Defeito de pobre

Durante a caminhada das famílias sem-teto, na quinta-feira, me lembrei de Rosana Denald. Foi dela  que ouvi pela primeira vez,  a seguinte frase: “Pobre tem um defeito, não evapora no final do dia”. A frase é da professora Ermínia Maricato, para exemplificar a forma como a sociedade lida com as necessidades dos pobres. Se alguém tivesse dúvidas de que muita gente na sociedade gostaria mesmo que os pobres passassem o dia suando, trabalhando, limpando, construindo e no final do dia evaporassem, o problema dos sem-teto é uma boa mostra.

Desde  4 de outubro famílias sem-teto ocuparam quatro, dos milhares de prédios abandonados, do centro de São Paulo. O perfil dos imóveis é bastante parecido,  têm altas dívidas de IPTU e estão fechados por décadas. As primeiras 24 horas foram tensas. Os ocupantes ficaram confinados, impedidos pela polícia, de receber água e comida durante todo o dia. No prédio da Av. Ipiranga três mulheres passaram mal e desmaiaram. No dia seguinte percorri as quatro ocupações, vi o absurdo dos espaços abandonados deteriorando frente à necessidade de quem não tem onde abrigar suas famílias. O vídeo  Ocupações pode ser assistido aqui. Passado o período de tensão das primeiras horas as famílias começaram a limpeza, ocuparam quartos, organizaram cozinha comunitária, atividades de recreação com as crianças, lazer e cultura. As assembléias  podem ser acompanhadas  neste vídeo  “Assembléias” , dão uma mostra da organização do grupo.

Antes da saída da caminhada, entrei mais uma vez na ocupação Ipiranga. Almocei com eles, um macarrão com salsicha. Na entrada da cozinha comunitária era possível ver caixas com muitas verduras e legumes. Às 4 da manhã uma equipe vai buscar as doações no mercadão municipal. O almoço estava delicioso. A sobremesa foi mamão.

Animação era total na frente do prédio. Panelas e tampas faziam coro ao batuque do Grupo de Teatro de Rua, de Pernambuco, que está fazendo uma mostra em São Paulo e aderiu à manifestação. A caminhada passou pela Praça da República, Avenida São Luiz, Viaduto Jacarei e fez uma parada na porta da Câmara Municipal. Eu e outros jornalistas acompanhamos a comissão que entrou na casa de leis e de fiscais do poder municipal, para entregar a carta de reivindicações. O cenário é semrpe muito parecido: grades para impedir que manifestantes se aproximem da porta. Uma comissão só entra depois de todos mostrarem documentos. Subimos até o 11º andar e o presidente da casa não estava para receber a carta. Seguiram para o sub-solo onde a Comissão de Direitos Humanos estava reunida.  Foi desolador. Na pauta o assunto era xenofobia,  a repercussão das agressões aos nordestinos via twitter. Lá fora os manifestantes aguardavam, crianças de colo, idosos… Lá dentro os representantes da CDH disseram que só poderiam ouvir quando terminasse a pauta. Ameaça de bate boca e a carta foi deixada.  Mas não foi permitido à comissão expor o problema das famílias que já estão com reintegração marcada. INSS 9 de julho 18/11, Av. Ipiranga 25/11.

Enquanto as lideranças contavam o ocorrido, segui um pouco na frente e parei em uma dessas lojinhas que vendem biscoitos. Estava pagando quando a mulher que me atendia,  deu ordem ao funcionário para que ficasse na porta vigiando, a manifestação estava se aproximando. A esta altura já me sentia uma sem-teto. “São pessoas dígnas, pode ficar tranquila, não são ladrões. Sou jornalista e estou acompanhando. Só estão reivindicando o direito à moradia”, disse. Percebem a constatação de que pobre tem defeito, pobre incomoda.

Não tenho dúvidas de que para alguns aquela gente com boca faltando dente, pele castigada, mão calejada tinha que trabalhar o dia inteiro, ganhar salário mínimo e no final da tarde evaporar para não criar problemas.

Mas pobre tem esse “grave defeito” não evapora e os que têm consciência de seus direitos saem pra rua, batem na porta dos políticos que elegem e cobram.

A caminhada chegou até a porta do Ministério Público de São Paulo. A comissão  deu entrada no processo. Sairam um pouco mais animados  com a promessa do Promotor de Justiça de Direitos Humanos de São Paulo  José Paulo França Piva  de analisar o processo e convocar dirigentes e autoridadess para uma audiência. A Frente de Luta por Moradia  solicita ao MP que  ofereça denúncia ao estado e município sobre os imóveis abandonados e peça  providências para atender as famílias de baixa renda.

Alguns jornalistas têm acompandado de perto essa realidade  que muitas vezes é mascarada. Isso ajuda um pouco a entender o porquê de num rico centro urbano, como São Paulo, estarmos com uma poupulação de rua que já beira os 20 mil, avaliam os movimentos. No caminho para o estacionamento onde deixei meu carro, no Arouche passei por por crianças, jovens e velhos deitados nas calçadas. Está na hora das pessoas fazerem a conexão. Por que estas pessoas foram parar nas ruas? Deem uma olhada sob o minhocão.

São muitos os depoimentos de pessoas que já não encontram nem mais o barraco da favela para morar e criar os filhos,  com o esgoto e ratos entrando em casa. Famílias que  têm de optar entre comer e pagar o aluguel. Trabalharem duro, são sub-remuneradas,  ajudam a construir essa cidade e o país mas não participam das riquezas que produzem. Em muitas das falas das lideranças na caminhada faziam questã ode frisar: Não querem nada de graça, querem política habitacional com prestações que possam pagar. O programa Minha Casa Minha Vida possui esta modalidade de financiamento subsidiado para famílias de 0 a 3 salários mínimos, mas a implantação depende da vontade política da Prefeitura, Governo do Estado e Governo Federal.

O que se tem feito de moradia para baixa renda até agora serve muito mais à propaganda do que às famílias que aguardam em filas intermináveis e ao final ainda dependem de sorteio para morar 40 quilômetros de seu local de trabalho.

Propostas publicadas em carta aberta pela FLM

1. Abertura do edital de contratação do projeto do imóvel do INSS na Avenida Nove de Julho, número 1084, com 540 unidades habitacionais. Projeto parado há mais de dez anos. 2. Desapropriação dos seguintes imóveis e terrenos apresentados pela FLM: Edifício Prestes Maia, nº 911, com 229 unidades; Prédio da Rua Mauá, 340 com 130 unidades; e terreno localizado à Av. Bento Guelfi,1.800 com 840 unidades. Essas são lutas que os movimentos da FLM travam há pelo menos 8 anos. 3. Apresentação de cronograma de atendimento em unidades habitacionais de COHAB, CDHU e Minha Casa, Minha Vida para as famílias assistidas no programa de atendimento emergencial e Parceria Social totalizando 1.200 famílias; 4. Assegurar atendimento das famílias assistidas no Programa emergencial e Parceria Social nos empreendimentos Teotônio Vilela na Zona Leste de São Paulo, são 480 unidades; 5. Atendimento imediato das 60 famílias habilitadas no Programa PAR II (compromisso feito pela Diretoria Comercial de COHAB e Superintendência de HABI), há 5 anos na espera; 6. Definir a demanda dos 53 imóveis desapropriados no centro, garantindo a destinação de 1000 unidades para famílias organizadas nos movimentos do centro ligados à FLM; 7. Construção de projeto habitacional destinado as 700 famílias da Favela da Eletropaulo, localizada no Jardim Ipanema, Zona Lestes, prestes a sofrer reintegração de posse; 8. As famílias devem ser indicadas a projetos habitacionais definitivos pelas suas organizações de sem-teto. Participar da demanda quem pleiteia seu Direito.

http://www.projetoigreja.com.br/falapovo/detalhesNoticia.asp?idNoticia=DOFMBD22F0

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