O coletivo pela Memória, Verdade e Justiça e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) realizaram uma homenagem aos pelo menos dez militantes contra a ditadura militar que teriam tido seus corpos cremados nos fornos da usina Cambahyba, localizada em Campos dos Goytacazes, no norte do estado do Rio de Janeiro. A homenagem também serviu como um ato de protesto do MST pela aceleração do processo de desapropriação da fazenda.
Rodrigo Otávio
Rio de Janeiro – O coletivo pela Memória, Verdade e Justiça e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) realizaram na quinta-feira (16) uma emocionante homenagem aos pelo menos dez militantes contra a ditadura militar que teriam tido seus corpos cremados nos fornos da usina Cambahyba, localizada em Campos dos Goytacazes, no norte do estado do Rio de Janeiro. O tributo foi realizado nas ruínas dos fornos da usina.
Não fosse uma bonita tarde de sol, o cenário seria tão fantasmagórico quanto os relatos do ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra em seu livro Memórias de Uma Guerra Suja, onde revela mais um abominável capítulo do terrorismo de estado praticado nos anos 60, 70 e 80 pela união do governo militar com setores da sociedade civil. Ali, o assassino confesso de mais de 40 pessoas teria recebido passe livre da família Ribeiro, proprietária da usina, para dar fim a qualquer vestígio dos corpos trazidos de centros de tortura como a Casa da Morte, em Petrópolis (RJ), e os DOI-Codi de Rio e São Paulo.
Em um trecho da estrada RJ-224, sentido Espírito Santo, uma longínqua chaminé aparece em meio ao verde da paisagem. Após duas curvas à direita, a estrada de Cambahyba é margeada por árvores altas, que atuam como um túnel verde em relação à luz natural. As fileiras de árvores acabam e o cenário volta a se delinear próximo a uma curva à esquerda.
Ainda à distancia, percebe-se a altura e grandiosidade de três chaminés de tijolos que aparecem atrás de um muro branco. Avançando-se, o muro dá lugar a uma cerca e uma porteira abandonada. Da porteira, avista-se a uma distância de menos de cem metros os escombros de pelo menos duas grandes construções de tijolos e ferros, de mais ou menos quatro andares, que servem de base das chaminés.
Nesta base estão os destroços de uns dez fornos à moda antiga, com pesadas portas de ferro arqueadas e gavetas também de ferro embaixo das portas. Os interiores dos fornos têm cerca de cinco metros quadrados. As portas possivelmente marcam a última travessia dos corpos de Ana Rosa Kucinski, David Capistrano, Eduardo Coleia Filho, Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, João Batista Rita, João Massena Melo, Joaquim Pires Cerveira, José Roman, Luiz Ignácio Maranhão Filho e Wilson Silva.
Angústia
Entre as cerca de cem pessoas presentes à homenagem, Amado Sergio, professor de história e militante do partido Comunista Brasileiro (PCB), disse, assim como muitos, estar vivendo uma angustiante experiência. Sergio nasceu nas redondezas da fazenda Cambahyba.
“Saí de Campos aos 18 anos para servir o exército. Sabia que tinha uma ditadura militar, mas não tinha noção do que estava acontecendo no país. Fui soldado em 1972 no batalhão de São Cristóvão. Lá dentro eu percebi o perigo quando ouvi os gritos de soldados como eu, que cometiam alguns delitos e eram torturados. Ora, se soldados como eu eram torturados, imagina quem lutava contra a ditadura militar?”, questionou ele.
“Depois, já saindo do exército, é que eu fui ter a dimensão do que estava acontecendo. Saíam listas de ‘terroristas’ procurados nos jornais, e a gente tinha medo. Descobri que os ‘terroristas’ eram lutadores pela democracia, trabalhadores, e muitos estavam desaparecendo. E fiquei surpreso, esse ano, ao descobrir que aqui em Campos, minha terra, aqui nesses fornos foram cremados vários corpos daqueles que há anos as famílias estão procurando”, disse.
Apesar de tocado pela coincidência de locais entre sua trajetória e a de vítimas da ditadura, ressaltou que a homenagem não se resumia a Campos, “mas a continuidade de uma luta pela verdade histórica desse país e de todos os povos contra as diversas formas de opressão”.
Desapropriação
A homenagem também serviu como um ato de protesto do MST pela aceleração do processo de desapropriação da fazenda de aproximadamente 3500 hectares que era capitaneada por Heli Ribeiro Gomes, patriarca da família Ribeiro e vice-governador do Rio de Janeiro entre 1967 e 1971.
Há duas semanas, o Instituto Nacional da Reforma Agrária (Incra) recebeu uma decisão favorável da justiça Federal de Campos para prosseguir com a desapropriação do complexo de sete fazendas que continha a usina Cambahyba. O processo arrasta-se há mais de 15 anos e enfrentou diferentes tentativas de anulação patrocinadas pelos advogados da família.
Segundo representantes do MST, a lista de crimes da família Ribeiro, além da ocultação de cadáveres, inclui o não pagamento de dívidas com a União estimadas em R$ 80 milhões, a venda de terras penhoradas, e a manutenção de trabalhadores em situação de quase escravidão.
“Além desses corpos queimados, desses militantes torturados que representam o pior que a ditadura fez e uma ação fascista dos usineiros, a gente fica se perguntando se na usina de Otero, na Sapucaia, na São João e em outras da região não foram outros trabalhadores incinerados. Se os trabalhadores que continuam sendo escravizados nos canaviais de nossa região, financiados com os royalties do petróleo, como a usina Canabrava, não continuam sendo torturados sem os seus direitos trabalhistas garantidos”, indagou Carolina Abreu, da Comissão Pastoral da Terra.
O MST atua na região desde 1997, quando ocupou a usina São João, e nesse período conquistou 12 assentamentos, quase todos em áreas de usinas que faliram na região. Segundo Fernando Moura, coordenador do movimento no Rio de Janeiro, atualmente quatro acampamentos esperam a finalização de processos de desapropriação de fazendas e usinas.
Fotos: Rodrigo Otávio
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