Lutas contínuas concretizam mudanças sociais e raciais – por Kabengele Munanga

Texto que compõe o volume 6 da coleção “2003-2010 O Brasil em transformação” da Editora Fundação Perseu Abramo, organizado por Matilde Ribeiro, edição no prelo.

Por Prof. Kabengele Munanga

Vivo há 35 anos no Brasil. Saí da África, da República Democrática do Congo, em 1975,para fazer o doutorado na Universidade de São Paulo (USP), devido às dificuldades políticas com a ditadura militar que durou 33 anos, com o apoio do imperialismo ocidental. Como minha família estava em oposição a esse regime, tive de me auto-exilar preventivamente.

Construí minha carreira acadêmica na USP, estudando e ensinando principalmente asrelações raciais e interétnicas, o que muito me aproximou e me identificou com a população negra brasileira. Não é fácil trabalhar numa área em que há muita discriminação, considerado como estrangeiro que se mete nas questões políticas em outro país. Alguns dizem que me envolvo até mais do que os próprios negros brasileiros com a situação discriminatória do país. É uma escolha política da qual não abro mão, apesar da discriminação.

Mesmo depois da aposentadoria daqui a dois anos e meio, pretendo continuar contribuindona reflexão sobre a situação do negro no Brasil. Apesar de a África ter ficado geograficamente distante do meu cotidiano profissional, continuo no meu trabalho na USP lhe dedicando atenção, principalmente por meio do espírito da Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da cultura afrobrasileira e africana no ensino na escola brasileira.

Realidade brasileira, mudanças conceituais e políticas

Nos últimos dez anos, o debate sobre a questão racial, em termos de conscientização,adiantou bastante. Havia uma época em que dizer que há racismo no Brasil era considerado como um crime de lesa-pátria. Ninguém se atrevia a dizê-lo, com medo de sofrer repreensão política.

Antigamente o debate ocorria somente nos meios acadêmicos, mas hoje é difundindo notecido da sociedade, principalmente no seio das entidades do movimento negro. Apesar de o movimento negro ter atuação a longas datas (desde que os negros aqui pisaram como escravizados), creio que nos últimos dez anos graças ao debate sobre ação afirmativa, a questão do negro foi ampliada.

Apesar de o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) anterior ter reconhecido que háracismo no Brasil e de alguns governos estaduais terem criado órgãos como o Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da População Negra (estado de São Paulo), a Secretaria Especial do Negro (estado do Rio de Janeiro), a Coordenadoria do Negro (prefeitura de São Paulo) entre outros.

Nos últimos anos oito anos, os fatos políticos de integração do negro, além da retórica, começaram a se concretizar no governo do PT, com o presidente Lula. Várias ações foram desenvolvidas: a criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), com status de ministério, a nomeação de ministros negros (Seppir, Cultura, Esporte, Meio Ambiente e Assistência Social), a promulgação da Lei 10.639/2003 e projetos do interesse das comunidades quilombolas, da saúde da população negra, cultura entre outros.

A pressão participativa do movimento negro foi determinante, para mudanças e conquistas. Essas traduzem a ação e a expressão da militância junto ao governo popular, consciente da existência das desigualdades raciais e consequentemente da urgência da implementação de políticas específicas. Aí está a diferença nesses últimos oito anos.

Quando cheguei à USP, o então Departamento de Ciências Sociais (sob a iniciativa doprofessor João Baptista Borges Pereira, estudioso das relações raciais e interétnicas) costumava organizar eventos no mês de novembro, que denominavam “Semana do Negro”. Mas era uma reflexão sobre o negro sem a presença e a participação deste, à exceção do historiador Clóvis Moura e do estudioso Eduardo de Oliveira e Oliveira. Recordo-me de que quando estes diziam “nós negros” as pessoas brancas murmuravam: “Aqueles dois mulatos, por que querem se considerar negros?” Com o tempo isso não acontece mais. Hoje é mais aceito que as pessoas mestiças assumam politicamente a identidade negra sem criar surpresas e constrangimentos.

Num país democrático e de direitos são importantes os avanços legais, porque as leisfuncionam como um grande guarda-chuva protetor de todos nossos direitos enquanto cidadãos e cidadãs. Mas as leis sozinhas não são suficientes para resolver todos os problemas de uma sociedade. Temos de ir além delas para conjugar a igualdade formal com a igualdade material. A Constituição de 1988 é excelente e considerada como uma das mais avançadas do mundo, mas e daí? Há acordo que o Estado, os governos e os demais responsáveis pelo investimento nas políticas universalistas?

Não tenho dúvida de que deva haver investimento na melhoria dos serviços públicos como as escolas, a saúde etc. Mas é preciso cruzar as políticas universalistas com as políticas específicas ou focadas capazes para atingir os segmentos da sociedade que, por motivos históricos e estruturais, têm perdas acumuladas e atrasos em matéria do seu desenvolvimento coletivo, que jamais as políticas macrossociais poderão reduzir. Ou seja, praticar a discriminação positiva, ou como preferem alguns, tratar desigualmente os desiguais.

Perante a lei somos todos iguais, está correto, mas em formulação de políticas públicas não devemos ficar presos a esse princípio de isonomia, pois seria uma negação de nossas diferenças sociais, de gênero, de religião, de idade, de etnia, de classe.

As políticas que defendem os verdadeiros direitos humanos devem ser as que dão conta doconjunto das necessidades das pessoas e coletividades e não se percam na generalidade e na abstração. Para serem concretas essas políticas devem defender os direitos humanos acompanhados de ações, de programas e de projetos efetivos de mudança, de transformação da sociedade em sua complexidade e diversidade.

Os que estão contra as ações afirmativas recorrem às leis para justificar a ausência demedidas concretas. Por que a Índia, saindo da sua colonização em 1947, nstitucionalizou as políticas de cotas em benefício das castas chamadas intocáveis a partir de 1950? Porque eles se deram conta de que o fato de a Constituição considerar a casta como uma instituição ilegal não era suficiente para resolver os problemas de uma sociedade hierarquizada religiosamente e que era preciso verdadeiras políticas de mudanças.

É nesse sentido que nos Estados Unidos, na Índia ou no Brasil de hoje se colocou ou secoloca a questão das políticas de ação afirmativa na modalidade “cota”. Apesar de termos uma excelente Constituição no Brasil, devemos ir além, cruzando políticas universalistas com políticas diferencialistas.

E isso que as pessoas que são contra as políticas de ação afirmativa não entenderam ou não querem entender. A visão deles é a de que essas políticas vão dividir e racializar o Brasil, uma sociedade geneticamente mestiça, onde o branco, o negro e o índio já desapareceram. Está certo que a mestiçagem é uma característica fundante dessa sociedade, geneticamente falando, e que a pureza racial é um mito! Mas nem por isso a fenotipia, que explicaria nosso racismo à brasileira, deixou de existir. Quando analisamos a estrutura dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e das instituições econômicas e financeiras do país, cabe a pergunta “onde estão os mestiços e as mestiças” cuja apologia é tão retórica? Basta apertar o botão e selecionar qualquer canal de nossa televisão para perceber que aparecem mais pessoas claras e loiras do que em muitos países nórdicos da Europa.

A mestiçagem, nesse sentido, é uma peça ideológica muito importante, pois a qualquermomento ouvimos “nós somos mestiços, por isso não devemos ter políticas de cotas para negros e índios”. Os formadores de opinião, quando falam para a população por meio dos órgãos de imprensa e das mídias, levam vantagem. As pesquisas feitas em nossa academia e que poderiam oferecer uma opinião diferenciada à das mídias não são acessíveis a todas as camadas da população.

O mito da democracia racial foi e é ainda apresentado como se fosse a verdade da sociedade brasileira. Sente-se a dificuldade de superar a crença nas diferenças socioeconômicas como explicação das desigualdades entre brancos e negros, apesar do ideal da democracia racial já ter sido desmistificado pelo movimento negro e pelas pesquisas acadêmicas. Tenho a impressão de que a inércia é tão forte que o brasileiro deixou de se enxergar, naturalizando sua crença na existência da mestiçagem e no desaparecimento total do branco, do negro e do índio, em termos de discursos e não dos comportamentos que ainda continuam discriminatórios das diferenças.

O fato do negro não ter se tornado cidadão pleno após a abolição da escravidão é visto como uma debilidade do próprio, e não da sociedade que o excluiu. O atraso em relação a outros grupos raciais é considerado como falha dos próprios negros que não têm bastante competência para reagir com força enquanto grupo social. Não é à toa que algumas pessoas falam hoje de uma segunda abolição, colocando em xeque os esforços dos abolicionistas que condenaram moralmente a escravidão e se empenharam para sua extinção. Da mesma maneira, o racismo é condenado moralmente, mas é dentro dos princípios dos direitos humanos que se deve assentar a questão, pois é obrigação da sociedade garantir e defender os direitos de todos à igualdade de oportunidades e tratamentos.

É difícil assumir que a cultura da sociedade brasileira é racista. Basta olhar nossos livros didáticos, historicamente são repletos de preconceitos. Com isso, é inculcado nas crianças e jovens em formação um distanciamento de suas raízes culturais africanas, embora façam parte de nosso cotidiano. Em termos de educação formal do cidadão, elas são deixadas de lado.

Até o fim do século passado, o racismo era fundamentado em discursos racialistas oupseudocientíficos produzidos, ou seja, na variável biológica. Hoje, entretanto, ninguém ousa dizer abertamente que o negro é inferior biologicamente para justificar e legitimar a discriminação. No entanto o racismo continua a atuar entre as relações humanas, apoiado em outras variáveis, culturais e históricas e se escondendo (no caso específico do Brasil) nas questões de origem socioeconômica.

Se o Brasil é um país que nasceu do encontro das culturas e civilizações oriundas de quatro continentes (América, Europa, África e Ásia), o que há de racialização ao ensinar ao jovem brasileiro sua raiz africana? A grande população foi educada dentro do modelo europeu, mas quando se coloca a questão da inclusão das raízes indígenas e africanas vem a retórica “somos mestiços e nossa história é brasileira” e que o ensino das outras histórias racializaria o Brasil!

Mesmo aceitando e assumindo “nossa” mestiçagem como querem, devemos saber quem somos, de onde viemos e por onde vamos.

Alguns ativistas políticos e midiáticos defensores do marxismo têm uma leitura errônea e cômoda quando explicam as desigualdades raciais somente a partir da leitura de lutas de classes.

Claro que a luta de classe existe, mas não devemos ignorar a existência de uma educação que dita nossos comportamentos racistas. A negação do racismo como fator estruturante das relações de classe pode ser um marxismo superado atrás do qual alguns se escondem para se contrapor à política de ação afirmativa.

O Brasil tinha uma visão da África a partir da historiografia colonial e das imagens depreciativas divulgadas por algumas mídias contemporâneas. Isso começou a mudar lentamente nos últimos governos, quando houve realmente propostas de relações diplomáticas e econômicas mais intensas com os países africanos. Começou nitidamente com o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), mas se intensificou em termos de quantidade e qualidade a partir do governo Lula.

Vejo gestos claros de aproximação, de uma diplomacia totalmente diferenciada da ocidental ainda presa ao complexo de colonizador. A diplomacia atual em relação a África envolve coração e respeito, independentemente dos interesses econômicos e comercias mútuos que existem em todas as relações humanas. É demonstrada uma vontade política de aproximação positiva, de solidariedade e cooperação. Na história da humanidade os povos se aproximam por interesses diversos, a questão é saber como e por que nos aproximamos. Dar esmola para alguém é quase um ato de humilhação. Mas a ajuda com respeito ao outro como ser humano e como nação é algo diferente.

Principais ações políticas no período 2003-2010

A criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) foi um grande feito do governo Lula. De minha parte, a participação no Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) como representante da sociedade civil me trouxe grande aprendizado, da mesma maneira que quando aqui cheguei aprendi com movimento negro. Como intelectual e pesquisador das relações raciais, os representantes das entidades negras, indígenas, ciganas, árabes, israelenses e feministas e outros presentes no CNPIR muito me ensinaram. Em alguns momentos raros os assuntos eram especificamente acadêmicos, nos quais pude dar uma colaboração especifica, mas o mais importante tem sido o debate político.

O acesso ao exercício da política é extremamente importante. Nosso papel como conselheiro tem sido de prestar uma ação consultiva, de assessorar o andamento das políticas de igualdade racial. O CNPIR contém a representação da diversidade das entidades do movimento negro e social, às vezes pauta-se por conflitos partidários, o que prejudicava a própria ação e o andamento das propostas do governo. Ainda estamos numa fase de construção da solidariedade entre nós próprios, afrodescendentes em representação da sociedade civil perante o governo. Vivenciamos também as vaidades pessoais e individuais, mas isso não impediu que o CNPIR fosse propositivo na preparação, em 2005, da I Conferência Nacional de Políticas de Igualdade Racial (Conapir). Como conselheiros nos dividimos para acompanhar a realização dos eventos preparativos nos estados, em conjunto com a ministra da Seppir. Foi de fato um trabalho intenso e de vivência democrática.

Mas a representação dos órgãos do governo no CNPIR não tem se demonstrado efetiva.Nem sempre se fizeram presentes nas reuniões e/ou apresentaram propostas concretas. Pelo fato de serem designados, muitas vezes não demonstraram compromisso real com a promoção da igualdade racial.

A I Conapir foi uma grande realização num momento conflitante, de crise. Já a II Conapir, em 2009, teve um papel importante, mas já tinha como base as resoluções da primeira, foi um momento de balanço, uma complementariedade do trabalho antes iniciado. Se as propostas das duas Conferências fossem desenvolvidas efetivamente, a realidade brasileira seria outra. A Seppir depende do envolvimento de outros órgãos do governo para desenvolver o seu trabalho e com isso as coisas ficam morosas. As resoluções das Conferências contribuíram para um desenho real dos caminhos para as políticas publicas. Com todas as dificuldades que tivemos, sem cobertura da imprensa brasileira, que ignorou totalmente a importância dessas conferências, foram exitosas.

A Audiência Pública realizada em março de 2010 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) foioutro exercício de democracia. Mostrou que nos aproximamos de um Estado de Direito. Posicionamentos contra e a favor propiciaram o amadurecimento do debate. Amadureceu,sobretudo, do lado dos defensores de política de ação afirmativa, que apresentaram argumentos muito bem elaborados, sem se prenderem a banalidades.

Os fundamentos jurídicos demonstraram que inconstitucionalidade seria não colocar em prática as políticas de ação afirmativa, seria andar contra a Constituição. Mostraram também que nesses seis a sete anos cerca de 80 universidades públicas passaram a exercitar as cotas com modalidades diferentes de política de ação afirmativa, provando que nenhum dos argumentos contrários se demonstrou na prática. Em lugar algum se viram conflitos raciais, não caiu o nível da excelência do ensino superior. Nunca ingressaram tantos negros nessas universidades, em comparação até com o século anterior. Os argumentos dos que estavam contra as cotas foram desmontados.

O debate demonstrou que somos uma sociedade democrática porque uma questão socialcomo a racial não é fácil de obter consenso, sempre vai ter pontos de vista e opiniões diferentes, unanimidade nunca vai acontecer. As ideias-forças que foram defendidas no STF vão contribuir para a tomada de decisão sobre a constitucionalidade ou não das cotas.

Pela minha experiência no Brasil, nunca vi tantos colegas pesquisadores brancos comargumentos tão preparados, tão fortes em defesa das mudanças e em favor das políticas de ações afirmativa. Houve época em que essas questões pareciam ser apenas de responsabilidade dos negros e do movimento negro, dos intelectuais negros engajados.
Estou convencido de que ampliou o número dos brasileiros que entenderam ser a superação do racismo uma questão nacional, e não uma questão do negro ou do branco.

Há uma visão otimista e a esperança de o julgamento ser favorável à continuidade daspráticas de ações afirmativas e cotas. Se depender da qualidade dos discursos, dos argumentos apresentados, eu tenho certeza que o STF vai se pronunciar em favor da constitucionalidade. Mas, por outro lado, não podemos ser ingênuos, isso é uma questão política que não depende apenas dos formadores de opiniões. Depende das estruturas das instituições públicas brasileiras, e elas são muito conservadoras.

Uma das principais ações em curso nos dias de hoje por parte do Executivo é a Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história da cultura do negro no Brasil, incluída a história da África. Apesar da resistência que ainda existe entre alguns responsáveis pelo sistema educacional e educadores, essa é uma medida que vai pegar. Já há um grande acúmulo nessa área – muitos livros e textos defendendo uma educação multicultural, que inclui a nossa riqueza comum. Tenho a impressão de que mesmo saindo esse governo, essa ação terá continuidade, será difícil ser extinta.

A Lei 10.639, do meu ponto de vista, vai pegar com mais facilidade do que o Estatuto daIgualdade Racial, pois o discurso sobre a cultura já faz parte da vida brasileira. Esse conhecimento e envolvimento não incomodam muito, o que incomoda de fato é a questão política, e a educação superior é o cordão umbilical, é o impulso para a chegada do negro no topo. Em uma instituição, uma grande escola, uma universidade, é possível ter um negro de plantão, dificilmente você vai encontrar três ou quatro numa mesma atuação. Se você perguntar por que apenas um, a resposta recairá sobre a competência. Dirão que querem uma pessoa formada numa área especifica, com o perfil para ocupar um cargo de responsabilidade. Nos meios de comunicação, os quadros técnicos de ponta, em geral, não são ocupados por negros.

Os que lutam contra as cotas são pessoas que defendem o status quo e não queremmudanças. Então é mais fácil você assumir ensinar a história do negro no Brasil numa ótica diferente da historiografia colonial. Não quer dizer que isso seja menos importante, faz parte das nossas reivindicações. Temos que nos apropriar dessa possibilidade, mas também lutar fortemente para a mudança nas instituições universitárias.

O conjunto das ações desenvolvidas no período de 2003-2010 tem contribuído para umaampliação de uma cultura política favorável à inclusão e ao combate ao racismo. A população brasileira hoje está na prática convivendo com uma mudança que ficava apenas no plano do discurso. Mas torço para que as novidades possam ser difundidas ainda mais no tecido social brasileiro. Essa grande mudança se expressa no Programa Bolsa Família, por exemplo, pelo qual a criança e o adolescente que ganhavam migalhas no trabalho informal, de maneira explorada, podem se libertar e recuperar o tempo para ir à escola.

Dizem que isso é uma política assistencialista, crítica com a qual não concordo, porque você tem que dar possibilidade às pessoas de aprender a se virar sozinhas, é verdade, mas deixá-las morrer de fome e de doença é impedi-los definitivamente de chegar lá.

A aprovação de bolsa do governo para um universitário de classe média ir para a Europa se especializar não é visto como assistência. Entretanto, quando são filhos dos trabalhadores, qualquer beneficio advindo das políticas públicas vira assistência. É claro, essa assistência é para eles poderem frequentar a escola e aprenderem uma profissão, receberem uma boa formação como cidadãos, terem acesso à tecnologia. Portanto, não é uma assistência que leva as pessoas a cruzar os braços, como os conservadores argumentam.

Quando converso com pessoas que trabalhavam em minha casa (em geral mulheres, comoempregadas domésticas), verifico que seus filhos vão para o Centro de Educação Unificada (CEU), criado no tempo da prefeita Marta Suplicy, que têm acesso à internet, a uniformes, cultura e informação. Com isso vejo que as mudanças são reais, mas um país que acumulou tanta desigualdade demorará para ter as questões sociais e raciais totalmente resolvidas. Se não houver um governo com consciência para continuar o que já foi implantado nesses oito anos, vai ser um retrocesso.

Estamos dando passos estratégicos no acesso a direitos, mas a demanda social é muitogrande. Por isso lutamos para que as ações de governos se tornem políticas do Estado – a Seppir, o Estatuto da Igualdade Racial, a lei das cotas. Ao se tornarem políticas de Estado, independentemente da posição dos governos futuros deverão ter continuidade.

O papel da imprensa brasileira na manutenção do status quo

O setor midiático brasileiro não esteve e não está focado no desejo e na necessidade dopovo. De maneira geral, esse setor é conservador, reacionário, ainda preso ao mito da democracia racial. Sua atuação persiste em mostrar que não há problema racial no Brasil. Com tal posicionamento, recicla o mito da democracia racial em ideologia de mestiçagem, minimizando os impactos das desigualdades raciais e étnicas, o que complica bastante o debate público, o andamento das políticas e a definição de leis.

São muitas as decepções nos últimos anos. Em comparação com o papel da imprensa livreem alguns países onde existe uma análise séria sobre as questões sociais, aqui o trabalho é baseado na emoção, na instigação do medo. É recorrente a tentativa de demonstrar como teremos problemas e conflitos se buscarmos superar o racismo.

Para combater as ações governamentais e sociais, os formadores de opinião falam deRuanda, no continente africano. O Brasil poderia ser comparado à Bósnia, onde houve conflito étnico, à Espanha, ao Canadá, à Bélgica ou à Islândia, mas buscam Ruanda para poder humilhar e desmoralizar os afrodescendentes, para dizer: “Querem importar as atitudes daqueles seus parentes que ficaram no continente africano e estão criando conflitos”.

A imprensa é o microcosmo da sociedade, e, como já falei, é extremamente conservadora,mas felizmente tem setores que pensam e agem de modo diferente. É claro que uma Carta Capital ou Caros Amigos tem uma formulação instigante, diferente da que se mostra na Folha de S.Paulo, no Estadão, na Veja ou IstoÉ. Mas a imprensa que domina é a conservadora, que reforça os preconceitos em vez de contribuir para superá-los.

Muitas vezes o que temos a partir da mídia é apenas um lado dos fatos, isso foi muito claro no debate sobre as políticas de ação afirmativa. Em geral, os mais amplos espaços são para os convidados cientistas, pesquisadores e intelectuais que são contra as cotas. A visão que a imprensa brasileira tinha na campanha de 2002 do Lula para presidente da República era totalmente preconceituosa, não era passada a crença em que ele poderia governar o país. Quando o Collor ganhou as eleições, foram realizados debates para induzir a população a acreditar nele, na verdade a eleição do Collor, até certo ponto, foi a eleição impulsionada pela Rede Globo.

Os veículos de comunicação apresentam opiniões diferentes, mas deveriam promover umaanálise da sociedade real. No caso das políticas de ação afirmativa no Brasil, em geral a mídia joga contra. Alguns permanecem em silêncio, mas essa também é uma maneira de se posicionar politicamente, de não contribuir para a ampliação da consciência do povo.

Os desafios e apontamentos para o futuro

Estamos falando em transformações, em um país governado por um presidente de origem popular, que não foi formado por uma universidade, mas que tem, notadamente, uma aprovação muito grande da sociedade. Isso se dá em função de um passado e de um presente que trouxeram ao “nosso Lula” a sensibilidade para entender onde estão as verdadeiras dificuldades para mudar o Brasil.

Se ele não tivesse esse passado cultural, social e também uma formação político-partidária popular e operária, não sei se teria essa sensibilidade. Não basta ter consciência, fazer um discurso contundente, sem uma combinação com a vontade política de mudar. Nosso presidente não ficou preso ao discurso, apesar de todas as dificuldades que encontrou no caminho, seus pensamentos não são coisas livrescas. Conhece de perto um Brasil cheio de contrastes, ao mesmo tempo rico e pobre, onde grande parte da população passa fome e necessidades, situações que ele viveu. Por isso não fala de coisas abstratas, mas se relaciona com a realidade do país. Quando diz que tomou sorvete apenas quando tinha oito anos, tem introjetado o significado disso e sabe, também, que há pessoas que nunca provaram sorvete. Um exemplo banal, mas que serviu para mostrar de onde ele vem, e aonde quer chegar: um Brasil melhor.

Lula sabe onde estão os problemas e por onde operar as mudanças no Brasil. Eu diriaseguramente que é uma das raras inteligências que conheci. Com minha formação universitária como doutor em antropologia, professor titular da USP,pergunto-me se teria capacidade de governar um país desse tamanho e com tantas contradições. Não é todo mundo que tem essa capacidade, essa força, seja da academia ou do povo. Tenho muita admiração pelo presidente Lula. É claro que somos todos diferentes, mas ele é uma pessoa excepcional, que fala e age diante de um Brasil real. Para mim, isso é uma grande diferença. O respeito que o Brasil tem hoje internacionalmente é muito importante. O presidente não fala inglês, não fala francês, não fala alemão, mas não precisou disso para governar, para se tornar essa grande referência política.

Torcemos para que os que virão continuem esse exercício político a favor do povo. Torçopara que a ministra Dilma Rousseff se eleja, dê continuidade e amplie esse projeto.O desafio é que o Brasil precisa continuar a ser governado pelos que têm compromissos com as reais necessidades da população, visando à garantia da qualidade de vida para todos. Tenho medo do retrocesso.

As conquistas sociais são produto de luta contínua, assim confirma a história. Devemossempre trabalhar para conscientizar a população brasileira e levá-la a acreditar em si mesma. No caso da população negra, tem-se conseguido formar novas gerações mais confiantes de sua dignidade, jovens negros estão crescendo em contextos de valorização individual e coletiva.

Não creio que um dia a gente chegará a uma situação de total superação do racismo, mas há um processo positivo que tem que continuar, faz parte da mudança da sociedade. Apesar das conquistas, o processo de luta é contínuo. Enquanto vivermos e tivermos diferenças e vantagens sociais e políticas para uns em detrimento de outros, os conflitos e as lutas para defender o nosso direito, nossa dignidade humana devem continuar.

Como integrante da academia ainda me frustro com o número de negros naquele espaço, nas universidades de boa qualidade, seja pública ou privada. A visibilidade para alguns pesquisadores negros não é representativa daquilo que somos. Daqui a pouco vou me aposentar na universidade onde entrei como primeiro negro a fazer o doutorado, como primeiro professor que chegou ao topo da carreira. Temo que lá não haja outro negro. Pergunto quando as portas da universidade se abrirão para os negros como docentes?

Temos hoje a Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros (ABPN), construída a duras penas, e ainda criticada como instrumento de racialização do Brasil. Negros têm entrado nas universidades, graças às cotas e ao Programa Universidade para Todos (Prouni), mas ainda é uma gota d’água num oceano se pensarmos que os negros são metade da população brasileira e que somos ainda uma minoria nos espaços públicos.

Temos que nos convencer de que a democracia brasileira só vai se realizar se tiver uma representação de todos os setores da sociedade na estrutura do poder político, econômico, e na imprensa.

Sou esperançoso, as mudanças vão favorecer as novas gerações. Devemos educar nossos filhos para que tenham consciência da desigualdade, do problema que os negros enfrentam. E de que com as lutas sociais podemos chegar ao topo, mesmo que demore.

Os ditos populares africanos têm muito a ver com a realidade brasileira, um deles é “a luta continua… apesar da independência”.

Aqui no Brasil, já provamos, devemos garantir a continuidade das políticas publicaspriorizando os que necessitam de oportunidades e das ações de governos.

http://www.pt.org.br/portalpt/secretarias/-cultura-15/artigos-137/lutas-continuas-concretizam-mudancas-sociais-e-raciais–por-kabengele-munanga-30401.html

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