido questionada. “Nós não temos nenhuma informação sobre como foi feita essa escolha. E a Usiminas é totalmente ligada à Vale, que é uma das controladoras da CSA. A Vale até 2008 já teve ações diretas na Usiminas, depois vendeu. Atualmente o Previ, que é o fundo de pensão dos trabalhadores do Banco do Brasil, tem participação na Vale e na Usiminas. E agora, na sucessão do Agnelli [Roger Agnelli, presidente da companhia Vale], um dos nomes cotados para ser presidente da Vale é do atual presidente da Usiminas. Então, não há uma independência nessa auditoria, por mais que eles falem que é independente. O que há, na verdade, é um grande acordo para que essa auditoria saia favorável à empresa e para que a licença de operação que está condicionada a essa auditoria seja concedida agora no final de fevereiro”, afirma Karina.
De acordo com Marcus Leal, a Usiminas foi escolhida por indicação da Secretaria do Estado do Ambiente. “Quem está na presidência deste procedimento é o Inea, que é um órgão ligado a Secretaria do Estado do Ambiente. São eles que estão com a responsabilidade de realizar esse trabalho, o Ministério Público está na posição de acompanhar o trabalho. Qualquer situação que nos leve à conclusão de que houve favorecimento da TKCSA pelo fato de a auditoria ter sido realizada por uma empresa cuja formação do seu capital social é semelhante ou inclui uma outra sociedade que também faz parte do seu quadro societário será tratado de acordo com a lei, imputando responsabilidade civil, penal e administrativa àquele técnico, profissional ou àquela empresa que tenha omitido algum tipo de informação relevante ou que tenha feito uma afirmação com base em dados falsos”, garante o promotor.
A diretora de licenciamento do Inea também foi questionada sobre por que a Usiminas foi escolhida para realizar a auditoria. Entretanto, Ana Cristina respondeu apenas que “a Usiminas possui certa expertise” e que “quanto ao componente saúde ocupacional e gestão ambiental interna, estamos avaliando quais instituições poderão protegê-las”. A TKCSA já foi multada duas vezes pelo Inea e, segundo Ana Cristina, o instituto continuará fazendo vistorias periódicas e constantes na empresa. “O Inea só emitirá parecer favorável à operação da empresa quando tiver segurança de que todas as medidas de controle estão com a eficiência desejada e necessária”, comprometeu-se.
Procurada pela EPSJV, a Secretaria de Estado do Ambiente do Rio de Janeiro não respondeu às perguntas encaminhadas.
Alternativas aos grandes empreendimentos
A desconfiança em relação à auditoria em curso na TKCSA aponta a necessidade de se definirem parâmetros mais exatos de como esses processos devem ser feitos. Para Alexandre Pessoa, o ideal é que instituições públicas fossem responsáveis por esse tipo de avaliação. “A gravidade dos fatos exige uma auditoria ambiental idônea, que busque a responsabilização sobre o ocorrido, as análises de riscos à saúde envolvidas e, para isso, seria necessário que auditorias desse tipo fossem feitas por instituições públicas, de pesquisa como universidades públicas, menos permeáveis à influência econômica e política das empresas”, sugere. Marcelo Firpo concorda: “Seria muito importante que o Inea e o Ministério Público tornassem mais claros os critérios de escolha e as formas que estão sendo implementadas para garantir autonomia e independência dessa auditoria na CSA, por exemplo. O poder público pode consentir ou concordar que uma instituição ou grupo de especialistas realize avaliações desse tipo, o que não pode é essa avaliação ser realizada por grupos com critérios que não sejam transparentes em relação à sua idoneidade e independência. Poderia ser um conjunto de instituições, um grupo de profissionais, pesquisadores renomados, etc”.
A mesma resolução 001 do Conama que estabelece as diretrizes para a avaliação de impacto ambiental dos empreendimentos afirma que a hipótese de não realização das obras deve constar como dos Relatórios de Impacto Ambiental. O 5º parágrafo do artigo 9 da resolução afirma que o Rima deve avaliar “a caracterização da qualidade ambiental futura da área de influência, comparando as diferentes situações da adoção do projeto e suas alternativas, bem como a hipótese de sua não realização”. Para o promotor Ubiratan Cazetta, o questionamento sobre se a obra seria ou não viável não foi feito de forma adequada no caso de Belo Monte. “Essa é uma pergunta que se faz na fase da licença prévia. Qual é a melhor opção? Fazer ou não fazer a obra? Em tese, essa pergunta foi respondida com a concessão da licença prévia. Mas por que eu digo em tese? Primeiro porque temos muitas críticas à forma de condução dessa licença prévia. Há inúmeras ações judiciais em andamento. E também, independentemente disso, as tais condicionantes já responderiam à pergunta [sobre fazer ou não a obra]. Se o empreendedor não cumprisse as condicionantes, a obra não sairia do papel, mas as condições não estão sendo cumpridas e mesmo assim o Ibama vai concedendo uma licença de instalação parcial”.
Questionado pela EPSJV se a hipótese de não realização de Belo Monte ainda estava em consideração mesmo diante das inúmeras críticas e do abaixo assinado contrário à hidrelétrica entregue pelos indígenas à presidência da república, o Ibama respondeu que “está avaliando com muito rigor as questões afetas as populações e possui, no caso dos indígenas, a anuência da Funai. Também está sendo considerado o benefício para as populações que serão removidas das palafitas e passarão a ter saneamento básico”. O órgão respondeu ainda que nem todos os indígenas são contrários à obra. “O licenciamento ambiental nunca será unanimidade. Assim como há indígenas contrários ao empreendimento também há aqueles que são a favor. O debate faz parte dos processos democráticos e o incentivamos. Alguns elementos que surgem dessas discussões, por vezes, nos auxiliam na tomada de decisões. E é somente depois de concluídas as análises dos estudos de impacto ambiental que saberemos se o Ibama emitirá ou não uma licença”, garantiu.
Para Alexandre Pessoa, a posição das populações afetadas por esses grandes empreendimentos é frágil. “Essa sociedade patrimonialista tem ainda um diferencial hoje no neoliberalismo que é a grande influência das transnacionais, que desempenham um papel muito forte sobre o Estado que, por sua vez, acaba tomando em alguns momentos uma posição vacilante ou subserviente”, avalia. De acordo com o pesquisador, no caso da TKCSA, se fosse considerada de forma séria a hipótese de não construção da siderúrgica, como prevê a resolução do Conama, outras opções concorreriam com o empreendimento. “O estudo com critérios técnicos, auditorias ambientais e com a participação inclusive das instituições de pesquisa e setores das universidades, poderia revelar, problematizar e pedir revisão dos estudos. A área onde se localiza a TKCSA tem vocação pesqueira, grandes áreas verdes disponíveis, então, este estudo poderia considerar que um turismo sustentável, por exemplo, poderia ser mais interessante para os moradores do que a siderúrgica”.
Para Marcelo Firpo, a legislação ambiental possui lacunas no que se refere à avaliação da saúde das populações atingidas, já que os órgãos ambientais têm pouca experiência e formação para avaliar esses impactos específicos. Outra lacuna, segundo o pesquisador, está relacionada à participação da sociedade civil nos processos de avaliação e licenciamento. Ele lembra que há uma proposta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro que amplia a participação das populações envolvidas. “É uma proposta chamada ‘avaliação de equidade ambiental’, que significa aumentar a participação das populações atingidas e movimentos sociais no processo de licenciamento e também impedir que esse empreendimento agrave vulnerabilidades e desigualdades frente aos impactos produzidos”, explica. Mas, para Firpo, a vontade política já resolveria grande parte dos problemas de licenciamento ambiental. “Apesar dessas lacunas, a legislação atual seria suficiente para ser mais rigorosa caso houvesse disposição do Executivo em implementá-la”.
*Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz.
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