A preocupação em entender os movimentos sociais é uma constante em nossas análises, e está presente quer de forma temática, quer de maneira transversal. A questão política, mais especificamente, as eleições de outubro próximo, onde deságuam as expectativas e contradições dos movimentos sociais, servem de motivo para tecer algumas considerações a modo de ensaio, pois elas revelam também muito do que é o movimento social brasileiro hoje.
O “imaginário de transformação social” que embalou os principais movimentos sociais e as principais lutas nos anos 1980 se enfraqueceu. A convicção de que a realidade pode ser transformada perdeu a sua força, e o encantamento com a política já não existe mais. Os movimentos sociais vivem uma profunda crise e estão longe de exercerem o protagonismo dos anos 1980 e 1990.
Essas duas últimas décadas do século passado, produziram um vigoroso movimento social reivindicatório, cujo horizonte esteve voltado aos outros e na transformação da realidade, expresso na utopia de que outro Brasil era possível, e que passava, portanto, pelo Estado.
O governo Lula, neste contexto, passa a ser paradigmático. Por um lado, ele atende aos anseios da maior parte dos movimentos sociais e, por outro, contribui para o esgotamento do ideário quando, “a partir dos anos 90, lideranças sociais do país ingressaram na lógica da burocracia estatal e perderam a energia e força moral para impor uma nova lógica política. Abdicaram da ousadia”, como analisa Rudá Ricci.
O pragmatismo do movimento social revela-se na assertiva de que mesmo com todos os problemas, críticas e insatisfações com o governo Lula, têm mais a perder com uma eventual não eleição de Dilma Rousseff. A essa situação, soma-se outra: a autonomia, conceito caro aos movimentos sociais, encontra-se fragilizada ou mesmo relativizada.
Nesse processo de acomodação e enfraquecimento do poder contestatório do movimento social, certamente o mais significativo seja o que ocorreu com o movimento sindical. Segundo Rudá Ricci, “aconteceu uma mudança ideológica muito significativa, iniciada no final da primeira metade dos anos 1990. Alguns sindicalistas datam o período de ingresso na câmara setorial do setor automobilístico como o momento da inflexão. Eu considero que foi o ingresso na Confederação Internacional das Organizações Sindicais Livres (CIOSL) que provocou um grande debate interno. O ingresso na CIOSL ocorreu logo após o ingresso da Força Sindical, o que provocou uma ‘corrida ao pote de ouro’. Para provar sua relevância política, a CUT tinha de abandonar as estruturas paralelas (Departamentos Estaduais e Nacionais, por categoria, como o Departamento Nacional de Trabalhadores Rurais) e direcionar suas forças para filiar confederações e federações, a antiga estrutura sindical. Daí por diante, a ‘curvatura da vara’ não retornou mais ao seu eixo”, diz ele.
O significado desse processo segundo Ricci foi ideológico: “Teoricamente, a CUT deixou de se legitimar pela capacidade de mobilização (mobilismo) para ingressar na legitimação pela capacidade de negociação da agenda estatal. Ora, esta foi a postura da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT) pré-1964, o modelo do PCB, o ‘partidão’. A linha oficial do partidão foi, por muito tempo, a de correia de transmissão, em que a organização de base legitimava os dirigentes de cúpula (quase sempre indicados pela direção do partido, como ocorreu com a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura [Contag], cujo primeiro presidente não era trabalhador rural)”.
Com a eleição de Lula e o ingresso de vários sindicalistas na estrutura governamental, deu-se um processo ainda maior de acomodação. “A partir daí, convenhamos, não se trata mais de liderança sindical. É um agente governamental”, diz ele.
De fato, na história brasileira nunca um presidente teve uma relação tão cordial com o movimento sindical. Quem mais se aproximou de Lula nessa relação cordata foi Getúlio Vargas, criador da CLT e da estrutura sindical. Vargas, entretanto, enfrentou a contestação do movimento sindical na greve dos 300 mil em 1953 – fato que o empurrou a decidir-se pelo aumento do salário mínimo em 100% para aplacar a ira dos trabalhadores, e nomear João Goulart para o ministério do Trabalho. As duas decisões contribuíram para precipitar o desfecho de agosto de 1954.
Lula, produto da Era Vargas, da estrutura sindical varguista, e liderança emergente do chamado novo sindicalismo que irrompeu nas memoráveis greves do final dos anos 70, é o símbolo de uma geração de sindicalistas que chegou ao poder, e no poder deu visibilidade e reconhecimento ao movimento sindical. Esse reconhecimento manifesta-se pela agenda política e econômica.
Na agenda política registram-se, entre outras iniciativas, as constantes audiências cedidas às Centrais sindicais, o encaminhamento da Reforma Sindical, a institucionalização das Centrais sindicais acompanhado de repasse de recursos, o veto à Emenda 3, a nomeação de ministros indicados pelo movimento sindical – o exemplo maior foi a nomeação de Luiz Marinho como ministro do Trabalho, e posteriormente da Previdência, indicado pela CUT [atualmente prefeito de São Bernardo], e Carlos Luppi, atual ministro do Trabalho, indicado pela Força Sindical.
Na agenda econômica, o governo Lula deu guarida mesmo que com velocidade diminuída a uma antiga reivindicação dos sindicatos: o aumento real do salário mínimo, a correção da tabela do Imposto de Renda, a ampliação do seguro-desemprego, e o mais significativo, o aumento do emprego.
Por conta de algumas de suas políticas, há quem defenda que “Lula levou o getulismo ao extremo”, na medida em que “completou o processo de sujeição dos sindicatos ao Estado, iniciado por Getúlio”. A afirmação é de Ricardo Antunes, que lamenta o fato de que “os trabalhadores perderam uma oportunidade monumental de conseguir ganhos e de ampliarem sua representação social. Os ganhos são de pequena monta, e mesmo assim ocorrem por um preço alto, de servidão ao Estado. Não vejo, nas centrais que recebem dinheiro do governo, nenhuma possibilidade de florescimento do novo”.
Nos últimos anos, as centrais sindicais tiveram dinheiro como nunca. De 2008 para cá, as centrais repartiram entre si R$ 146,5 milhões transferidos pelo governo por meio do imposto sindical, cuja continuidade é uma das exigências das centrais sindicais em troca de apoio eleitoral.
Portanto, essa fartura em polpudos recursos procedentes do Estado, condiciona tanto a autonomia como o ideário político a ser perseguido e defendido. Mas essa não é uma questão que diz respeito apenas ao movimento sindical. Em maior ou menor grau, outras parcelas do movimento social recebem montas significativas de recursos públicos, quer federais, quer estaduais. A continuidade ou não de acesso a esses recursos está em jogo nessas eleições, razão pela qual elas adquirem um cunho pragmático ímpar. “Vários movimentos sociais e organizações populares se enredaram numa forte crise de financiamento e até hoje não acharam uma saída que lhes garanta autonomia política efetiva”, comenta a esse respeito Rudá Ricci.
Em razão dessa dependência, instaura-se uma relação quase esquizofrênica com o governo, que, por um lado, é criticado, mas, por outro, defendido em relação aos “demônios do neoliberalismo”. Ou seja, “tá ruim, mas tá bom”.
Entretanto, mesmo que haja muitas ou grandes semelhanças entre a política econômica de Dilma Rousseff e de José Serra, no trato com o movimento social, poderão existir diferenças mais acentuadas.
O movimento sindical admite que Dilma estará mais distante do movimento sindical que Lula, mas ainda teria maior sensibilidade à sua agenda que Serra, que inclusive se negou a participar das manifestações do 1º de Maio das Centrais Sindicais, onde, certamente, seria vaiado.
Com uma possível vitória do Serra, a relação com o movimento social, certamente, mudaria. Acredita-se que Serra seria mais duro e inflexível nas questões que envolvem tratamento com o movimento social, razão pela qual seriam mais tensionadas. A chances de as manifestações sociais serem tratadas com maior rigor e repressão, seriam grandes.
Outra questão é quais são os projetos de Brasil – se é que as há – dos movimentos sociais que se apresentam para as eleições de outubro próximo. Assiste-se a um esforço muito grande por parte da Assembléia Popular (AP) em forjar um projeto para o Brasil. Parte da militância está mais cética. Segundo Ivo Poletto que participa da coordenação da AP, “há uma frase, repetida nos espaços da Assembleia Popular, que também vive suas crises, que me parece indicar o melhor rumo a ser seguido pelos movimentos sociais: ‘em outubro, nosso candidato é o projeto popular’. Isso significa que não se deverá repetir o equívoco anterior, a saber: apostar todas as fichas em eleições, num partido, num candidato. A prática ensinou que, se não crescer a capacidade sociopolítica dos movimentos sociais, pode-se perder a disputa pela orientação política do governo eleito”.
Então, diz Poletto, “o caminho a ser seguido, e que pode ser permanente e autonomamente definido, é o reforço dos movimentos sociais, aprofundando seu enraizamento em sua base social; capacitando com consciência crítica mais lideranças; avançando na capacidade de trabalhar em rede; articulando-se para ser expressão democratizante do poder popular; democratizando as relações no interior dos movimentos, redes e articulações, para democratizar o Estado através da mobilização política da sociedade brasileira”.iculações, para democratizar o Estado através da mobilização política da sociedade brasileira”.
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Notas:
1 – John Williamson – economista britânico – foi professor no Departamento de Economia da PUC/Rio entre 1978 e 1981, assim como Rudiger Dornbusch, professor do Massachusetts Institute of Technology (MIT); os dois foram figuras centrais na elaboração do ‘Consenso de Washington’. Vários economistas que trabalharam no governo FHC se vincularam ao que se denominou o ‘grupo da universidade católica do rio’. Em torno de John Williamson e Rudiger Dornbusch, se reuniram jovens professores, como Pérsio Arida, que foi presidente do Banco Central no governo FHC, André Lara Resende, que foi presidente do BNDES, Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda. E estudantes promissores como Edward Amadeo (ex-ministro do Trabalho de FHC); Gustavo Franco (ex-presidente do Banco Central de FHC); Armínio Fraga (ex-diretor do Banco Central de FHC).
2 – As afirmações são do sociólogo Francisco Oliveira feitas logo após as eleições. Francisco Oliveira, posteriormente, se afastou do PT. A expressão remete ao fato de que tivermos nos país duas ‘Era’ importantes: a ‘Era Vargas’ e a‘Era FHC’. Esses dois períodos da vida nacional foram distintos em função dos modelos econômicos aplicados. Chama-se ‘Era Vargas’ o conjunto das políticas econômicas e sociais com forte participação do Estado introduzidas no país a partir de 1930, que marcaram de maneira decisiva o processo de industrialização, urbanização e organização da sociedade brasileira. A ‘Era Vargas’ se inicia em 1930 quando Getúlio chega ao poder. Para alguns ela se encerra em 1954 com a morte do presidente, para outros, findou em 1964 com o golpe militar; e para outros, ainda, ela não teria acabado ou estaria em sua fase terminal a partir das políticas neoliberais introduzidas por Collor a partir de 1990 e reafirmadas com vigor pelos dois mandatos sucessivos de FHC, que inaugurou a ‘Era FHC’.
3 – A afirmação é do historiador inglês Eric Hobsbawn em entrevista para o Globo, 13-11-02.
4 – O entusiasmo político com a eleição de Lula se observou na Av. Paulista, onde uma multidão de 50 mil pessoas (multidão superior àquela que saiu às ruas paulistanas para comemorar o pentacampeonato da seleção brasileira), saiu as ruas no dia 27-10-02, para comemorar a vitória do PT.
5 – Fala do ministro José Dirceu numa reunião em maio de 2003 no Diretório Nacional do PT. Sem saber que suas palavras estavam sendo gravadas pela impressa, foi curto e grosso: “nós demos um cavalo-de-pau na economia”.
6 – Entrevista ao Estado de S. Paulo, 4-5-03.
http://www.ecodebate.com.br/2010/05/06/movimentos-sociais-do-ideario-da-transformacao-ao-pragmatismo/