A Língua Nossa de Cada Dia

Por Lauriene Seraguza*

“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (Constituição Federal do Brasil)

No ano de 1.500 vivia-se uma verdadeira Torre de Babel. A chegada dos portugueses ao Brasil não deve ter sido muito fácil. As aproximadamente 1.270 línguas faladas pelos diversos indígenas que aqui habitavam devem ter confundido os colonos monolíngües, que forçosamente – e violentamente – impuseram a sua singularidade lingüística. Contribuindo para que nós, nativos pacíficos, tornássemo-nos seres monolíngües. Nós não, alguns de nós.

Desses alguns, os povos indígenas se incluem. Atualmente temos no Brasil 210 línguas, 180 são línguas indígenas faladas no Brasil que se mantém a troco de muita luta e resistência. Algumas delas são faladas em Mato Grosso do Sul,  a com mais falantes, trata-se da língua Guarani. No estado mais de 50 mil pessoas são indígenas da etnia Guarani e Kaiowá.

Depois de muita luta  para equidade social, os vereadores de um pequeno município do extremo sul do estado vem revolucionando a Casa de Leis. Primeiro por ser presidida pelo vereador indígena Ezaul Martins  e então, pela honesta atitude de realizar uma sessão especial da câmara  de vereadores de Tacuru MS na comunidade indígena Sassoró, no dia 19 de abril de 2010. Essa sessão contava com uma pauta específica e oportuna: a cooficialização da língua Guarani naquele município.

Com um projeto de lei municipal assinado por todos os vereadores e com o aceite do prefeito municipal, Tacuru tornou-se o primeiro município bilíngüe do estado, o segundo do Brasil; o primeiro trata-se de São Gabriel da Cachoeira (AM) que em 2004 cooficializou línguas indígenas – colocando-as em paridade com a língua oficial do Brasil – a Língua Portuguesa. Vale lembrar que dos quase dez  mil habitantes, trinta por cento são indígenas Guarani.

No mesmo dia, dia 19 de abril, em outro pequeno município no mais extremo sul do estado, fronteira seca com o Paraguai, marcado por fatos de extrema violência contra os Guarani de lá, Paranhos tem aproximadamente onze mil habitantes, dos quais quarenta por cento são Guarani. Neste município, quatro corajosos vereadores lutavam pela aprovação da lei de cooficialização municipal da Língua Guarani. Vereadores que lutam por igualdade e justiça social. A cooficialização  veio, uma semana depois, pós dezenas de sessões frustradas.  Agora esperam pelo aceite do prefeito.

A cooficialização da língua Guarani no estado reflete uma luta do povo indígena por igualdade, educação bilíngüe, desenvolvimento rural e econômico, saúde e serviços públicos para todos e todas. Trata-se do mínimo para alcançar a tão sonhada justiça social, a tão falada igualdade de direitos entre os povos e o respeito a diversidade cultural.

No meio a esta revolução lingüística, um fato deve ser lembrado: o julgamento de Marcos Verón, cacique indígena assassinado a pauladas na cabeça no ano de 2003 em MS. Após a transferência do júri de Dourados para São Paulo, por motivos de ações anti indígenas latentes no estado, o julgamento foi cancelado pela segunda vez. A primeira por motivos relacionados a saúde do advogado dos réus e agora, no dia quatro de maio, porque os procuradores se retiraram após a negação da juíza responsável de um interprete da língua Guarani indicado pelos indígenas.

Ora bolas! Somos todos monolíngües? Essa fragilidade do judiciário pode vir a prejudicar a pluralidade étnica, lingüística do Brasil. O Guarani é considerada uma das línguas oficiais do Mercosul; é língua oficial no Paraguai. É uma língua rica em variações, geograficamente plural. E o Brasil? Até quando ficará para trás sujeito a cometer deslizes nos direitos humanos?

A língua Guarani vem (re)conquistando seu espaço a cada dia. Uma atitude desta trata-se de um retrocesso para as políticas lingüísticas do país. Pierre de Clastres registrou as Ne´e Porã (belas palavras) dos índios Guarani há anos. Nós ocidentais, falamos português por que não tivemos força, oportunidades de resistir. Devemos respeitar a luta, o histórico de resistência indígena que hoje letra seus pares em suas línguas maternas.

Quando você pergunta em português o nome de uma criança Guarani no estado de MS, ela titubeia a responder, agora se é perguntado em guarani, em centésimos, milésimos de segundos temos a resposta. O MEC tem avançado na proposta de Educação Escolar Indigena Bilingue, o que reforça a singularidade lingüística destes povos.

Não destruam o mosaico cultural que é o Brasil. Não  unifique este povo marcado pela diversidade. O imaginário de uma língua, uma nação, há muito vem sendo desconstruído. Ao Judiciário, por favor, respeitem a língua nossa de cada dia. (E de cada um, de cada povo, de cada gênero, raça e etnia.)

Lauriene Seraguza: gente, educadora, letrada e estudiosa das línguas indígenas do Brasil.

http://lauryhein.blogspot.com/2010/05/lingua-nossa-de-cada-dia.html

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