A violência institucionalizada: ausência do Estado e do poder público. Entrevista especial com Julio Jacobo Waiselfisz

[Unisinos] – Uma das questões colocadas pelo coordenador do estudo Mapa da Violência 2010 – Anatomia dos Homicídios no Brasil Julio Jacobo Waiselfisz, durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line, realizada por telefone, foi que a má distribuição de renda é um dos principais fatores para o aumento da violência no mundo. Segundo ele, esse fator impacta muito mais os jovens do que os adultos. “Se pensa ainda hoje que a pobreza é o fator explicativo dos índices de violência e homicídios. Se fosse desta forma, os países mais pobres do mundo deveriam ser os mais violentos, e isso não acontece. Os estados mais violentos do Brasil deveriam ser aqueles com elevados índices de pobreza, e, no entanto, são estados como Rio de Janeiro, Distrito Federal, e várias regiões metropolitanas que são os epicentros da violência”, detectou.

O mapa aponta ainda que homens, entre 15 e 24 anos, negros e pobres são as maiores vítimas da violência no Brasil. “Os estados muito violentos são aqueles que oferecem grande contraste entre riqueza e pobreza, onde a riqueza mora no meio da pobreza. Esta contradição marca, por um lado, elevados índices de violência, e, por outro, afeta diretamente a juventude”, falou.

Julio Jacobo Waiselfisz é diretor de pesquisas do Instituto Sangari. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Uma das conclusões do ‘Mapa da Violência 2010’ é a de que homens com idade entre 15 e 24 anos, negros e pobres são as maiores vítimas de violência no Brasil. Há um indicativo das razões de porque tantos jovens são assassinados?

Julio Jacobo Waiselfisz – Trabalho com certidões de óbito. Faço a tabulação a partir dos dados fornecidos pelo sistema de informação de mortalidade, do Ministério da Saúde, que não indica as razões que levaram aos homicídios. Neste sistema, é informado, apenas, que uma pessoa, com uma determinada idade, local e instrumento letal, morreu. Mas, fazendo algumas associações e correlações, como fizemos em outros trabalhos como o Mapa da Violência na América Latina: Juventude, violência e cidadania, Relatório de Desenvolvimento Juvenil etc., se podem inferir algumas questões para explicar este fenômeno.

Em primeiro lugar, a América Latina parece um local propício para este tipo de intervenção juvenil na área da violência. É a área do planeta onde mais se concentram índices de homicídios. Enquanto que, na Europa e Ásia, o índice de homicídios não chega, em muitos casos, a um em cem mil habitantes, na América Latina passa de 15. Isto indica que há uma cultura na qual a vida não tem muito valor, principalmente a vida do próximo. E, também, que há uma cultura de levar o conflito até suas últimas consequências. Uma segunda questão que foi possível detectar é que uma das maiores causas para explicação desse fenômeno da violência no mundo, e fizemos uma análise de 70 países, é a concentração de renda. Isto é, se pensa ainda hoje que a pobreza é o fator explicativo dos índices de violência e homicídios. Se fosse desta forma, os países mais pobres do mundo deveriam ser os mais violentos, e isso não acontece. Os estados mais violentos do Brasil deveriam ser aqueles com elevados índices de pobreza, e, no entanto, são estados como Rio de Janeiro, Distrito Federal, e várias regiões metropolitanas que são os epicentros da violência. Isso indica uma questão: os estados muito violentos são aqueles que oferecem grande contraste entre riqueza e pobreza, onde a riqueza mora no meio da pobreza. Esta contradição marca, por um lado, elevados índices de violência, e por outro, afeta diretamente a juventude. Historicamente, a juventude manifestou sua rebeldia de forma mais acentuada contra as injustiças sociais. Neste caso, também parece que a concentração de renda impacta muito mais os jovens do que os adultos.

Uma terceira questão significativa é que se trata de uma faixa etária que ainda não está totalmente inserida na sociedade, que mais se vê afetada pela exclusão social e a falta de acesso a estudo, trabalhos etc. em nossa sociedade. Nossa sociedade atual demanda símbolos de riquezas, mas não oferece, principalmente ao jovem, oportunidades de chegar a essa riqueza.  Por isso mesmo que o jovem é o que mais se rebela e está mais afetado por esses índices de violência.

IHU On-Line – O que mais lhe chamou a atenção na interpretação dos dados do Estudo Mapa da Violência 2010?

Julio Jacobo Waiselfisz – São várias questões. A primeira é a tendência à interiorização da violência. No início da década de 1990, os pólos de crescimento da violência eram os pólos dinâmicos do crescimento econômico. Eram as grandes regiões metropolitanas, onde havia trabalho nas indústrias e para onde fluíam as migrações de população. Junto com esse fluxo migratório veio a violência, tornando as regiões metropolitanas pólos de violência. Isto começou a partir de um processo migratório de investimentos rumo ao interior. Começou a se oferecer incentivos fiscais, não havia sindicatos tão fortes no interior que demandavam salários mais elevados etc. Assim, os investimentos foram migrando para as cidades pólo do interior. Isso atraiu população e violência. Grande parte dos investimentos em segurança pública do Governo Federal, do Plano Nacional de Segurança Pública e do Fundo Nacional de Segurança Pública se dirigiu a capitais de regiões metropolitanas muito violentas. Isso originou uma maior eficiência policial, uma melhoria dos aparelhos de segurança, que tornou a delinquência muito mais custosa, pelo qual, vendo que havia pólos do interior não tão protegidos pelo Estado e que, nas capitais, havia proteção, muito dessa criminalidade mudou para o interior.

Podemos observar que, nos últimos anos, enquanto, nas regiões metropolitanas, os índices de violência vêm caindo, caíram aproximadamente 20% desde o ano 2000, o único local onde está aumentando é no interior dos estados. Aí se observam cinco tipos de configurações diferentes que explicam essa interiorização. Primeiro foram os pólos de crescimento, que atraem população, dinheiro e a marginalidade. Um segundo tipo, emergente na última década, é a cidade de fronteira, por onde passa o contrabando, o narcotráfico. Esta também é a área de grandes empresas criminais, de contrabando de armas, drogas, de pirataria etc., onde há disputa de território altamente violenta. Um terceiro tipo é o arco do desmatamento amazônico, que vai de Mato Grosso ao Pará, e ao atrair grandes empresas agrícolas que precisam de áreas, incentivam as madeireiras ilegais, o trabalho escravo e o extermínio de populações indígenas. Os municípios no arco do desmatamento são áreas extremamente violentas e sem lei. Outra área típica seria a área de fronteira que atrai turismo predatório, que incentivam a violência. Isso acontece em várias áreas litorâneas e marítimas, que são exemplo de violência. Por último, o quinto tipo são as regiões de pistoleiragem tradicional, como Pernambuco.

O segundo fenômeno que mais chamou a atenção foi o crescimento violento, nos últimos cinco anos, da vitimização da população negra. Em 2002, primeiro ano que trabalhamos, havia aproximadamente 47% a mais de vítimas negras do que brancas. Em 2005, isso pula para 70% e em 2007, para 107%. Isto é, proporcionalmente, um crescimento vertiginoso da vitimização negra e, por outro lado, as vítimas negras duplicam o número de vítimas brancas em homicídios.

IHU On-Line – Na semana passada, foi divulgado o relatório dos conflitos no campo 2009 que destaca que a região norte do Brasil é a que mais sofre com a violência. O Mapa da Violência 2010 aponta altas taxas de homicídios nesta mesma região. Como o senhor vê essa relação?

Julio Jacobo Waiselfisz – Isto tem a ver com o arco do desmatamento na região amazônica. É uma terra sem lei, onde a presença do Estado é muito tênue e onde os interesses privados são aliados a grandes interesses econômicos e políticos. Por exemplo, em uma cidade altamente violenta, a população começou a expressar, através da mídia, que não existia nada disso. Obviamente, em pouco tempo, descobriu-se que toda a população local deste pequeno município era conivente, porque esta criminalidade das madeireiras ilegais e dos grandes empreendimentos tem seu interesse econômico. Hotéis e restaurantes começam a ter sua sobrevivência com base neste fluxo econômico que origina a criminalidade. Eles não são criminosos, mas vivem do fluxo da violência. Um caso típico é zona de fronteira, cujas populações locais lucram, direta e indiretamente, com a ilegalidade do contrabando. Eles não são contrabandistas, mas vivem em função disso. Quando o fluxo migratório muda, muda seus lucros econômicos. O interesse imediato é a existência e a sobrevivência da criminalidade.

IHU On-Line – Estados como o Mato Grosso e Mato Grosso do Sul têm as maiores taxas de violência. De quem é a responsabilidade por esses índices nessas regiões?

Julio Jacobo Waiselfisz – É muito difícil atribuir responsabilidades neste caso, onde há responsabilidades coletivas nos diversos níveis de governo. Há um nível de participação federal, outro estadual e outro municipal. Começamos a fazer o mapa dos municípios brasileiros, porque descobrimos muito rapidamente que a saída histórica para o enfrentamento da violência, tanto a nível nacional como internacional, é o município e a participação municipal. Todos os eventos históricos que tivemos nestes últimos anos indicam isso. Por exemplo, na Colômbia, que era a excelência na área de violência por muitos anos, os índices estão caindo por diversas atividades em províncias do município, como em Bogotá, onde a violência despencou para 50% em poucos anos, através de reordenamento urbano e uma série de medidas que foram tomadas pelas autoridades.

“Começamos a fazer o mapa dos municípios brasileiros, porque descobrimos muito rapidamente que a saída histórica para o enfrentamento da violência, tanto a nível nacional como internacional, é o município e a participação municipal”

No Brasil, os poucos exemplos que temos de enfrentamento da violência foram através de políticas municipais, como as dos municípios da região metropolitana de São Paulo, Diadema, Guarulhos etc. Diadema é um exemplo de políticas municipais, como Lei Seca, Polícia Comunitária Armada, Infocrime, Inteligência Policial etc. Diadema, que, em 2002, era um dos municípios mais violentos do Brasil, com uma taxa de 147 homicídios em cem mil habitantes, agora está em 50 homicídios. Ainda não está bem, pois esses índices são muito altos, mas esta queda foi um esforço notável.

IHU On-Line – Em relação à América Latina, qual é a posição do Brasil em taxas de homicídios?

Julio Jacobo Waiselfisz – Há uns três anos, o Brasil, que tinha uma taxa de 25 homicídios a cada cem mil habitantes, era o segundo país com maior taxa depois da Colômbia, que estava disparado com uma taxa de cem homicídios. A taxa do Brasil permaneceu mais ou menos constante nos últimos anos, em 24 ou 25 homicídios. A taxa da Colômbia foi caindo, está mais ou menos entre 30 ou 35, ainda está acima do Brasil, mas está se aproximando rapidamente. A explosão de violência foi no centro da América, em países como El Salvador, Guatemala, Nicarágua, onde houve todo um fenômeno, nos últimos dez anos, de incentivo enorme à violência, principalmente a juvenil, de gangs juvenis.

IHU On-Line – E o que está contribuindo para o crescimento dessas gangs?

Julio Jacobo Waiselfisz – Na década de 1990, o enorme fluxo migratório de jovens para os Estados Unidos, pelas guerras em vários países, como Nicarágua e El Salvador. Eles se erradicaram em cidades como Chicago, Boston, onde criaram bandos juvenis que se chamavam Marabuntas, nome de uma formiga africana que ataca em bandos e arrasta sua “vítima”. Para subsistirem no meio inóspito, eles fizeram espécies de gangs para proteção territorial a si próprios. A gang que se destacou foi os Salvatruchas, jovens salvadorenhos que formavam o grupo mais violento. Os americanos começaram a expulsar esses jovens por recapitular o esquema territorial de existência dos Estados Unidos.

IHU On-Line – O senhor afirmou à Time que “interesses econômicos estão ligados à posse de terras e qualquer um que se oponha a isso está em perigo”. Então, em sua opinião, o que é preciso fazer para reduzir a criminalidade no Brasil?

Julio Jacobo Waiselfisz – A presença do Estado e do poder público na área de conflito. Também, é preciso aumentar o acesso a benefícios sociais por parte da população, como saúde, educação, renda etc. Essa é uma das partes. Por outro lado, deve se enfrentar esses territórios sem lei, fazendo chegar a lei nestes territórios.

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