Há tempos, os olhos de Tibúrcio Tserenhi’ru não alcançavam matas, nascentes e outras vastidões da terra onde nasceu, na região nordeste do estado de Mato Grosso. Lá viveram seus pais e avós, mas devido ao despejo do povo Xavante da área, na década de 1960, não foi possível ver os filhos crescerem no mesmo lugar. Após quase 50 anos da retirada forçada dos Xavante de suas terras, uma tarde ensolarada de fevereiro marcou o reencontro de Tibúrcio, cacique àquela época, e mais 15 anciãos de Marãiwatsédé com parte do território que lhes foi agora devolvido.
Limitados a circundar apenas os limites da fazenda Caru, reocupada pelos Xavante em 2004, nesse dia os anciãos visitaram a localidade de Mö’onipá, denominada pelos não-índios de Posto da Mata, em referência ao posto de combustível que funcionava no local. Ponto de intersecção entre as BRs 158 e 242, a localidade concentrou grande número de manifestantes contrários à determinação judicial de saída dos não-indígenas da área, durante a operação de desintrusão. Voltar lá era simbólico para os anciãos. “Resolvemos levar os velhos, porque eles ainda não tinham saído da aldeia. Desde o fim da extrusão, os jovens já estão percorrendo áreas retomadas, realizando ações de vigilância e de reconhecimento do território”, disse Paulo Roberto de Azevedo, coordenador regional da Funai em Ribeirão Cascalheira (MT).
O antigo nome, Mö’onipá, revela que ali crescia uma espécie de inhame tradicional na alimentação Xavante, difícil de encontrar atualmente devido ao desmatamento de grande parte do terreno. Quase chegando a Mö’onipá, uma anciã aponta para o local onde também havia fartura de pequi, fruto nativo apreciado por eles. Apesar dos anos em que estiveram distantes, memórias, lembranças e referências do lugar de origem foram sendo reveladas na língua xavante e algumas passagens traduzidas para o português por jovens que acompanhavam o grupo.
Saindo de Mö’onipá, a visita se estendeu ao limite leste da terra indígena, até o município de Alto Boa Vista, onde esteve instalada a base da operação de governo responsável pela retirada dos não-índios, e prosseguiu à sede de uma das fazendas recentemente desocupadas. “Warazu babadi”, que significa algo como “o homem branco acabou” foi uma das expressões mais repetidas no percurso. “Agora acabou, tá limpando”, observou Tibúrcio, demonstrando uma mistura de alívio e alegria.
A recente saída dos ocupantes da terra indígena é motivo de declarada satisfação pelos Xavante. “Não foi fácil. É difícil. Sacrificamos muitos anos nessa luta. Hoje estamos satisfeitos. Eu mesmo estou comemorando e, por isso, uso o urucum”, disse o cacique Damião Paridzané, fazendo referência à pintura vermelha que cobria a testa. Por outro lado, a novidade ainda gera insegurança para quem viveu ano após ano como estrangeiro em sua própria casa. “Tenho medo de warazu. Fazendeiro é muito brabo”, revelou uma das anciãs ao mesmo tempo em que apontava, pela janela do ônibus, para os escombros das construções emMö’onipá.
Prioridade
“Tenho muito sentimento. Sofri muito. Lutei 48 anos e nunca virei às costas para a comunidade. Eles tentaram, desde o início que começou a luta, negociar com carro, trator, dinheiro… políticos e fazendeiros, mas nunca aceitei nada, quero a terra. Estou cansado de tanto sofrimento e agora basta, quero descansar”. O desabafo é do cacique Paridzané e seu apelo não é vão. Segundo a presidenta da Funai, Marta Maria Azevedo, Marãiwatsédé é prioridade para a instituição, que irá desenvolver e articular ações visando consolidar a posse plena do povo Xavante sobre seu território, ajudando o povo a realizar os plantios e a recuperação ambiental da área fim de que possa reconquistar sua autonomia e segurança alimentar.
Com esse espírito, teve início uma articulação intersetorial na Funai para programar a execução de medidas a curto, médio e longo prazo a serem desenvolvidas na terra indígena. Uma equipe formada por servidores de diversas coordenações da Diretoria de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável (DPDS) e da Diretoria de Proteção Territorial (DPT) realizou uma visita técnica à aldeia, entre 19 e 21 de fevereiro, e participou de discussões com a comunidade.
A equipe realizou um diagnóstico da situação atual, marcada pela conclusão da retirada dos ocupantes não-indígenas de Marãiwatsédé, e pactuou com as lideranças ações emergenciais para garantir a segurança e sustentabilidade do povo e da terra Xavante. Também acompanhou a visita dos membros da comunidade a algumas localidades do território recentemente desocupado.
Desenvolvimento sustentável
Entre as ações emergenciais a serem desenvolvidas, estão atividades voltadas à promoção dos direitos sociais e da cidadania, ao desenvolvimento de atividades produtivas, à gestão territorial e ambiental e à vigilância e monitoramento do território.
Considerando o fato de os indígenas de Marãiwatsédé viverem em situação de risco alimentar e nutricional por não desfrutarem da posse plena do território, foi acordada a aquisição e distribuição de alimentos para as famílias, em caráter emergencial, durante os próximos três meses.
“Quero alimento para que a criança cresça sadia”, pontuou o cacique Damião, que foi complementado pelo jovem Arimatéia “queremos resgatar árvores frutíferas, o inhame e o milho Xavante que foram retirados pelos brancos”.
Nesse sentido, será apoiada a continuidade de atividades para garantir a segurança alimentar da comunidade, tal como a lavoura mecanizada de arroz e milho, ao mesmo tempo em que serão realizados investimentos voltados à recuperação de espécies tradicionais Xavante, a serem cultivadas nas roças de toco (tradicionais) e nos arredores das casas, com o enriquecimento dos quintais pelo plantio de árvores frutíferas e nativas.
A Funai também assumiu com a comunidade o compromisso de cumprir o calendário agrícola da região e de apoiar a diversificação das atividades produtivas que incluem manejo bovino, meliponicultura e intercâmbio para troca de sementes e saberes com outras comunidades indígenas.
Além de colaborar com as atividades produtivas, a Funai deverá concluir a construção, já iniciada, de 40 casas na aldeia Marãiwatsédé e a dar continuidade à implantação de ações educativas e comunitárias, que visam a valorização cultural, o intercâmbio de conhecimentos e a sustentabilidade.
Outras ações serão possíveis por meio de articulação interinstitucional com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai/MS), para tratar da atenção à saúde; com o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), a fim de promover o acesso qualificado dos indígenas a benefícios previdenciários; e com o Ministério da Educação (MEC) e secretarias municipais e estadual de educação, para acompanhamento das ações de Educação Escolar Indígena.
Gestão territorial e ambiental
Um importante passo foi dado no sentido de garantir a posse plena do povo Xavante ao seu território. Durante a visita técnica da equipe da Funai a Marãiwatsédé, teve início o diálogo entre Funai e comunidade indígena com vistas à elaboração do Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), fundamental para direcionar as ações a serem desenvolvidas neste novo momento.
Medidas emergenciais para a remoção e despejo dos resíduos sólidos (cercas, lixo e entulhos deixados no interior da terra indígena) e a contenção das erosões nas estradas serão realizadas pelos próximos seis meses.
A médio e longo prazo, serão discutidas, pactuadas e desenvolvidas, pela Funai, indígenas e entidades parceiras, ações que garantam a gestão do território Xavante. Algumas já foram mapeadas, como o desenvolvimento de projetos de etnozoneamento e de implantação de sistemas agroflorestais, a construção de aceiros associada ao plantio de mudas (quebra-ventos) – com o objetivo de impedir a incidência de incêndios e consequente destruição das áreas cultivadas – e o levantamento de metodologias de recuperação de áreas degradadas visando o reflorestamento.
O coordenador regional da Funai começou a mapear possíveis recursos a serem utilizados nas ações de reflorestamento. “O município de Alto Boa Vista, por exemplo, arrecada aproximadamente 200 mil reais por mês de ICMS Ecológico, por causa de Marãiwatsédé e nada foi investido na área até hoje. Vamos priorizar essa articulação”, avalia Paulo Roberto. O ICMS Ecológico é um instrumento financeiro de compensação e incentivo aos municípios que possuem terras indígenas ou unidades de conservação em seu território.
Fiscalização
O fato de a terra indígena ser cortada por rodovias federais e estaduais amplia a necessidade de ações de vigilância e monitoramento territorial. Considerando este aspecto, já teve início a estruturação da nova base de fiscalização na localidade de Mö’onipá(Posto da Mata), com reforma da estrutura física, instalações elétricas e hidráulicas e a instalação de sistema de radiofonia.
A fiscalização foi uma das mais recorrentes preocupações levantadas pelas lideranças Xavante e, nesse sentido, será garantida a continuidade das atividades policiais. Também serão realizadas oficinas de capacitação com jovens indígenas indicados pela comunidade de Marãiwatsédé para realizar de ações de vigilância no interior da indígena.
A devolução de Marãiwatsédé aos Xavante significa um recomeço repleto de desafios. Reflorestar as matas, reocupar e manter o controle sobre o território, mapear as fontes de recursos naturais e desenvolver atividades produtivas são apenas algumas das tarefas que a comunidade, junto à Funai e outros parceiros, têm pela frente com o objetivo de garantir a posse plena da terra pelo povo Xavante.
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Compartilhada por Janete Mello.
http://www.funai.gov.br/ultimas/noticias/2013/03_mar/20130314_03.html